Todos os Poetas

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Gazel da Lembrança de Amor
em 02/07/2012 15:02:36 (2426 leituras)
 Federico García Lorca

Tua lembrança não leves.
Deixa-a sozinha em meu peito,

tremor de alva cerejeira
no martírio de janeiro.

Dos que morreram separa-me
um muro de sonhos maus.

Dou pena de lírio fresco
para um coração de gesso.

A noite inteira, no horto,
meus olhos, como dois cães.

A noite inteira, correndo
os marmelos de veneno.

Algumas vezes o vento
uma tulipa é de medo,

é uma tulipa enferma
a madrugada de inverno.

Um muro de sonhos maus
me afasta dos que morreram.

A névoa cobre em silêncio
o vale gris de teu corpo.

Pelo arco do encontro
a cicuta está crescendo.

Mas deixa tua lembrança,
deixa-a sozinha em meu peito.

Federico García Lorca, in 'Divã do Tamarit'
Tradução de Oscar Mendes


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Cartas a um jovem poeta
em 24/06/2012 22:52:25 (2274 leituras)
Rainer Maria Rilke


(Primeira carta)


Paris, 17 de fevereiro de 1903

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke


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A Essência da Poesia
em 20/06/2012 21:34:54 (3413 leituras)
Pablo Neruda

Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio.
Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma acção passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a acção, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde.
E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum.



Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer" (Discurso na entrega do Prémio Nobel)


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Caprichos e relaxo (trecho)
em 15/06/2012 21:03:23 (2690 leituras)
Paulo Leminski

bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento


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Onde há inveja, não há amizade
em 13/06/2012 09:57:53 (2882 leituras)
Luís de Camões

Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo, que le duele. Ora temperai-me lá esta gaita, que nem assim, nem assim achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata somente como alheios de si, e com razão:

Pois somente nos é dada
para que ganhemos nela
o que sabemos.
Se se gasta mal gastada,
juntamente com perdê-la,
nos perdemos.

Enfim, esta minha Senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é,

ponderemos e vejamos
que ganhamos em viver
os que nascemos:
veremos que não ganhamos
senão algum bem fazer,
se o fazemos.

E, por isso, respeitando

que o porvir tal será,
entesouremos ;
porque [ao certo] não sabemos
quando a morte pedirá
que lhe paguemos.

Nunca vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte; sendo mais aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude. Mas, contudo, com seu pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos; que tudo para com ela é um lume de palhas. Nenhuma cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem na maior bonança, como ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras, dando com os corpos à costa; e se vem à mão, com as almas no inferno, que é bem ruim gasalhado:

E pois todos isto temos,
não nos engane a riqueza,
por que tanto esmorecemos,
e trás que vamos;
já que temos a certeza
que, quando mais a queremos, a deixamos.

Gastamos em alcançá-la
a vida; e quando queremos
usar dela,
nos tira a morte lográ-la;
assim que a Deus perdemos
e a ela.

Luís Vaz de Camões, in "Cartas"


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Cerimonial do Amor
em 08/06/2012 01:16:30 (3440 leituras)
Antoine de Saint-Exupéry

Se não houver esperanças de que o teu amor seja recebido, o que tens a fazer é não o declarar. Poderá desenvolver-se em ti, num ambiente de silêncio. Esse amor proporciona-te então uma direcção que permite aproximares-te, afastares-te, entrares, saíres, encontrares, perderes. Porque tu és aquele que tem de viver. E não há vida se nenhum deus te criou linhas de força.
Se o teu amor não é recebido, se ele se transforma em súplica vã como recompensa da tua fidelidade, se não tens coração para te calares, nessa altura vai ter com um médico para ele te curar. É bom não confundir o amor com a escravatura do coração. O amor que pede é belo, mas aquele que suplica é amor de criado.
Se o teu amor esbarra com o absoluto das coisas, se por exemplo tem de franquear a impenetrável parede de um mosteiro ou do exílio, agradece a Deus que ela por hipótese retribua o teu amor, embora na aparência se mostre surda e cega. Há uma lamparina acesa para ti neste mundo. Pouco me importa que tu não possas servir-te dela. Aquele que morre no deserto tem a riqueza de uma casa longínqua, embora morra.
Se eu construir almas grandes e escolher a mais perfeita para a rodear de silêncio, ficarás com a impressão de que ninguém recebe nada com isso. E, no entanto, ela enobrece todo o meu império. Quem quer que passa ao longe, prosterna-se. E nascem os sinais e os milagres.
Não importa que o amor que alguém nutre por ti seja um amor inútil. Desde que tu lhe correspondas, caminharás na luz. Grande é a oração à qual só responde o silêncio; basta que o deus exista.
Se o teu amor é aceite e há braços que se abrem para ti, então pede a Deus que salve esse amor de apodrecer. Eu temo pelos corações cumulados.




Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"


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O que deve ser dito (Günter Grass)
em 29/05/2012 15:27:43 (2413 leituras)
Outros Autores

O que deve ser ditoOpen in new window (Günter Grass)












Porque guardo silêncio há demasiado tempo
sobre o que é manifesto
e se utilizava em jogos de guerra
em que no fim, nós sobreviventes,
acabamos como meras notas de rodapé.

É o suposto direito a um ataque preventivo,
que poderá exterminar o povo iraniano,
conduzido ao júbilo
e organizado por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
do fabrico de uma bomba atômica.

Mas por que me proibiram de falar
sobre esse outro país [Israel], onde há anos
- ainda que mantido em segredo –
se dispõe de um crescente potencial nuclear,
que não está sujeito a nenhum controle,
pois é inacessível a inspeções?

O silêncio geral sobre esse fato,
a que se sujeitou o meu próprio silêncio,
sinto-o como uma gravosa mentira
e coação que ameaça castigar
quando não é respeitada:
“antissemitismo” se chama a condenação.

Agora, contudo, porque o meu país,
acusado uma e outra vez, rotineiramente,
de crimes muito próprios,
sem quaisquer precedentes,
vai entregar a Israel outro submarino
cuja especialidade é dirigir ogivas aniquiladoras
para onde não ficou provada
a existência de uma única bomba,
se bem que se queira instituir o medo como prova… digo o que deve ser dito.

Por que me calei até agora?

Porque acreditava que a minha origem,
marcada por um estigma inapagável,
me impedia de atribuir esse fato, como evidente,
ao país de Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.

Por que motivo só agora digo,
já velho e com a minha última tinta,
que Israel, potência nuclear, coloca em perigo
uma paz mundial já de si frágil?

