Contos : 

A RADIOLA E A GARÇA BRANCA

 
O chão estava aceso. Calor intenso, tempo de pancadas esporádicas de chuva, espasmos temporais da natureza. A tarde se ia e a cidade parecia um monstro, rugindo e se movimentando, num vai-e-vem sem sentido. De repente, ela se esborrachou feito um réptil na janela do lotação e a plenos pulmões, gritou-lhe insistentemente, o nome. A sensação do chinês foi de espanto. O burburinho era descomedido e ali, nada mais era, que o centro nevrálgico da terceira mais importante cidade do país, com seus mais de dois milhões e meio de habitantes. O chinês parou petrificado! Olhou assustado para os lados e a muito custo, se deparou com a presença dela; o vidro da janela aberto em toda sua extensão, e ela lá, de corpo inteiro exposta, se agarrando desajeitada nas laterais metálicas, do pequeno espaço aberto - apenas a cabeça se projetava para fora, como numa moldura -, acenando-lhe para que a esperasse um tempo.

A casa tinha um cheiro diferente. Era cheiro próprio, dela caracteristico. Construída num início de vale, podia ser vista de todos os ângulos num raio de distância bastante acentuado. Seus cortes e traços retos lhe davam uma graciosidade diferente dos grandes casarões, montados em estruturas de madeiras de durabilidade eterna. Era algo novo num cenário de características rebuscadas.

A garça branca, de gesso, enfeitava o móvel tosco da radiola automática. O espectro da ciconiiforme parecia entalhado de tal maneira, que suas formas longitudinais pudessem caber num exíguo espaço de pouca ou quase nenhuma circunferência. Lembrava, nessa postura, a fábula da cegonha e da raposa, tal o desenho imposto à arte. Em verdade, o que se via naquele entalhe de gesso era uma idéia de introjeção; era a projeção da jarra onde a cegonha servira a sopa; um casulo de proteção.

A mesma postura não se via na radiola. Um contraste significativo, porém, de bom tamanho para o ambiente. Escorava-se de forma esparramada, com seu móvel escuro, num canto do grande salão. No seu ventre grávido, negros carnaúbas (discos musicais, bisavós dos cds, tataravós dos atuais iPods), de frágil resistência, guardavam pérolas dos grandes astros do cancioneiro popular, que se apresentavam em ocasiões especiais, com vozes portentosas reproduzidas em uma velocidade chiada de 78 rpm (rotações por minuto). Do teto, pendia rebotado lustre com pingentes em vidro, dando um tom de solenidade ao grande salão.

O chinês chegou, pela varanda que dava para a entrada principal. Venceu a ramagem da trepadeira que ornava a arcada fronteiriça, num significado de que poucos tinham acesso por ali. Visitantes íntimos entravam pela porta dos fundos; caiam direto no varandão da cozinha, ali, onde a mesa era farta e gorda. Comensais cevados na generosa despensa chegavam em formato de levas e iam se acantochando pelos bancos do espaço.
A querência entre os dois era algo que vinha já de algum tempo. Mesmo assim, os encontrões que aconteciam naquele ambiente, sinalizavam que tudo o que se disse no dia anterior, não passara de ilusão, de sonho apenas. Em verdade, o espaço da grande varanda não podia ser palco desses encontros. Viam-se de forma sutil, no espaço onde repousava a garça branca. Para lá, se dirigiam furtivamente.

Naquele minuto de susto, numa fração de tempo tudo lhe vem à memória:

- “Cumpazidoro, como que vai a lavoura? E Cumafiica, tá esperando mais minino?”

- “As finanças, Cumpatunico, como vão?”

Desce o morro que vinha da virada, aquele lugar longe, que ficava além da matinha. Era noite. A chuva, passadia, deixara seus marcos no apertado caminho, trilha de um passante só. O alto da estrada, no cume do divisor de vertentes, reservava a surpresa contada da velha e perigosa “Nêga do Pendão”. Nunca ninguém se encontrou com ela, mas era certo que ela fazia morada lá. No contar da meia noite, subia naquela árvore retorcida, que podia ser vista de longe, e se ajeitava em seus galhos mais altos, lá nas grimpas. Daí a razão para o nome, pois ficava, segundo diziam, a se balançar no pendão da grande árvore.

