Entre café e cigarros, despenso. E entre café e cigarros penso que se pedir mais um café e acender outro cigarro haverão mais pretextos para despensar.
Café torrado, escuro como o chão africano, traz-me as terras quentes de onde vens. Sem açúcar que te traia, esse teu sabor amargo lembra a àspera realidade do mundo que eu procuro tocar, para além do berço de ouro em que nasci, cheio de promessas nobres. Sou o idílico europeu que despensa.
Mais um gole de café e parece que vejo a savana a crescer dos meus cabelos e um rio que nasce dos meus pés e se espalha por quilómetros, tapando asfalto e pedra e brotando das beiras relva fresca.
Pelos pilares deste prédio nasce casca dura e rugosa, um pouco por todo o lado consigo ver a mudança que se impõe, como se a natureza a reclamasse o que é seu. E, violenta e miraculosamente, todo este prédio vulgar se transforma num Imbondeiro monumental, cuja sombra protege milhões de pequenos seres, os humanos também. Das suas raízes nascem milhões de rebentos espaço afora, de onde se colhe alimento e abrigo para um horizonte infindo de gerações fartas. E tudo é festa e partilha, e não há mais olhares subnutridos, a não ser de uma alegria que nunca é suficiente. Deste Imbondeiro vejo o mundo, e sei que aqui é onde tudo começa.
Então, peço à minha amada Andorinha que voe e espalhe a boa nova: "A capital do despensamento é ali, no reino no Imbondeiro! Vem amigo, o tempo urge para que comeces a despensar, não percebes?".
Entre café e cigarros, despenso. E entre café e cigarros penso que se pedir mais um café e acender outro cigarro haverão mais pretextos para despensar.
Atónito, parvo de alegria, dou um trago no meu cigarro, e tudo se desfez. O asfalto sugou o rio, as pedras comeram a relva, o betão rebentou a casca em partículas de pó que nem cheiro emanavam. O Imbondeiro morreu e os seus filhos fugiram para o mundo de onde vieram. Estou só e penso.
Amanhã vou trabalhar.
Paulo Coutinho