Porque deve ser dito
aquilo que amanhã poderá ser demasiado tarde [a dizer],
e porque – já suficientemente incriminados como alemães –
poderíamos ser cúmplices de um crime
que é previsível,
pelo que a nossa cota-parte de culpa
não poderia extinguir-se
com nenhuma das desculpas habituais.

Admito-o: não vou continuar a calar-me
porque estou farto
da hipocrisia do Ocidente;
é de esperar, além disso,
que muitos se libertem do silêncio,
exijam ao causador desse perigo visível
que renuncie ao uso da força
e insistam também para que os governos
de ambos os países permitam
o controle permanente e sem entraves,
por parte de uma instância internacional,
do potencial nuclear israelense
e das instalações nucleares iranianas.

Só assim poderemos ajudar todos,
israelenses e palestinos,
mas também todos os seres humanos
que nessa região ocupada pela demência
vivem em conflito lado a lado,
odiando-se mutuamente,
e decididamente ajudar-nos também.

(Tradução: Baby Siqueira Abrão)


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Das vantagens de ser bobo
em 20/05/2012 18:28:34 (5820 leituras)
Clarice Lispector

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.




Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector por Aracy Balabanian


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O Banheiro
em 16/05/2012 20:59:33 (4628 leituras)
Millôr Fernandes

Não é o lar o último recesso do homem civilizado, sua última fuga, o derradeiro recanto em que pode esconder suas mágoas e dores. Não é o lar o castelo do homem. O castelo do homem é seu banheiro. Num mundo atribulado, numa época convulsa, numa sociedade desgovernada, numa família dissolvida ou dissoluta, só o banheiro é um recanto livre, só essa dependência da casa e do mundo dá ao homem um hausto de tranquilidade.

É ali que ele sonha suas derradeiras filosofias e seus moribundos cálculos de paz e sossego.

Outrora, em outras eras do mundo, havia jardins livres, particulares e públicos, onde o homem podia se entregar a sua meditação e a sua prece. Desapareceram os jardins particulares, pois o homem passou a viver montado em lajes, tendo como ilusão de floresta duas ou três plantas enlatadas que não são bastante grandes para ocultar seu corpo da fúria destrutiva da proximidade forçada de outros homens. Não encontrando mais as imensidões das praças romanas que lhe davam um sentido de solidão, não tendo mais os desertos, hoje saneados, irrigados e povoados, faltando-lhe as grutas dos
companheiros de Chico de Assis, onde era possível refletir e ponderar, concluir e amadurecer, o homem foi recuando, desesperou e só obteve um instante de calma no dia em que de novo descobriu seu santuário dentro de sua própria casa: o banheiro.

Se não lhe batem à porta outros homens (pois um lar, por definição, é composto de mulher, marido, filho, filha e um ou outro parente, próximo ou remoto, todos com suas necessidades físicas e morais, ele, ali, e só ali, por alguns instantes, se oculta, se introspecciona, se reflete, se calcula e julga. Está só consigo mesmo, tudo é segredo, ninguém o interroga, pressiona, compele, tenta, sugere, assalta.

Aqui é que o chefe da casa, já passando dos quarenta anos, olha os cabelos já grisalhos, os claros da fronte, e reflete, sem testemunhas nem cúmplices, sobre os objetivos negativos da existência que o estão conduzindo, embora bem sucedido na vida prática, a essa lenta degradação física. Examina com calma sua fisionomia, põe-se de perfil, verifica o grau de sua obesidade, reflete sobre vãs glórias passadas e decide encerrar definitivamente suas pretensões sentimentais, ânsia cada vez maior e mais constante num mundo encharcado de instabilidades.

É nesse mesmo banheiro que o filho de vinte anos examina a vaidade de seus músculos, vê que deve trabalhar um pouco mais seus peitorais, ensaia seu sorriso de canto de boca, fica com um olhar sério e profundo que pretende usar mais tarde
naquela senhora bem mais velha do que ele, mas ainda cheia de encantos e promessas. É aqui que a filha de 17 anos vem ler o bilhete secreto que recebeu do primo, cujos sentimentos são insuspeitados pelo resto da família. Já leu a carta antes, em vários lugares, mas aqui tem o tempo e a solidão necessários para degustá-la e suspirá-Ia. É aqui também que ela vem
verificar certo detalhe físico que foi comentado na rua, quando passava por um grupo de operários de obras, comentário que na hora ela ouviu com um misto de medo e desprezo.

É aqui que a dona de casa, a mãe de família, um tanto consumida pelos anos, vem chorar silenciosamente no dia em que
descobre ou suspeita de uma infidelidade, erro ou intenção insensata por parte do marido, filho, filha, irmãos. Aqui ninguém saberá, ninguém a surpreenderá, pode amargurar-se até os soluços e sair, depois de alguns momentos, pronta e tranqüila, com a alma lavada e o rosto idem, para enfrentar sorridente os outros misteriosos e distantes seres que vivem no mesmo lar.

Não há, em suma, quem não tenha jamais feito uma careta equívoca no espelho do banheiro, nem existe ninguém que nunca tenha tido um pensamento genial ao sentir sobre seu corpo o primeiro jato de água fria. Aqui temos a paz para a autocrítica, a nudez necessária para o frustrado sentimento de que nossos corpos não foram feitos para a ambição de nossas almas, aqui entramos sujos e saímos limpos, aqui nos melhoramos o pouco que nos é dado melhorar, saímos mais frescos, mais puros, mais bem dispostos.

O banheiro é o que resta de indevassável para a alma e o corpo do homem moderno, e queira Deus que Le Corbusier ou Niemeyer não pensem em fazê-lo também de vidro, numa adaptação total ao espírito de uma humanidade cada vez mais gregária, sem o necessário e apaixonante sentimento da solidão ocasional.

Aqui, neste palco em que somos os únicos atores e espectadores, neste templo que serve ao mesmo tempo ao deus do narcisismo e ao da humildade, é que a civilização hodierna encontrará sua máxima expressão, seu ultimo espelho que é o propriamente dito.

Xantipa, que diabo, me joga essa toalha!


Extraido do site: Catraca Livre


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O Quinto Império
em 11/05/2012 17:58:31 (18117 leituras)
Fernando Pessoa

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz --
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa -- os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?


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Mãe
em 10/05/2012 17:18:41 (4825 leituras)
Cora Coralina

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições…
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.


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A Revolução da Bondade
em 06/05/2012 15:40:55 (4157 leituras)
José Saramago

Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira» fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática acção perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.

