Poemas : 

CANÇÃO DO POEMA INÚTIL

 
ao domingos da mota, meu amigo


"Morreram todos a bordo, mas o barco persegue o intento que desde o porto vem buscando."

Seféris, com tradução do grego de José Paulo Paes



não me seduz mais poeta caminhar entre mortos neste pátio vazio
as palavras estão gastas como as minhas sandálias de couro cru
não quero mais percorrer essas ruas sem saída
as feridas que trago nos olhos não cicatrizam mais
deixei para trás as esquinas que carregava comigo
herança de madrugadas inúteis
de bebedeiras inúteis
esqueci também a mulher que me esperava com um sorriso
e um pôr-de-sol nas mãos muito brancas
preciso respirar noutro porto
este aqui não me serve mais: meu navio naufragou e poucos se salvaram
não preciso de sorrisos enviados em garrafas
se ancorei onde não pretendia foi por não conhecer a intimidade dos ventos
os ventos me enganaram poeta
deixei-me trair por uma bússola que pensei existir na palma da minha mão
o norte no entanto era outro e eu não consegui decifrá-lo
em compensação ainda estou vivo
e não sinto mais nenhuma necessidade do poema

____________

júlio, in Caso o telefone toque, não estou pra primavera


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
Texto
Data
Leituras
1688
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
17 pontos
9
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 08/09/2009 03:59  Atualizado: 08/09/2009 03:59
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8104
 Re: CANÇÃO DO POEMA INÚTIL
Muito embora o que está escrito vejo aqui a saudade de companheiros da escrita, uma insistência em escrever mesmo na solidão, resultante sobretudo da falta de entendimento e de resultados práticos no que é importante para o escritor, e o vazio que isso provoca. O dizer que não sente mais necessidade do poema será mais uma frase de autoconvencimento. Abraço.




Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 08/09/2009 12:53  Atualizado: 08/09/2009 12:55
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: CANÇÃO DO POEMA INÚTIL P/ Júlio Saraiva
"não quero mais percorrer essas ruas sem saída
as feridas que trago nos olhos não cicatrizam mais
deixei para trás as esquinas que carregava comigo
herança de madrugadas inúteis
de bebedeiras inúteis
esqueci também a mulher que me esperava com um sorriso"

Muitas vezes pergunto-me: Poderá o Poeta dissociar-se da personagem que inventa ou vive na sua cabeça?

Talvz sim, talvez não...
- a realidade e a fantasia tem uma fronteira tão ténue que muitas vezes somos vítimas dessa espécie de cela onde nos isolamos e rescrevemos o que o narrador (que ganha alma...) sente. e sofre. e ri... e chora e bebe para esquecer que sente...!

Tudo isto para dizer, que adorei!

Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
poesiadeneno
Publicado: 08/09/2009 22:43  Atualizado: 08/09/2009 22:43
Colaborador
Usuário desde: 27/06/2009
Localidade:
Mensagens: 1405
 Re: CANÇÃO DO POEMA INÚTIL
Memórias de emoções incontidas,que não se deixam guiar por bússolas ou outros meios de marear no quotidiano.

Poema com uma grande densidade poética.




Abraço

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/09/2009 20:10  Atualizado: 09/09/2009 20:15
 Re: CANÇÃO DO POEMA INÚTIL
Amigo Júlio,

Agradeço-lhe a dedicatória e a publicação desta sua Canção do Poema Inútil, que já tive oportunidade de ler, e de publicar num dos meus blogues (com variações). Poema na linha de tantos outros que põem em questão o porquê da poesia, dado que muitas das palavras que usamos estão mais do que gastas, estão carregadas com uma ganga cultural de que dificilmente se podem livrar: daí o poeta Manoel de Barros procurar as palavras que ainda não tenham idioma.

Obrigado,

Domingos da Mota

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/09/2009 05:41  Atualizado: 10/09/2009 05:41
 Re: CANÇÃO DO POEMA INÚTIL
“Cruz credo” que coisa mais sombria!