Contos : 

maria do espírito santo

 
Maria coçava a cabeça com o mesmo desembaraço com que bebe um copo de aguardente logo pela manhã. Encontrei-a na berma de um desses caminhos de terra batida por onde ninguém, no seu perfeito juízo, se atreve a meter o carro. Estava a tarde quente com o sol já alto a esbarrar no topo do céu azul, bebi a última água que restava no cantil e saltei do jipe, o pó do caminho sujou-me as botas, as calças, a pele, mas não me importei. Lá estava ela, sentada nas raízes velhas de um castanheiro, as mãos empurravam um trigo seco pela garganta abaixo e os olhos, ora postos no solo ora postos em mim, pareciam desconfiar da sua sorte ao ver-me ali. Esta semana eu era a única pessoa que Maria do Espírito Santo via.
Deu-me as boas tardes como quem abre a porta de casa a um desconhecido, levantou-se e ajeitando o avental perguntou-me as horas, nem esperou pela minha resposta e torcendo o nariz ao sol que não demoraria a pôr-se, afastou-se um pouco para chamar as ovelhas, eu segui-a. Cajado na mão esquerda, o resto do trigo na direita, as roupas pretas anunciando a viuvez e a solidão, o andar desengonçado de quem já não se preocupa em dar passos certos, os pés já se habituaram a eles. Começou por contar-me as perdas da sua vida, a sua mãe morreu quando a pariu, o pai batia-lhe e quando tinha 12 anos fugira de casa. serviu durante 20 anos numa quinta mas um dia acordou com a vontade de partir a coçar-lhe a cabeça e foi-se, agarrou nas trouxas e partiu para ali, ali ficou primeiro com uma tia e agora só, o que lhe restava eram apenas recordações e memórias presas entre as tantas rugas empoeiradas.
Maria viu o sol esconder-se ainda a meu e com a noite a querer cair de mansinho na sua pequena casa em pedra encheu-me o cantil de água que tirou debruçada do seu poço. Agradeci e já com a porta do jipe aberta vi-lhe o primeiro sorriso seguido de muitas lágrimas. Eu era a primeira pessoa que Maria do Espírito Santo vira esta semana e talvez fosse a única neste mês.
O caminho guiava-me e com os olhos postos no retrovisor vi-a ficar pequenina, cada vez mais pequenina até desaparecer nos pontos negros da noite, a sua mão ainda ali estava acenando, acenando, acenando e o cão sentado aos seus pés de chuva chorava no latido característico de quem adivinha a despedida. Eu triste fui e sou.



. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
Autor
 
Texto
Data
Leituras
760
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 11/07/2008 23:35  Atualizado: 11/07/2008 23:35
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: maria do espírito santo
tu sabes contar.
por onde tens andado que ninguém te vê?
tinha saudades de te ler.
bjs