José Saramago, in " Folha de S. Paulo, Outubro 1995"


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Mater
em 03/05/2012 20:39:15 (2017 leituras)
Olavo Bilac

Tu, grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava,
Para teus filhos és, no caminho da vida,
Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava
À longe Terra Prometida.

Jorra de teu olhar um rio luminoso.
Pois, para batizar essas almas em flor,
Deixas cascatear desse olhar carinhoso
Todo o Jordão do teu amor.

E espalham tanto brilho as asas infinitas
Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas,
Que o seu grande dano sobe, quando as agitas,
E vai perder-se entre as estrelas.

E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,
Fogem da humana dor, fogem do humano pé,
E, à procura de Deus, vão subindo essa escada,
Que é como a escada de Jacó.




Olavo Bilac, in "Poesias"


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A Poesia não se Inventou para Cantar o Amor
em 24/04/2012 14:35:54 (4023 leituras)
Eça de Queirós

A poesia não se inventou para cantar o amor — que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo. A adoração ou captação da divindade e a estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: — e a poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e conduzindo os homens. Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ansia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo — é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do dinheiro, muito para baixo da política... É uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem. «Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora!
Ora quando uma arte teima em exprimir unicamente um sentimento que se tornou secundário nas preocupações do homem — ela própria se torna secundária, pouco atendida e perde a pouco e pouco a simpatia das inteligências. Por isso hoje, tão tenazmente, os editores se recusam a editar, e os leitores se recusam a ler, versos em que só se cante de amor e de rosas. E o artista que não quer ser uma voz clamando no deserto e um papel apodrecendo no armazém, começa a evitar o amor como tema essencial da sua obra.



Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'


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A Consciência Débil da Nossa Autenticidade
em 19/04/2012 19:32:32 (1851 leituras)
Vergílio António Ferreira

A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registo disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira.
Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.




Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'


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Amor e Crença
em 17/04/2012 14:14:49 (6161 leituras)
Augusto dos Anjos

Sabes que é Deus? Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?

Ah! Se queres saber a sua grandeza
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o Templo do Bem. Na altura imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a crença,
Ama, pois, crê em Deus e... sê bendita!


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Vida e Obra
em 16/04/2012 13:37:17 (3209 leituras)
Vergílio António Ferreira

Às 15 horas do dia 28 de Janeiro, sexta-feira, de 1916, em Melo, concelho de Gouveia, nasce Vergílio António Ferreira, filho de António Augusto Ferreira e Josefa Ferreira.

Em 1920, os pais de Vergílio Ferreira emigram para os Estados Unidos, deixando-o, com seus irmãos, ao cuidado de suas tias maternas. Esta dolorosa separação é descrita em Nitido Nulo. A neve - que virá a ser um dos elementos fundamentais do seu imaginário romanesco é o pano de fundo da infância e adolescência passadas na zona da Serra da Estrela.

Aos 10 anos, após uma peregrinação a Lourdes, entra no seminário do Fundão, que frequentará durante seis anos. Esta vivência será o tema central de Manhã Submersa.


Em 1932, deixa o seminário e acaba o Curso Liceal no Liceu da Guarda. Começa a dedicar-se à poesia. Entra para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuando a dedicar-se à poesia, nunca publicada, salvo alguns versos lembrados em Conta-Corrente e, em 1939, escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe. Licenciou-se em Filologia Clássica em 1940. Conclui o Estágio no Liceu D.João III (1942), em Coimbra. Começa a leccionar em Faro. Publica o ensaio "Teria Camões lido Platão?" e, durante as férias, em Melo, escreve "Onde Tudo Foi Morrendo". Em 1944, passa a leccionar no Liceu de Bragança, publica "Onde Tudo Foi Morrendo" e escreve Vagão "J". Na sua vida de professor liceal, há dois momentos fundamentais: a sua estada em Évora (1945-1958) - que entrará para o nosso imaginário através de Aparição - e a sua vinda para Lisboa (1959), onde ensinou no Liceu Camões até à sua reforma.

A primeira fase do seu percurso romanesco, agora retirada da edição da Obra Completa enquadra-se no neo-realismo então vigente. Ainda assim, Vagão J (1946) opera já uma pequena revolução sem consequências: o movimento neo-realista passou-lhe ao lado, e o autor, perante a incompreensão da crítica, recuou e só viria a reincidir muito mais tarde.


Com Mudança (1949) começa Vergílio Ferreira a conquistar a sua voz própria. Aliás, em maior rigor, dever-se-ia dizer que é a voz própria que começa a conquistar o seu autor. De facto, Mudança estava arquitectado para ser um romance neo-realista exemplar - e em muitos aspectos é-o; mas é também outra coisa, que posteriormente se veio a interpretar como sendo a deslocação do neo-realismo para o existencialismo. Tal deslocação ter-se-lhe-á imposto inconscientemente no processo de escrita, sobretudo no tratamento do tempo e da figura da infância. Na velocidade do tempo que estrutura o romance - e que decorre do modo de representação neo-realista: materialismo histórico e materialismo dialéctico, a figura da infância enquanto queda para o passado e queda tanto mais desamparada quanto esse passado não é apenas uma memória mas sobretudo o sem fundo que fecha e vela o próprio sentido do nosso trânsito pelo tempo, a figura da infância introduz a desaceleração que toda a hipótese de um sentido arqueológico introduz. Não significa isso que essa atenção ao mais original solucione os problemas de sentido - ela desloca apenas as coordenadas da procura. Mas com esse movimento transforma-se também o modo de representação.