O tempo vai passando lentamente e as horas começam a apertar. Mas ela chamara-lhe. É preciso vencer o medo, dela e da noite. Seria o primeiro contato físico entre eles. A luz bruxuleante da lamparina projetava as duas sombras na parede besuntada de barro branco. Elas, por sua vez, obedecendo ao comando da irradiação da chama, bailavam de um lado para o outro. A mesa de centro nem de longe era capaz de trazer qualquer similitude com a grande mesa do salão, onde ficava a garça branca, mas, a sombra dos dois, projetada naquele pequeno espaço expandia-se e se comportava solenemente, como o bailado de muitas valsas, dançadas sob os olhares frios da ave entalhada. O chiado dos carnaúbas estava lá, no ventre da grande radiola, mas ali, naquele encartado de sala, com apenas quatro cadeiras e uma raquítica mesinha de centro, o estalido da chama, arrebentado do pavio da lamparina, único som que se podia ouvir, embalava uma valsa de sonhos e romaneios, e somente eles eram capazes de compreendê-la.

No encantado da principal avenida da cidade grande, o chinês não sabe onde colocar as mãos. Não sabe em que direção olhar. E ela por seu lado, se espremia e se agitava, na vidraça do ônibus, acenando-lhe, gritando-lhe o nome, com todo o vigor de suas entranhas. E a cidade ouvia, a cidade, no seu clímax, na sua intemperança, passava ao largo da cena, mas ouvia. O chinês parou petrificado. Não podia haver cena mais bela! Não podia. Só mesmo os grandes amores, comportavam uma atitude como aquela!

Era dos poucos que penetrava no salão onde ficava a radiola. Era lá que numa esgueirada podia lançar olhares para ela; nova decoração comportava agora, ouviu dizer o chinês; nunca mais voltou lá. A casinha da virada, com sua mesinha acanhada, não existia mais. A “Nega do Pendão”, deve ter morrido, por certo – de a muito, a idade lhe impedia de subir nas grimpas da árvore. Os compadres não andam mais por lá - que já nem tem mais compadres dando sopa com tanta facilidade nos dias de hoje - e a grande mesa farta do varandão da cozinha foi retirada. As luzes se apagaram, todas.

- Quantos anos, minha linda?

- Ah!!! Pra mais de quatro décadas!

Quatro décadas, e eles ali, sem saber onde colocar as mãos. Petrificados! Parados, no açoite do ar seco da grande metrópole! O chão incendiava. Ia abrir tudo aos seus pés. Era como se as cinzas estivessem prestes a descer sobre suas cabeças. Quatro décadas! Perdida a garça branca! A radiola, um terminal de informatização globalizado! Os mais de dois milhões e meio de habitantes, passavam, continuavam passando. O tempo passou, mas, ela chamara-lhe; gritara seu nome no meio de uma multidão. Vencera ele o medo? A luz da tarde contrastava com a luz de seu passado; a cidade se preparava para dormir. Em poucas horas, apenas suas atividades vitais estariam funcionando. A cena, àquela hora do entardecer significava muito pouco naquele universo todo. Sequer fora notada com mais proficiência. Cena comum, a não ser por eles. No lugar da mesa de centro, o asfalto escaldante, o chiado dos carnaúbas regurgitavam substituídos por estalidos metálicos, gerados no ruído dos automóveis. Embutido no ventre da cidade grande, o chinês sorriu, feliz, muito feliz! A visão do ônibus penetrou-lhe as entranhas como algo que não se descreve, o sentimento, a introspecção, a sublime emoção daquele minuto mágico, não admite maior fidelidade. A visão dela era angelical, era como se a garça branca estivesse efluindo de seu casulo, despertando de um sono profundo, da cumplicidade do silencio de todos aqueles anos. Ela, por seu lado, também sorriu e seu aspecto era de felicidade.

Havia ainda uma querência muito forte entre os dois! Isso era fato.

wagner m. martins – 04 e março de 2008


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

 
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wagner
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