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Barcos

 

Naquela tarde, Álvaro Urbano, de camisola de linha azul e de lacinho, trazia na pasta dois volumes que se apressou em mostrar a Luciana.
Um era um grande livro encadernado, sobre barcos, em inglês, com fotografias a cores, que tinha comprado na véspera.
Folheou-o, vaidoso, nomeando os tipos de embarcações: "clipper", "yacht", "cutter", "ketch", "yawl"...
-"Irra, que tu hoje estás um grande pedante!" - interrompeu Luciana - "Não sabia que também gostas de barcos, mas se queres saber alguma coisa que valha a pena, não precisas de gastar muito dinheiro: levo-te ao Henrique!".
-"Quem é o Henrique?"
-"Um velho marinheiro, que nos tem ensinado muito, a mim e ao Luís, em viagens à barra do Tejo. Não gostavas de ir?"
-"Nalguma "casca-de-noz"? Não, obrigado!"
-"E dizes tu que gostas de barcos! Logo vi, tu gostas é de ruas asfaltadas e de "arranha-céus"! Pois fica sabendo, meu lindinho, que te posso dizer mais do que aí encontras!"
"Relativamente ao aparelho, os navios de vela dividem-se em dois grupos: redondos, como a galera; e latinos, como o lugre. Os mastros, conforme a sua localização no navio, denominam-se de proa, de meio, de ré, podendo tomar o nome da sua vela principal: de traquete, grande, da gata ou da mezena. Além da galera, também são navios redondos: a barca, o lugre-barca, o lugre-patacho, o brigue e o patacho. Além do lugre, também são navios latinos: a escuna, o lugre-escuna, o palhabote, o iate, o caíque, a canoa, a bombarda e o bote de espicha."
Surpreendido, Álvaro resolveu atenuar a irritação de Luciana, que considerava demasiado voluntarista. Tirou da pasta de cabedal um maço de quarenta e duas folhas de "a-quatro" dactilografadas a dois espaços, e que dizia na primeira página "Narrativa da Planície".
-"O meu amigo brasileiro Wirsung, que é psiquiatra, emprestou-me este texto, que escreveu há pouco tempo, e eu pensei que seria interessante analisá-lo consigo."
Luciana abriu o exemplar e com curiosidade leu uma nota manuscrita no verso da primeira folha: "Nota de Entrada: Venho aqui buscar a força, apoiar o que tenho no fulcro desta página, fazer nascer a seiva mágica da escrita. Venho buscar a certeza, a esperança de sermos mais fortes de que estes muros, estas paredes velhas, que nos escondem a sua fraqueza para que acreditemos na espessura da muralha. (Parafraseando Anónimo do Séc. XX)"


José Jorge Frade

Capítulo 9 de "Lúcido Mar"
 
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