É já de uma forma deliberada que Vergílio Ferreira se distancia do neo-realismo nos romances escritos antes de Aparição (1959) mas só publicados depois deste. Em Apelo da Noite (1963) reivindica-se face ao homem de acção, o "crime de pensar "; em Cântico Final (1960) é a arte, como encontro de um "mundo original", de um sagrado ou absoluto agnóstico, que se furta a qualquer compromisso ideológico. Mas é Aparição - que juntamente com A Sibila (1953) de Augustina Bessa-Luís o romance português contemporâneo - que imporá o seu universo romanesco, seja naquilo a que se chamou, não sem verdade, mas com alguma pressa reducionista, o eu existencialismo, seja no seu estilo ensaístico ou filosofante. Tentando descrever a experiência , no limite inenarrável, do aparecimento do eu a si próprio, e circunscrevendo-a dentro de uma problemática decididamente metafísica e existencial, Aparição é o limiar de uma agónica mas sempre deslumbrada interrogação sobre a condição humana. Estrela Polar (1962) e sobretudo Alegria Breve (1965), onde o pathos da sua escrita atinge o ponto de máxima exacerbação mas também de máxima perfeição, além de aprofundarem e completarem a temática de Aparição, introduzem um experimentalismo que terá larga descendência na nossa ficção. A partir de Nítido Nulo (1972) o tom da sua obra começa a ser matizado pela ironia. É uma ironia que vem daquilo que o desgaste ensina . E o que ele ensina é que toda a verdade se esvazia, toda a evidência se torna opaca, todas as ideias pesam para o lado da morte. O pathos até aí predominante era o era o tom de quem falava do interior de uma evidência estética, de uma Stimmung umbilical. Nunca em Vergílio Ferreira uma árvore provoca náusea ou uma praia com sol induz um crime absurdo. Se há náusea (mas praticamente não a há) ou absurdo (este sim, mais visível), eles não começam logo na facticidade do mundo mas somente na condição humana em si mesma. O mundo apenas é. Experienciá-lo esteticamente é já um limiar de sentido. Daí que os narradores vergilianos se sintam tentados a configurá-lo como uma verdade, existencial e não sistemática, é certo, mas suficientemente segura para se afirmar contra todas as ideologias. Ora o que acontece no "niilismo activo " de Nítido Nulo, no seu "morrer tudo", é tudo envolve também esta hipótese de verdade que os narradores anteriores utilizavam como escudo no combate cultural. O deslizar insensível da aisthesis para o logos é agora difícil, e sê-lo-á cada vez mais. Por isso os romances se começam a distribuir por dois espaços - tempo: um passado onde decorre o diferendo ideológico - cultural, diferendo não só incomensurável como, em última instância (revelada por aquilo que o desgaste ensina), inútil; e um presente de pura afirmação de ser.

O primeiro pólo perderá progressivamente a sua capacidade de engendramento narrativo, o combate que nele se desenrolará é apenas o ruído do mundo, não uma alínea de qualquer história teleologicamente configurada - daí a paralisia da história em Signo Sinal (1979). O segundo pólo, impossibilitado agora de funcionar como " fundamento mítico " de uma macronarrativa, apresenta-se como uma espécie de justaposição de hauikus, de nós de revelação que não constróem o "sentido de um final " mas uma litania de apaziguamento, uma pietas para com aquilo que mais primordialmente somos - um sujeito - casa atravessado por tudo o que vem de todos os pontos cardeais, e todavia lateral a essas múltiplas orientações, sempre não sabendo, como em Para Sempre (1983) ou nas séries de Conta-Corrente (1890 a 1992).


É este não - saber que obriga Vergílio Ferreira ao continuar da escrita e faz que os narradores vergilianos envelheçam como o seu autor. Envelhecer, por exemplo, é passar de filho a pai. De Até ao fim (1987) a Cartas a Sandra (1996), o narrador, entre outras coisas, é um pai a quem o filho morre. O que morre na morte do filho é aquela força que não suporta a suspensão da história e se autodestrói na procura da resposta que não há. Poder-se-ia mesmo dizer que a morte do filho é a prova por absurdo de que a lateralidade axiológica em que se coloca o pai não é simplesmente a desistência do cansaço mas a sabedoria da suplementaridade, seja a do puro possível da verdade branca do mar que move Até ao Fim, seja a da ironia dos contrafactuais ontológicos que se experimenta em Na Tua Face (1993).


Envelhecer é também passar da despesa do tempo à sua reinvenção no absoluto da memória. Mas esta lição (ou condição) proustiana tem em Vergílio Ferreira as condicionantes contemporâneas de uma sociedade tardo-capitalista, aquela em que a redescrição metafórica do que foi não pode já competir com os meios tecnológicos de representação (cinema, TV, vídeo, etc.) e por isso constrói a afectividade do acontecimento puro: " Não bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas só esse voo. Não bem a sua juventude eterna mas a eternidade. Não o gracioso dela mas a graça " (Em Nome da Terra , 1990).

Claro que há ainda romance, e até na sua dimensão mais consensual e acidentalmente romanesca, que é a da história de amor. Mas se, na sequência da tradição, também aqui o amor é aquilo que só se sabe depois, diferentemente dela, este depois não é a origem reencontrada mas um frágil presente que se sustenta apenas da escrita do nome amado, como em Cartas a Sandra, romance que deixa incompleto e que foi publicado no ano da sua morte. Vergílio Ferreira morre em Lisboa, a 1 de Março de 1996 e é sepultado em Melo.


Neste presente, que é a perda serena de todas as estórias, desenha-se com nitidez a dificuldade contemporânea do fazer sentido. É dessa crise (de cultura e de civilização), das suas várias alíneas polemizantes (marxismo, estruturalismo, filosofia da linguagem), mas também daquilo que cria a esperança de um depois dela (a arte, os autores que se amam, a insistência do pensamento), que falam os inúmeros ensaios que Vergílio Ferreira também escreveu, com muito particular acerto Carta ao Futuro (1958), Inovação do meu corpo (1969) e Pensar (1992).

Fonte: http://vferreira.no.sapo.pt/vida.html

"Um cantor fixa um tema. Mas esse tema, revelando, como revela, um interesse, revela sobretudo que foi só em torno dele que o artista pôde realizar-se como tal."
— Vergílio Ferreira

Atravessa a sua obra o discurso da solidão, como um dos aspectos mais profundos da condição humana, sempre acompanhado pelo silêncio, que advém do abandono da entidade divina.
Perpassa, na obra deste autor, uma tentativa de elevar os problemas individuais à generalidade dos Homens uma vez que não se refere a um "eu" que fala de si, mas um "EU" mais amplo que se refere a todos os Homens. Qualquer que seja a problemática tratada pelo este autor ela parte da reflexão sobre a questão do "eu" mas essa questionação avança, quase sempre, no sentido do homem ao Homem.
De qualquer forma, verificamos que em Vergílio Ferreira, a consciência do "eu" e da sua solidão se manifestam através da visão, instrumento privilegiado de acesso ao pensamento reflexivo. As personagens de Vergílio Ferreira assumem um papel questionador, procurando esse sentido uma vez que o mundo aparecia (…) sob a forma de uma absurda estupidez.
Por este motivo, Carlos Ceia observa que "o romance de Vergílio Ferreira é uma interrogação sobre a humanidade do homem".
Os protagonistas de Vergílio Ferreira são, antes de mais, questionadores e problematizores do real: uns desvinculadas ou em vias de se desvincularem da vida; outros, à procura de uma Estrela Polar, guia no caminho ou à espera da resposta E se Deus não existisse?

