Contos : 

O contador de mentiras

 
José Raposo, de seu nome, o “Tinhoso”, por alcunha de família, era um exímio contador de mentiras. Desde pequeno, muito antes de entrar para a escola primária, conseguia convencer quase todos os de Armares de Cima, com as patranhas que inventava. Aqueles que não convencia – que não era a gente humilde mas os mais argutos na matéria – encontravam no filho do “Tinhoso” um certo jeito para o imaginário.

E já na escola primária conseguia sempre enganar a professora – a Regente, naquele tempo – a quem mostrava, com boa conta e em boa ordem, o caderno escolar com os deveres de casa certinhos e direitinhos. Até os seus colegas, mudos de pasmo, se entreolhavam com certa cumplicidade, quando eles, que haviam deixado o “Tinhoso” copiar os trabalhos escolares, nem sempre os acertavam na íntegra. Como é que ele, filho de pais analfabetos, sendo até o pai um alcoólico inveterado que não conhecia uma letra do tamanho dum chaparro, conseguia tal proeza? Só podia ser, usando da artimanha que o “Tinhoso” tinha herdado da família, copiando, de um e de outro, o que não deixava dúvidas de estar certo.

Até o Prior, que por alturas da Páscoa, quando a Regente Filomena obrigava os alunos da catequese à confissão, perdia infinito tempo no confessionário com o José Raposo, que não parava de confessar as invenções de infindos pecados por pequenos furtos domésticos. E só quando o padre lhe jurava – estranha jura! – quebrar o seu voto de silêncio e ir denunciá-lo à Guarda Republicana da Vila próxima, de quem o “Tinhoso” tinha horror e ódio por terem levado o avô para o Forte de Peniche, é que lá conseguia descortinar na mentira quase convincente do José Raposo, que afinal era mentira o pecado que confessara.

E isto lhe valeu a mudança de alcunha de família para o Zé “das Mentiras”. Coisa que até ele agradeceu, porque detestava ser a continuidade dos “Tinhosos”. E com o Zé “das Mentiras” cresceu a fama e o proveito, se bem que deste último tivesse mais prejuízos do que lucros. Lá cresceu levando os dias de trabalho árduo, de sol a sol, pelas quintas dos mais ricos, até que a tropa o levou por alturas do 25 de Abril. E dali a engrossar as fileiras da Guarda Republicana, que ele odiava, foi apenas um passo. Movido pela onda crescente de desemprego, fez crescer nele a necessidade de enveredar por aquilo de que não gostava, para poder criar o rebento que entretanto nascera dum casamento também falhado pela mentira. Seria esta nova forma de vida também outra mentira?!

As patranhas continuaram a proliferar naquele cérebro engenhoso.

Já no curso de sargentos, a que entretanto ascendera sabe-se lá porque artes de magia, que frequentava num quartel da Guarda ali para os lados da Ajuda, raro era o dia em que não ludibriava muitos dos seus camaradas de armas com as mentiras engenhosas e bem contadas que obrigava a engolir quem nelas caía. E havia sempre os incautos. Eram estes que, levados na ladainha enganadora do Zé “das Mentiras”, lá iam caindo com mais uns cigarritos e a ajuda numas cábulas para o safar no próximo teste.

E até mesmo os instrutores. Para estes, o expediente para o engodo passava por um rol de anedotas com sabor provinciano, em que o mesmo era expedito e de mente fértil. Raro era o dia em que, nos seus atrasos constantes às aulas que começavam às oito da manhã, não argumentasse uma esfarrapada desculpa, que passava pela avaria dos transportes públicos ou engarrafamentos nas filas de trânsito – o que nem era difícil de acontecer para quem, como ele, morava na Margem Sul, ali para os lados de Almada. Com mais ou menos boa vontade, lá iam embarcando os instrutores em mais uma mentira, umas vezes engolindo a peta, outras vezes fingindo que a engoliam.

Naquele dia de Janeiro…
…todo o pelotão estava firme na parada para a ordem unida, tentando vencer o frio que, no dizer do Capitão Aluízio, era “uma questão psicológica”. Este, à frente do pelotão, na sua hirta postura e seca fisionomia, dava largas passados, de mãos cruzadas atrás das costas, enquanto aguardava que o instruendo José Raposo se integrasse na formatura.

O Zé ”das Mentiras”, no seu aspecto tinhoso entre o comprometido e o inocente, de passos hesitantes, cabeça baixa e cigarro meio consumido ao canto da boca, passara há momentos pela retaguarda do pelotão, mais uma vez atrasado, como de costume. E o Capitão Aluízio, dirigindo levemente o olhar para o personagem indesejável, fingiu não o ter visto e continuou, qual hiena enjaulada, nas suas agigantadas passadas à frente do pelotão à espera que a presa chegasse para lhe saltar em cima.

E o Zé “das Mentiras” travava uma luta árdua consigo mesmo. Dizer que o raio do eléctrico 18 se avariara por alturas do Hospital Militar da Boa-Hora e tivera que fazer todo o percurso, até ao quartel da Ajuda, a pé e em franca correria, era uma condenação à morte. Desta vez a verdade condená-lo-ia ao cadafalso, que o mesmo era dizer ao Conselho Executivo do Curso com vista à sua exclusão definitiva. Tinham-lhe dado a última chance aquando “pisara o tapete” do Director do Curso – que por sinal era o Capitão Altino – no seu último atraso. Era facto incontestável que o atraso se devera à malfadada avaria… mas também era certo que o oficial instrutor jamais acreditaria em tal verdade.

«Dá licença, meu Capitão, que me integre na formatura?» – a voz tímida, quase inaudível, morria à nascença naquele corpo tinhoso a quem o oficial muito dificilmente reconhecia valor para comandante. Daí, a ânsia de lhe fazer a folha.

«Repita lá, instruendo, que o não ouviiiiiii» – o capitão, na sua voz esganiçada, obrigou mais uma vez o José Raposo a formular a pergunta.
«Ora então, senhor Raposo, qual é a desculpa desta vez para o seu atraso?» – a voz do capitão era agora melodiosa mas ostentava um falso tom, pronto a cair sobre o cachaço da presa para lhe ferrar os caninos e tirar-lhe o fôlego até à morte.

Incutia ainda mais medo ao medricas Raposo. Mas este, fazendo das tripas coração, esticando o peito como nunca o Zé “das Mentiras” o fizera quando dava vozes de comando ao pelotão em dias de instrução, explodiu:

«Fique sabendo, Vossa Senhoria, meu Capitão, que me deixei adormecer!»

O silêncio caiu como uma bomba no pelotão que, apesar de tudo, nestas horas de aperto estava em sintonia com o senhor das mentiras. Alguns olhares – uns trocistas outros irónicos – cruzaram-se entre os instruendos. O capitão mudou várias vezes de cor. Do amarelo ao branco e ao vermelho, cor da ira que sentia. Engoliu em seco. E, penitenciar-se-ia, se a coragem lho permitisse fazer, ele que estava de faca afiada para ver aquele indesejável fora do curso. Mas lá se conteve e até elogiou o instruendo Raposo por uma mentira que este deu àquele a comer.

«Ora até que enfim temos o senhor Raposo a dizer-nos uma verdade. Deixou-se dormir… mirem-se todos nele.»


do Autor in "entre nós, CUMPLICIDADES" (a editar)


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AlvaroGiesta
 
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