Contos : 

ABRI OS OLHOS

 
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História que escrevi para o programa A História Devida, da Antena 1 lida na rádio em 28 de Maio

Abri os olhos. Ainda não tinha visto onde tinha estendido a cama. Na sala, há um sofá a quase toda a volta. O resto é espaço amplo, apenas preenchido por carpetes. A claridade entra na sala, e nos olhos, desperta os sentidos, um de cada vez, a fome e a sede. De contágio em contágio, o grupo acorda, desperta para a tirania da barriga. Fico para trás, só, com a preguiça de quem cria raízes, de quem perde o tempo. O calor ajuda a sair do saco cama. Definitivamente, não é confortável transpirar, ter sede, e os olhos turvos, depois do sono. Procuro água na casa, na casa de banho, primeiro. Na entrada, uma espécie de bacia, lavo as mãos, e não me atrevo a mais nada. Vem à ideia o rio, … ou riacho, que por certo corre lá fora. Não estivesse-mos nós no Vale do Ziz! Lembro-me que não conheço onde estou, não conheço o lugar. Chegamos com a noite já avançada.

Na porta de entrada, em frente, meia dúzia de casas, a rua que entra na aldeia de adobe, a sombra em que penetro. Cruzo um miúdo, doze ou treze anos de brincadeiras com o carro que traz nas mãos. Viro à direita, e encontro, com o sobressalto de quem não está seguro de si, um velho, a arranjar sapatos. Aproveita o sol de Inverno, em amena cavaqueira, com a mulher. Riem-se, bem-dispostos. Ela escolhe feijões, que fixa com os olhos, numa bacia. Escrutina os aleijados, os bichados e o joio. Passo, não digo palavra, escapando apenas um sorriso nervoso. Cruzo os campos, retalhos de um are, pelo carreiro batido. Caem folhas de palmeira, aos golpes que soam no vale, por entre amendoeiras e romãzeiras despidas. A praia deixa adivinhar o fio de água que lava a roupa encardida. Talvez a única muda, do petiz que brinca de cócoras. Acerco-me, molho a cara com frescura, revigorado. O talude, do outro lado da ribeira, não deixa fugir nenhuma pincelada daquele quadro. Tudo constrangido a perpetuar a simples passagem do tempo. Estendem-se na superfície da água, os salpicos da djellabia batida na pedra. A criança tece folhinhas de palma, emaranhadas em sonhos. Constrói, com olhos vivos, as suas brincadeiras. A mulher dirige-se a mim, largando túnicas e lençóis. Fala rápido, aponta, gesticula. A cara, avermelhada, marcada de cornucópias e traços azulados. As mãos, igualmente tatuadas, mas brilhantes, porque molhadas. Uma mulher jovem e bela, sem dúvida. Respondo: – Je comprend pas! Ao que o rapaz explica, que a mãe não fala Francês. Pergunto-lhe o que ela diz. Tenho receio de ter levantado o lodo, na água onde ela lava a roupa. De estar no lugar errado, onde não desejam que esteja. Não quero, nem posso, incomodar, ou perturbar, o decorrer de uma vida simples. A árdua luta, o desejo projectado, da afirmação daquela criança num adulto, estendendo, por mais uma geração, a existência. Respondo que não, à curiosidade do gaiato, em saber se sei fazer brinquedos. Cedo à sua vontade de me ensinar, copiando a sua forma, nivelando-me com ele. A roupa volta a bater na pedra.

Entre explicações, demonstrações, tentativas falhadas, risos, e até, algumas repreensões, consigo tecer um rectângulo. – Assim, …, assim, …, e assim. Rapidamente ele transformou-o numa cestinha. – Vou guardá-la por muitos anos, prometo, a olhar o nada precioso, enquanto me despeço sorridente. Para o ajudar nos remates, tinha-lhe oferecido uma tesoura, com que a mãe corre agora atrás de mim. Diz certamente, que me esqueci dela. Sem dúvida, algo que deseja, mas apenas com a certeza de boa vontade. Com gestos, explico que é para ela, e para o filho, que me ensinara a entrançar sonhos e folhas de palmeira.


Boa semana!


Garrido Carvalho

Abril 2008
 
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Garrido
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