Durante treze anos (1981-1994) Vergílio Ferreira publicou nove volumes de diário, ao qual pôs o título genérico de Conta-Corrente. Os textos contidos nesses volumes vão desde Fevereiro de 1969 (altura em que iniciou a sua escrita) até Dezembro de 1992 (altura em que terá abandonado o género). Os volumes subdividem-se em duas séries: a primeira composta por cinco volumes e a segunda composta por quatro volumes.
A publicação do diário de Vergílio Ferreira foi uma das poucas tempestades na bonançosa comunidade literária pós 25 de Abril, como também é «um documento precioso sobre a evolução da ideias do século XX português. Vergílio Ferreira era um homem atento a tudo aquilo que o rodeava, quer tivesse interesse político, ou social, ou estético, ou literário. O seu diário veio, assim, agitar a comunidade portuguesa pensante, criando alguns focos de conflito por um lado e manifestações de apoio por outro.
O autor já tinha por várias vezes tentado escrever um diário, mas foi só em 1969 que leva o seu projecto em frente: «Fiz cinquenta e três anos há dias. (…) É a opinião do Registo Civil (…). E então lembrei-me: e se eu tentasse uma vez mais o registo diário do que me foi afectando?» . Esta frase é sem dúvida elucidativa das intenções do autor: primeiro, tentar escrever um registo diário; segundo, escrever nele tudo aquilo que o foi marcando. Nesta frase também se pode verificar que não é a primeira vez que o autor tenta escrever um diário: «e se eu tentasse mais uma vez».
O tentar escrever um diário é algo que está sempre presente, e, muitas vezes, a escrita desse mesmo diário torna-se difícil, pois o autor sente que se está a expor em demasiado perante o leitor, sente que o leitor pode “lê-lo”: «Extremamente difícil continuar este diário.(…) Que me leiam um romance, não me perturba. Mas não que me leiam a mim.» Existe a questão do íntimo sempre presente ao longo deste volume e o próprio autor refere que colocar ao alcance dos seus leitores a sua intimidade, os seus desabafos, não é propriamente algo que lhe agrada: «o desejo de “desabafar” não é propriamente um desejo sublime». Apesar de tudo a escrita do diário prossegue.
Mas, o que levou o autor a continuar o seu diário?
Segundo Eduardo Prado Coelho o diário «recorta sobre um fundo de impossibilidade de escrita. É na medida em que Vergílio Ferreira não tem a certeza de ser capaz de escrever ainda que suporta deslizar para este devir-feminino da escrita de um diário» . O próprio Vergílio Ferreira coloca uma condição para continuar a escrever o diário: «A continuar, só optando pelo registo que transcende os limites pessoais.» . No entanto, a escrita do diário prosseguiu.

Ficção
1943 O Caminho fica Longe
1944 Onde Tudo foi Morrendo
1946 Vagão "J"
1949 Mudança
1953 A Face Sangrenta
1954 Manhã Submersa
1959 Aparição
1960 Cântico Final
1962 Estrela Polar
1963 Apelo da Noite
1965 Alegria Breve
1971 Nitido Nulo
1972 Apenas Homens
1974 Rápida, a Sombra
1976 Contos
1979 Signo Sinal
1983 Para Sempre
1986 Uma Esplanada Sobre o Mar
1987 Até ao Fim
1990 Em Nome da Terra
1993 Na Tua Face
1996 Cartas a Sandra
1976 A Palavra Mágica (publicada em separado, no entanto faz parte do livro Contos)
sexto filho

Ensaios
1943 Sobre o Humorismo de Eça de Queirós
1957 Do Mundo Original
1958 Carta ao Futuro
1963 Da Fenomenologia a Sartre
1963 Interrogação ao Destino, Malraux
1965 Espaço do Invisivel I
1969 Invocação ao Meu Corpo
1976 Espaço do Invisivel II
1977 Espaço do Invisivel III
1981 Um Escritor Apresenta-se
1987 Espaço do Invisivel IV
1988 Arte Tempo

Diários
1980 Conta-Corrente I
1981 Conta-Corrente II
1983 Conta-Corrente III
1986 Conta-Corrente IV
1987 Conta-Corrente V
1992 Pensar
1993 Conta-Corrente-nova série I
1993 Conta-Corrente-nova série II
1994 Conta-Corrente-nova série III
1994 Conta-Corrente-nova série IV

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Verg%C3%ADlio_Ferreira


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O cântico da terra
em 10/04/2012 19:19:09 (2671 leituras)
Cora Coralina

Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.

Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.

E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.

Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.


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Há homens que lutam um dia...
em 09/04/2012 22:40:08 (11938 leituras)
Bertold Brecht

Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis


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Se alguém bater um dia à tua porta
em 09/04/2012 22:27:53 (6879 leituras)
Fernando Pessoa

Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!

Fernando Pessoa, 5-9-1934


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As rosas do tempo
em 09/04/2012 22:05:32 (4793 leituras)
Carlos Drummond de Andrade

Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,

as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.

Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.







"Viola de bolso". In: TELES, G.M. (org.) Poesia completa.. Intr. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.


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Oxford
em 09/04/2012 21:41:10 (2266 leituras)
Vinícius de Moraes


Oh, partir pela noite enluarada
No puro anseio de chegar lá onde
A minha doce e fugitiva amada
Na madrugada, trêmula, se esconde...

Oh, sentir palpitar em cada fronte
O amor, oculto; e ouvir a voz velada
Da última estrela que do céu responde
Numa cintilação inesperada...

Oh, cruzar solidões, viver soturnas
Magias, e entre lágrimas noturnas
Ver o tempo passar, hora por hora

Para o instante em que, isenta de desejo
Ela despertará sob o meu beijo
Enquanto a treva se desfaz lá fora...

Oxford, 1938.


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Poesia Matemática
em 02/04/2012 21:30:26 (5446 leituras)
Millôr Fernandes


Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?"indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.


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Elegia: Indo para o leito
em 14/03/2012 17:08:02 (2289 leituras)
Outros Autores

Elegia: Indo para o leito
(John Donne)

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.


Tradução: Augusto de Campos


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A Tua Roca
em 28/02/2012 22:50:51 (2481 leituras)
Outros Autores





Quando te vejo à noitinha
Nessa cadeira sentada,
Xaile cruzado no peito,
Na cinta a roca enfeitada.

Os olhos postos na estriga,
Volvendo o fuso nos dedos,
Os lábios contando ao fio
Da tua boca segredos.

Eu digo, sem que tu oiças,
Pondo os olhos na tua roca:
Se eu um dia fosse estriga,
Beijaria aquela boca!

