Crónicas : 

Sursum Corda - Crônicas do Paraíso (Ilha Grande)

 

"Sursum Corda" - Crônicas do Paraíso (Ilha Grande)
Jorge Luiz da Silva Alves




No alto, os corações - e cá embaixo, os bofes d'bagaço. Nada a ver com o desafortunado capitão luso que, ao ouro de Castela, se vendera; muito mais pelas péssimas condições físicas em que chegamos ao sopé de uma das colunas das imponentes ruínas de um aqueduto que cortava aquele trecho de mata adentro, na Ilha Grande, construído que fôra no zênite do sábio Pedro de Alcântara, o segundo do nome, em meados oitocentistas. Mesmo a galega (trilheira experiente) apanhara feio, entorpecida pela densa mata a nos abraçar em beleza luxuriante e estufa opressora no percorrer das picadas íngremes e tortuosas. Salvei-me - mesmo que em frangalhos, reconheço - pelos anos de milico profissional, fôlego controlado nas marchas quilométricas sob quilos de equipamentos nas costas curtidas pelo camuflado.
A tarde escondia-se entre as folhagens, bambus e cipós; a perna principal do aqueduto revelava-me tesouros de outrora, notórios e circunspectos: na plaqueta já desgastada pelas intempéries, o nome do idealizador do impossível; mais acima, o mapa das trilhas; já mais ao longe dos bons olhares, algo inusitado, o que parecia ser dois nomes sob dois corações, todos esculpidos na dura rocha que compunha a estrutura superior do arco - recobertos por extensa camada de delgada rama parasita.
Tomei um gole d'água e sorri: "O amor opera milagres!", pensava, enquanto aqueles dois nomes, abaixo dos corações de pedra corroída pelo tempo, desafiavam a lógica: é preciso estar muito apaixonado para se fazer anunciar daquela forma à toda serrania adjacente, revestida de arbórea recapa. Tanto que seu autor preferira confiar seu sentimento à dureza da pedra e às alturas intimidantes da estrutura latina, solidez preciosamente autografada, caligrafia cardio-coronariana com aqueles filetes vegetais a reforçar a idéia de sanguínea paixão, dois músculos pétreos envoltos em finas artérias enraizantes. Sutilíssimos cordames em tramas do querer mútuo; "A corda no alto?!", divaguei, novamente. Sursum Corda?!
Corações amarrados por paixões arrebatadoras?
Nomes às alturas... para que o Divino abençoasse a união; textura granítica, para eternizar um instante de inspiração de douto manipulador das formas em régua e prancheta? Um arquiteto apaixonado, vejam só! Cordas, atando-nos forçosamente, à beleza inconstante da vida, calor do corpo e o abafado momento de sutis descobertas fazendo-nos porejar em desejo e erotismo, ruído de cachoeira ao longe, mata fechada, galega sestrosa a sorrir de tudo em convite, ruídos outros ao longe, estentórios, rascantes - é o Bugio, gorila local, a afugentar-nos com seu tonitruante berro a quilômetros; esquecemos o cansaço e tomamos as mãos, assustados ; adeus aqueduto e seus mistérios, tarde findando, hora vencida.
Vencemos, durante a descida para o Abraão, os últimos espasmos de indisposta malemolência com cautela para não escorregarmos nas sinuosidades do percurso; para trás ficaram um símio escandaloso, a Natureza majestática, dois corações gravados nas alturas, seus nomes unidos num eterno compromisso em que Deus, o cronista e sua companheira foram testemunhas surdas e maravilhadas de mais um dia inteiramente belo e diferente no Paraíso.

 
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JorgeLuizAlves
 
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Enviado por Tópico
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Publicado: 13/10/2008 13:49  Atualizado: 13/10/2008 13:49
 Re: Sursum Corda - Crônicas do Paraíso (Ilha Grande)
Uma bela crônica Jorge, rica em detalhes e uma demontração de amor raro hoje em dia, mas ainda bem que existem aqueles que ainda sabem demonstrar seu amor por quem amam. Hj em dia, o que vejo mais, são pessoas brincando com o sentimento dos outros, como se fossem marionetes manipuladas.

bjo. daqui.