Crónicas : 

365 Crónicas de um Soldado Desconhecido

 
Sou novo, tenho apenas 21 anos e forcei-me a vir para a guerra para não levar uma vida de gatuno.
Os gangsters de Chicago disputavam jovens como eu nos velhos bairros sujos e decrépitos dos subúrbios, isto no final dos anos 20, após a Quinta-Feira Negra. O pão mal chegava para toda a família, comíamo-lo por turnos para não termos todos fome às mesmas horas, o primeiro era sempre o pai, que tinha de procurar trabalho ou fazer uns biscates aqui e ali, e depois a mãe que fazia arranjos de roupa mal pagos para as finórias esposas de banqueiros semi-falidos, algumas já viúvas mercê do suicídio de seus maridos. Vivia-se numa roleta em que os mais estúpidos se governavam com uma metralhadora e sem respeito pela pobreza dos outros.
Aqui oiço o zumbido das balas metralhadas pelos Alemães, os gangsters cá da zona, vejo os meus camaradas de armas a pedir ajuda por lhes faltar um membro ou meio corpo, vejo os olhos de quem já nada vê, o fumo negro que sai de obuses detonados, ruínas... não vejo nada.
Estamos em 1942, Dezembro, mês frio numa Europa em escombros, as notícias que nos chegam de casa são quase sempre boas, de vez em quando lá morre a velha tia de um qualquer soldado. Dizem que está tudo bem por lá e que nos esperam como heróis.
Heróis! Heróis de membros amputados e com a morte na recordação. Quando cá chegámos, ficámos alguns dias em Inglaterra para que os Generais decidissem o nosso destino, muitos, como eu, tinham tido pouco treino por terem sido voluntários, dois, três meses no máximo e depois atirados aos canhões.
A vida só perdoa àqueles que podem comprar o perdão, aos outros não.
O meu avô Simeon dizia-me para fugir de perto dos ricos, só assim poderia ser como eles, vendo ao longe os erros que cometiam e evitando-os, tinha graça o velhote. Conseguia ver-me nos olhos dele, fundos. Os seus setenta anos despediam-se todos os dias da vida cada vez que acendia o cachimbo cheio de aparas de madeira que ia apanhando, depois juntava-lhe uma folhinha de hortelã para disfarçar algum cheiro, como se conseguisse.
Talvez tente ficar aqui pela Europa depois da guerra, se sobreviver. Aqui diz-se que se um soldado levar um tiro é mandado de volta a casa e que ganha uma pensão de guerra, não sei de quanto será, mas também não me sinto com coragem para levar um tiro. Talvez seja por isso que fecho os olhos enquanto despejo as antecâmaras da metralhadora.
Perguntei, na trincheira, a um desses ingleses empertigados quanto tempo esperava que durasse esta loucura, o pobre não teve tempo e me responder, assim que me olhou foi atravessado por duas balas perdidas na cabeça, fiquei agoniado e aos gritos, completamente sujo e não foi só com os miolos dele, as minhas entranhas saíram todas. Quando o tiraram de cima de mim não via mais nada que não fossem perfis vermelhos, perdi os sentidos, os sentidos e a dignidade, se é que tal existe num sítio destes.
(2) Passados pouco mais que alguns segundos os sentidos foram sendo restabelecidos, pois numa situação de guerra, só se pode ouvir o próprio silêncio e sentir o frio interior se estiver acordado, é a condição mínima para tentar manter-se vivo, a sobrevivência está no exercício peremptório das acuidades, sempre; não perdendo a fé, controlando o medo, e mantendo frieza nas acções, mesmo que o cheiro acre de sangue te leve ao vómito descontrolado enojado pelo convívio com corpos mutilados, misto de vísceras, ossos e lama, rostos transfigurados com estampas de horror e dor, daqueles que foram horas atrás homens fardados, combatentes garbosos, defensores da pátria e da bandeira, agora ali, meninos mortos, pintados de abandono num quadro fantasmagórico. O cérebro fervilhava em pensamentos anestesiados, tentava arranjar uma condição favorável para sairmos da trincheira túmulo, onde só ecoava o som de lamentos de dor dos meus companheiros abatidos. Dependíamos de uma acção da retaguarda, mas nossa artilharia jazia silenciosa, nem na hora do confronto principal ouvi-se um único tiro, nem também não houve nenhuma retaliação no cessar-fogo temporário do inimigo, permaneciam silenciosas. Como gostaria de ter ouvido os tiros dos nossos obuses, mas dei-lhes crédito, algo de sério havia acontecido, lamentei, era de suma importância e eficaz para nossa retirada. Precisava de informações, estávamos sem comunicação, o telefonista jazia com furo na orelha, do outro lado da cabeça não havia rosto, enfim; eu não tinha aptidão para manusear o rádio, mas teria que tentar, nada mais podia ser feito na situação que eu e os outros companheiros encontrávamo-nos, afinal precisava de novas instruções de como chegar mais próximo dos alvos ou de uma retirada estratégica. Temia