Que eu nunca te vi fiando
Sem invejar os desvelos
Com que desfias do linho
Os brancos, finos cabelos!

E aquela fita de seda
Com que enleias o fiado,
Irmã do lencinho verde
Que trazes no penteado?

Parece aquilo um abraço
De um amor que é todo nosso,
A trança do teu cabelo
Em volta do meu pescoço!

É por isso que eu murmuro
Vendo a fita que se enreda:
Quem me dera ser a estriga,
E ela a fitinha de seda!

Eu já sei o que sinto,
Se tristeza, se ventura,
Mal que suspendes a roca
Da tua breve cintura!

Penso que fias nos dedos
Os dias da minha vida,
Ao pé de ti sempre curta,
Ao longe sempre comprida!

Pareces-me um ramalhete
Sentada nessa cadeira,
E a fita da tua roca
A silva de uma roseira.

Meu amor, quando acabares
De espiar a tua estriga
E ouvires por alta noite
Soluçar uma cantiga,

Sou eu que estou a lembrar-me
Da tua divina boca,
E penso que em mim são dados
Os beijos que dás na roca!

Peninsulares - José Simões Dias (1844-1899)


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A uma mulher amada
em 25/02/2012 12:10:38 (3808 leituras)
Outros Autores


Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.

Safo
Tradução por Décio Pignatari


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Quadras ao Gosto Popular
em 16/02/2012 12:19:54 (17264 leituras)
Fernando Pessoa



Cantigas de portugueses
São como barcos no mar —
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar.

Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per'las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.

A terra é sem vida, e nada
Vive mais que o coração...
E envolve-te a terra fria
E a minha saudade não!

Deixa que um momento pense
Que ainda vives ao meu lado...
Triste de quem por si mesmo
Precisa ser enganado!

Morto, hei de estar ao teu lado
Sem o sentir nem saber...
Mesmo assim, isso me basta
P'ra ver um bem em morrer.

Não sei se a alma no Além vive...
Morreste! E eu quero morrer!
Se vive, ver-te-ei; se não,
Só assim te posso esquecer.

Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou —
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...

Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por 'star estragado
Que ainda não mo devolveste ...

A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.

Tens o leque desdobrado
Sem que estejas a abanar.
Amor que pensa e que pensa
Começa ou vai acabar.

Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?

Toda a noite ouvi no tanque
A pouca água a pingar.
Toda a noite ouvi na alma
Que não me podes amar.

Dias são dias, e noites
São noites e não dormi...
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.

Trazes a rosa na mão
E colheste-a distraída...
E que é do meu coração
Que colheste mais sabida?

Teus olhos tristes, parados,
Coisa nenhuma a fitar...
Ah meu amor, meu amor,
Se eu fora nenhum lugar!

Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.

No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.

Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.

Rosmaninho que me deram,
Rosmaninho que darei,
Todo o mal que me fizeram
Será o bem que eu farei.

Tenho um relógio parado
Por onde sempre me guio.
O relógio é emprestado
E tem as horas a fio.

Quando é o tempo do trigo
É o tempo de trigar,
A verdade é um postigo
A que ninguém vem falar.

Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.

Em vez da saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.

Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.

Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.

Tens uma rosa na mão.
Não sei se é para me dar.
As rosas que tens na cara,
Essas sabes tu guardar.

Fomos passear na quinta,
Fomos à quinta em passeio.
Não há nada que eu não sinta
Que me não faça um enleio.

Os alcatruzes da nora
Andam sempre a dar e dar,
É para dentro e pra fora
E não sabem acabar.

Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina ...

Tens um livro que não lês,
Tens uma flor que desfolhas;
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.

Nunca dizes se gostaste
Daquilo que te calei.
Sei bem que o adivinhaste.
O que pensaste não sei.

O vaso que dei àquem
Que não sabe quem lho deu
Há de ser posto à janela
Sem ninguém saber que, é meu.

Tive uma flor para dar
A quem não ousei dizer
Que lhe queria falar,
E a flor teve que morrer.

Quando olhaste para trás,
Não supus que era por mim.
Mas sempre olhaste, e isso faz
Que fosse melhor assim.

Todos os dias eu penso
Naquele gesto engraçado
Com que pegaste no lenço
Que estava esquecido ao lado.

Tens uma salva de prata
Onde pões os alfinetes...
Mas não tem salva nem prata
Aquilo que tu prometes.

Adivinhei o que pensas
Só por saber que não era
Qualquer das coisas imensas
Que a minh'alma sempre espera.

Ouvi-te cantar de dia.
De noite te ouvi cantar.
Ai de mim, se é de alegria!
Ai de mim, se é de penar!

Por um púcaro de barro
Bebe-se a água mais fria.
Quem tem tristezas não dorme,
Vela para ter alegria.

O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.

Teu xaile de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.

O manjerico comprado
Não é melhor que o que dão.
Põe o manjerico ao lado
E dá-me o teu coração.

Rosa verde, rosa verde,...
Rosa verde é coisa que há?
É uma coisa que se perde
Quando a gente não está lá.

A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.

Há verdades que se dizem
E outras que ninguém dirá.
Tenho uma coisa a dizer-te
Mas não sei onde ela está.

Quando ao domingo passeias
Levas um vestido claro.
Não é o que te conheço
Mas é em ti que reparo.

Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.

Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar.
E esperasse no outro dia.

Nuvem do céu, que pareces
Tudo quanto a gente quer,
Se tu, ao menos, me desses
O que se não pode ter!

O burburinho da água
No regato que se espalha
É como a ilusão que é mágoa
Quando a verdade a baralha.

Leve sonho, vais no chão
A andares sem teres ser.
És como o meu coração
Que sente sem nada ter.

Vai alta a nuvem que passa.
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.

Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo.
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.

Aquela senhora velha
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: "Não incomodo".

Maria, se eu te chamar,
Maria, vem cá dizer
Que não podes cá chegar.
Assim te consigo ver.

Boca com olhos por cima
Ambos a estar a sorrir...
Já sei onde está a rima
Do que não ouso pedir.

Quem lavra julga que lavra
Mas quem lavra é o que acontece...
Não me dás uma palavra
E a palavra não me esquece.

Tinhas um pente espanhol
No cabelo Português,
Mas quando te olhava o sol,
Eras só quem Deus te fez.

Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.

Quem me dera, quando fores
Pela rua sem me ver,
Supor que há coisas melhores
E que eu as pudera ter.

Acendeste uma candeia
Com esse ar que Deus te deu.
Já não é noite na aldeia
E, se calhar, nem no céu.

Eu te pedi duas vezes
Duas vezes, bem o sei,
Que por fim me respondesses
Ao que não te perguntei.