puxar para mim a responsabilidade para alguma acção imediata já que com o oficial morto a tropa carecia de comando. Continuei calado por alguns instantes enquanto isso se ouvia os estrondos, continuados e ensurdecedores, do fogo pesado do inimigo que estavam logo à frente, ouvíamos nitidamente o passar traçante dos projécteis sobre nossas cabeças, e nós aqui na linha de frente ainda não podíamos fazer nada, precisávamos da ajuda da retaguarda, éramos trinta, da tropa restava-nos para resistência pouco mais de onze aptos, os feridos eram incontáveis. Então, com a ajuda de mais quatro soldados, num mutirão relâmpago, arrancávamos as identificações dos corpos, guardando-as nos bolsos da mochila de campanha, quando já preparávamos para a retirada, numa decisão tomada sem anúncio, começara a chover torrencialmente, uma chuva gelada, encharcava nossos uniformes, por causa do vento intermitente a sensação de frio era potenciada, doía até aos ossos, havia risco de hipotermia, perdíamos o senso de direcção por causa de uma espécie de nevoeiro, mistura de fumaça de pólvora. Essa mudança meteorológica não me fez mudar de atitude, dei ordem a tropa para irmos em frente sob as minhas ordens, mas não foi possível avançar, onde estávamos, antes era sabido ser uma trincheira natural mas na verdade é um regato, que de seco, começou a inundar-se rapidamente por causa do temporal, ao que aumentado o seu volume, veio trazendo os corpos boiando em suas águas sanguinolentas, pior, é que a força da correnteza nos arrastava para a direcção contrária, isto é; em direcção ao território ocupado pelo inimigo, neste momento já não mais tínhamos esperança de sobreviver.
(3) Mas era forçoso sobreviver! Uma luzinha de esperança começou a brilhar dentro de mim e fez com que, momentaneamente, me alheasse de toda aquela carnificina. Deixei de sentir frio, de me sentir encharcado, muito embora as minha pesadas botas militares se enterrassem no lodo; e o meu uniforme fosse uma pasta de água e manchas de sangue. Vieram-me á lembrança imagens familiares, algumas delas muito queridas. Será sempre assim, quando o perigo é real e iminente? Sempre nos lembramos de nossa mãe e da nossa namorada?
Eu diria que sim, que a nossa mãe sempre surge como o derradeiro refúgio. Sempre ousamos regressar ao ventre materno, o único sítio aonde sempre estivemos protegidos e cómodos e…também sempre desejamos continuar a viver, seguir em frente. Sobretudo quando estamos às portas da morte! Por isso, também a lembrança dos olhos da mulher amada, o colar dos seus abraços, a doçura dos seus lábios também surgia como sinal de futuro e de contrapartida ao frio e à dor em que me encontrava atolado. Eu iria salvar-me! Não me importava quem ia ganhar a guerra, ou se algum dia pertenceria “ ao exército heróico que há-de conquistar Berlim”, como proclamara o general Paton, no discurso de saída de Inglaterra.
Estando absorto nestas doces divagações, alheado da terrível miséria em que me encontrava, sou despertado pela voz do Sargento Rumpf que viera, perante o meu alheamento, gritar-me ao ouvido, muito embora o seu vozeirão pesado mal se fizesse ouvir no meio dos ruídos infernais do combate:
- Arthur! Vamos retirar! Assesta a metralhadora naquele cômoro em frente e disparas quando vires o inimigo surgir! Só quando todos tiverem abandonado a posição em segurança será a tua vez de fazer o mesmo! Não te deixes matar!
E, sem mais delongas, o Sargento Rumpf desapareceu, limitando-se a dar-me uma pesada palmada nas costas. Era ao cair da tarde. Em breve a mais pesada noite se abateria em meu redor. Mas a luzinha de esperança continuava acesa dentro de mim. Aninhei-me. Vejo surgir o primeiro carro de combate alemão á minha frente. Não reagi! Nem de nada adiantaria fazer fosse o que fosse. Também nada, nem ninguém me ligou a menor importância! Aconcheguei-me ainda mais na pequena cova, permitindo que a pesada viatura de ferro, pudesse passar por cima de mim, sem me molestar. Eis que, quando já me encontrava completamente protegido pelas lagartas de aço articuladas, uma de cada lado, se ouviu um estrondo estarrecedor e a massa informe, escaldante, se imobilizou sobre mim. E o que parecia ser a mais terrível das ameaças convertia-se assim num abrigo impensável e inexpugnável. Não só me não matava mas antes me salvava do inferno de metralha que, fragorosamente, explodia por todo o lado.