Não digas mal de ninguém
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.

Todas as coisas que dizes
Afinal não são verdade.
Mas, se nos fazem felizes,
Isso é a felicidade.

Dás nós na linha que cose
Para que pare no fim.
Por muito que eu pense e ouse,
Nunca dás nó para mim.

Não sei em que coisa pensas
Quando coses sossegada...
Talvez naquelas ofensas
Que fazes sem dizer nada.

As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pro mar...
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.

As ondas que a maré conta
Ninguém as pode contar.
Se, ao passar, ninguém te aponta,
Aponta-te com o olhar.

Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.

Quando cantas, disfarçando
Com a cantiga o cantar,
Parece o vento mais brando
Nesta brandura do ar.

Não sei que grande tristeza
Me fez só gostar de ti
Quando já tinha a certeza
De te amar porque te vi.

A mantilha de espanhola
Que trazias por trazer
Não te dava um ar de tola
Porque o não podias ter.

Boca de riso escarlate
Com dentes brancos no meio,
Meu coração bate, bate,
Mas bate por ter receio.

Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.

Tu, ao canto da janela
Sorrias a alguém da rua,
Porquê ao canto, se aquela
Posição não é a tua?

Dá-me, um sorriso ao domingo,
Para à segunda eu lembrar.
Bem sabes: sempre te sigo
E não é preciso andar.

Tens olhos de quem não quer
Procurar quem eu não sei.
Se um dia o amor vier
Olharás como eu olhei.

Pobre do pobre que é ele
E não é quem se fingiu!
Por muito que a gente vele
Descobre que já dormiu.

Não me digas que me queres
Pois não sei acreditar.
No mundo há muitas mulheres
Mas mentem todas a par.

Água que não vem na bilha
É como se não viesse.
Como a mãe, assim a filha...
Antes Deus as não fizesse.

Ó loura dos olhos tristes
Que me não quis escutar...
Quero só saber se existes
Para ver se te hei de amar.

Há grandes sombras na horta
Quando a amiga lá vai ter...
Ser feliz é o que importa,
Não importa como o ser!

O moinho de café
Mói grãos e faz deles pó.
O pó que a minh'alma é
Moeu quem me deixa só.

Dizem que não és aquela
Que te julgavam aqui.
Mas se és alguém e és bela
Que mais quererão de ti?

Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.

Olhos tristes, grandes, pretos,
Que dizeis sem me falar
Que não há filhos nem netos
De eu não querer amar.

Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que, se um dia te esquecer,
Será por ele parar.

Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente,
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente

Trazes o vestido novo
Como quem sabe o que faz.
Como és bonita entre o povo,
Mesmo ficando para trás!

A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.

A laranja que escolheste
Não era a melhor que havia.
Também o amor que me deste
Qualquer outra mo daria.

Se o sino dobra a finados
Há de deixar de dobrar.
Dá-me os teus olhos fitados
E deixa a vida matar!

Por muito que pense e pense
No que nunca me disseste,
Teu silêncio não convence.
Faltaste quando vieste.

Tome lá, minha menina,
O ramalhete que fiz.
Cada flor é pequenina,
Mas tudo junto é feliz.

A vida é pouco aos bocados.
O amor é vida a sonhar.
Olho para ambos os lados
E ninguém me vem falar.

Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A idéia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.

Compras carapaus ao cento,
Sardinhas ao quarteirão.
Só tenho no pensamento
Que me disseste que não.

Duas horas te esperei.
Duas mais te esperaria.
Se gostas de mim não sei...
Algum dia há de ser dia ...

Tenho um desejo comigo
Que me traz longe de mim.
É saber se isto é contigo
Quando isto não é assim.

Leve vem a onda leve
Que se estende a adormecer,
Breve vem a onda breve
Que nos ensina a esquecer.

Quando a manhã aparece
Dizem que nasce alegria.
Isso era se Ela viesse.
Até de noite era dia.

Nuvem alta, nuvem alta,
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais!

Teu carinho, que é fingido,
Dá-me o prazer de saber
Que inda não tens esquecido
O que o fingir tem de ser.

A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão.
Foi com ela que tocaste,
Sem tocar, meu coração.

O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já?

Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta.
Foi da festa ou foi da gente?

Rouxinol que não cantaste,
Galo que não cantarás,
Qual de vós me empresta o canto
Para ver o que ela faz?

Quando chegaste à janela
Todos que estavam na rua
Disseram: olha, é aquela,
Tal é a graça que é tua!

Nuvem que passas no céu,
Dize a quem não perguntou
Se é bom dizer a quem deu:
"O que deste, não to dou."

"Vou trabalhando a peneira
E pensando assim assim.
Eu não nasci para freira.
Gosto que gostem de mim."

Roseiral que não dás rosas
Senão quando as rosas vêm,
Há muitas que são formosas
Sem que o amor lhes vá bem.

Ribeirinho, ribeirinho,
Que vais a correr ao léu
Tu vais a correr sozinho,
Ribeirinho, como eu.

"Vesti-me toda de novo
E calcei sapato baixo
Para passar entre o povo
E procurar quem não acho."

Tua boca me diz sim,
Teus olhos me dizem não.
Ai, se gostasses de mim
E sem saber a razão.

Quero lá saber por onde
Andaste todo este dia!
Nunca faz-bem quem se esconde
Mas onde foste, Maria?

O vaso do manjerico
Caiu da janela abaixo.
Vai buscá-lo, que aqui fico
A ver se sem ti te acho.

O cravo que tu me deste
Era de papel rosado.
Mas mais bonito era inda
O amor que Me foi negado,

Trazes os sapatos, pretos
Cinzentos de tanto pó.
Feliz é quem tiver netos
De quem tu sejas avó!

Vem de lá do monte verde
A trova que não entendo.
É um som bom que se perde
Enquanto se vai vivendo.

Moreninha, moreninha,
Com olhos pretos a rir.
Sei que nunca serás minha,
Mas quero ver-te sorrir.

Puseste a chaleira ao lume
Com um jeito de desdém.
Suma-te o diabo que sume
Primeiro quem te quer bem!

Lá vem o homem da capa
Que ninguém sabe quem é...
Se o lenço os olhos te tapa
Veio os teus olhos por fé.

Loura dos olhos dormentes,
Que são azuis e amarelos,
Se as minhas mãos fossem pentes,
Penteavam-te os cabelos.

O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar.

Traze-me um copo com água
E a maneira de o trazer.
Quero ter a minha mágoa
Sem mostrar que a estou a ter.