(4)Não sei exatamente o que houve com meus companheiros,cercado de toneladas de ferro,aço e sob tiroteio incessante a minha tênue esperança não se abala,a miséria enrigece os nervos e prepara para encarar certas situações que normalmente sequer teria coragem de pensar lidar.As doces lembranças de pessoas queridas perdem-se em imagens de nuvens de pólvora e mutilados na noite tenebrosamente negra e estrelada que aparece fria e calma.Com terra e areia nos olhos lacrimejantes como autômato atiro mirando não um alvo específico mas o monte de criaturas movimentando-se indistintos do outro lado do front,um soldado levanta-se não muito distante,um colega meu que não recordo o nome,algo de estranho no modo como se contorce, mãos ao rosto e gritos, a silhueta é despedaçada,nunca saberei o que o fez erguer-se facilitando ser alvejado. As ordens não chegam até mim, isolado e confuso no que parece uma tumba,com um tanque a guisa de tampa,me arrasto para uma abertura maior para melhor reponder ao fogo cruzado,ainda protegido,entricheirado,tentando avistar meus companheiros.Por um minuto o clamor de armas pesadas é interrompido,quando um avião passa num zumbido lamentoso e crescente,seria inimigo ? No retorno ao barulhento trocar de disparos um clarão estremece o solo.Nestes segundos volto a pensar nos que deixei num país em crise,acredito que mesmo com todas as bandeiras , em todos os lados,jovens idealistas mas também inocentes ou sem escolha agora pensam nas múltiplas possibilidades de uma vida que mal começou para muitos e no amor dos parentes, amigos,no fim das contas com todas as insígnias,suásticas e ideologias confusas e autoritárias, tudo não passa de ganância dos poderosos,banqueiros, generais e políticos que brindam cada vitória ou derrota às custas de nossas almas.Somos todos iguais na instável e surpreendente batalha,todos vítimas, alguns com consciência disso, outros perdem se em delírios pseudo filosóficos extremistas .Eu não,voluntários nem sempre passam pela lavagem cerebral e explicações absurdas sobre os motivos de estar aqui ao invés de junto aos seus na pátria mãe.
Novamente disparos,minha perna dói como que pregada mil vezes,formigando e ardendo,ensopada,estou faminto também,algo tomba sobre meu corpo,assustado mal reajo quando Sargento Rumpf,a face em sangue,irreconhecível soldado intrépido,abaixado,com os braços em meus ombros e um fuzil na mão,faz sinal para que me cale quando uma nova pausa paira no ar.Tiros aqui e ali,silêncio.
Somos os últimos da pequena tropa e os alemâes seguem seu caminho até a mítica Valhalla segundo as palavras dele.Tudo é muito rápido,podendo variar caso se esteja ferido contemplando pedaços do próprio corpo,ou amedrontado, então as horas trancorrem sem pressa para que mais combatentes tenham a chance de encontrar o fim e a perversa dor e lágrimas mal contidas escorram no rosto não mais envergonhado que enlouquecido,desfigurado.
O avião que passou sem que prendesse minha devida atenção era um dos nossos,na insana sinfonia de horror e bombas o clarão da morte era a resposta aos soldados nazistas,pedaços de arianos na terra empobrecida.Enegrecidos,carbonizados,não têm o meu rancor tampouco a piedade,agora enfim despertei para a guerra, e juntamente com o Sargento Rumpf prosseguimos de pé em nossos planos de batalha buscando outro local seguro ao encontro de mais dos nossos companheiros n`algum front,as medalhas ainda pendem de meus bolsos na perna ferida por alguma bala que ricocheteou atingindo-me de raspão,uma lembrança caso sobreviva,para mostrar aos filhos e netos,uma das marcas do horror que ora vivencio.O rádio perdeu-se,resta caminhar tropeçando em escalpos,tantos que mal acredito .A paisagem resume-se em cadáveres e fumaça,nenhuma habitação e o frio enregelante nos ossos que rangem deixa-me mais entristecido,esquecendo a dor na perna que me faz andar cambaleante.Um alemão sai do tanque que me protegeu,arrastando um corpo em pedaços da cintura para baixo e desarmado, voltando-se para trás Rumpf sem o fuzil que agora seguro,saca sua pistola e atira certeiro na face que desaparece,é guerra,prossigamos então sem um último adeus aos colegas tombados.





 
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RaimundoSturaro
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/06/2008 02:52  Atualizado: 16/06/2008 02:52
 Re: 365 Crónicas de um Soldado Desconhecido
Raimundo,
A quarta parte deste projeto ambicioso - em que faltam 361 partes - nada deve as anteriores na narrativa bem engendrada.Tocaste num ponto importante em qualquer guerra: soldados que ali estão sem saber o porque, tais soldadinhos de chumbo manuseados por mãos superiores, sem a noção e/ou ideal pelo qual estão lutando.
Bjins, Betha.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/06/2008 02:21  Atualizado: 17/06/2008 02:21
 Re: 365 Crónicas de um Soldado Desconhecido
Prezado Poeta,

Fincastes firme sua bandeira no front, apreciei sobremaneira desenvolvimento da sua escrita.
O bom soldado que não foge da luta.

Meu abraço Raimundo. Parabéns!

Silveira