Olha o teu leque esquecido!
Olha o teu cabelo solto!
Maria, toma sentido!
Maria, senão não volto!

Já duas vezes te disse
Que nunca mais te diria
O que te torno a dizer
E fica para outro dia.

Lavadeira a bater roupa
Na pedra que está na água,
Achas minha mágoa pouca?
É muito tudo o que é mágoa.

O teu lenço foi mal posto
Pela pressa que to pôs.
Mais mal posto é o meu desgosto
Do que não há entre nós.

Olhos de veludo falso
E que fitam a entender,
Vós sois o meu cadafalso
A que subo com prazer.

Duas vezes eu tentei
Dizer-te que te queria,
E duas vezes te achei
Só a que falava e ria.

Meu coração é uma barca
Que não sabe navegar.
Guardo o linha na arca
Com um ar de o acarinhar.

Tenho um desejo comigo
Que hoje te venho dizer:
Queria ser teu amigo
Com amizade a valer.

És Maria da Piedade
Pois te chamaram assim.
Sê lá Maria à vontade,
Mas tem piedade de mim.

Tu És Maria da Graça,
Mas a que graça é que vem
Ser essa graça a desgraça
De quem a graça não tem?

Caiu no chão o novelo
E foi-se desenrolando.
Passas a mão no cabelo.
Não sei em que estás pensando.

A tua saia, que é curta,
Deixa-te a perna a mostrar:
Meu coração já se furta
A sentir sem eu pensar.

Meu amor é fragateiro.
Eu sou a sua fragata.
Alguns vão atrás do cheiro,
Outros vão só pela arreta.

Vai longe, na serra alta,
A nuvem que nela toca...
Dá-me aquilo que me falta —
Os beijos da tua boca.

HÁ um doido na nossa voz
Ao falarmos, que prendemos:
É o mal-estar entre nós
Que vem de nos percebermos.

Teu vestido porque é teu,
Não é de cetim nem chita.
É de sermos tu e eu
E de tu seres bonita.

Entornaram-me o cabaz
Quando eu vinha pela estrada.
Como ele estava vazio,
Não houve loiça quebrada.

O rosário da vontade,
Rezei-o trocado e a esmo.
Se vens dizer-me a verdade,
Vê lá bem se é isso mesmo.

Castanhetas, castanholas —
Tudo é barulho a estalar.
As que ao negar são mais tolas
São mais espertas ao dar.

O manjerico e a bandeira
Que há no cravo de papel —
Tudo isso enche a noite inteira,
Ó boca de sangue e mel.

Tem A filha da caseira
Rosas na caixa que tem.
Toda ela é uma rosa inteira
Mas não a cheira ninguém.

A moça que há na estalagem
Ri porque gosta de rir.
Não sei o que é da viagem
Por esta moça existir.

Lenço preto de orla branca
Ataste-o mal a valer
À roda desse pescoço
Que tem que se lhe dizer.

Aquela loura de preto
Com uma flor branca ao peito,
É o retrato completo
De como alguém é perfeito.

A tua janela é alta,
A tua casa branquinha.
Nada lhe sobra ou lhe falta
Senão morares sozinha.

Vem cá dizer-me que sim.
Ou vem dizer-me que não.
Porque sempre vens assim
P'ra ao pé do meu coração,.

Cortaste com a tesoura
O pano de lado a lado.
Porque é que todo teu gesto
Tem a feição de engraçado?

Ai, os pratos de arroz doce
Com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!

Frescura do que é regado,
Por onde a água inda verte...
Quero dizer-te um bocado
Do que não ouso dizer-te.

Ó pastora, ó pastorinha,
Que tens ovelhas e riso,
Teu riso ecoa no vale
E nada mais é preciso.

A abanar o fogareiro
Ela corou do calor.
Ah, quem a fará corar
De um outro modo melhor!

Manjerico que te deram,
Amor que te querem dar...
Recebeste o manjerico.
O amor fica a esperar.

Dona Rosa, Dona Rosa.
De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem?

O laço que tens no peito
Parece dado a fingir.
Se calhar já estava feito
Como o teu modo de rir.

Dona Rosa, Dona Rosa,
Quando eras inda botão
Disseram-te alguma cousa
De a flor não ter coração?

Tenho um segredo a dizer-te
Que não te posso dizer.
E com isto já to disse
Estavas farta de o saber ...

Os ranchos das raparigas
Vão a cantar pela estrada...
Não oiço as suas cantigas
Só tenho pena de nada.

Rezas porque outros rezaram,
E vestes à moda alheia...
Quando amares vê se amas
Sem teres o amor na idéia.

A senhora da Agonia
Tem um nicho na Igreja.
Mas a dor que me agonia
Não tem ninguém quem a veja.

Aparta o cabelo ao meio
A do cabelo apartado.
É a estrelinha em que leio
Que estou a ser enganado.

Esse frio cumprimento
Tem ironia p'ra mim.
Porque é o mesmo movimento
Com que a gente diz que sim...

Vejo lágrimas luzir
Nos teus olhos de fingida.
É como quando à janela
Chegas, um pouco escondida.

Trincaste, para o partir,
O retrós de costurar.
Quem não soubesse diria
Que o estavas a beijar.

Deixaste o dedal na mesa
Só pelo tempo da ausência —
Se eu to roubasse dirias
Que eu não tinha consciência.

Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.

O canário já não canta.
Não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
Talvez não me encantará.

Rezas a Deus ao deitar-te
Pedindo não sei o quê.
Se rezasses ao Demônio,
Eu saberia o que é.

Boca que tens um sorriso
Como se fosse um florir,
Teus olhos cheios de riso
Dão-lhe um orvalho de rir.

Uma boneca de trapos
Não se parte se, cair.
Fizeste-me a alma em farrapos
Bem: não se pode partir.

O que sinto e o que penso
De ti é bem e é mal.
É como quando uma xícara
Tem o pires desigual.

Levas a mão ao cabelo
Num gesto de quem não crê.
Mas eu não te disse nada.
Duvidas de mim? Porquê?

Compreender um ao outro
É um jogo complicado.
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.

A roda dos dedos juntos
Enrolaste a fita a rir.
Corações não são assuntos
E falar não é sentir.

Chama-te boa, e o sentido
Não é bem o que eu supunha.
Boa não é apelido:
É, quando muito, alcunha.

Tu És Maria das Dores,
Tratam-te só por Maria.
Está bem, porque deste as dores
A quem quer que em ti se fia.

Se vais de vestido novo
O teu próprio andar o diz,
E ao passar por entre o povo
Até teu corpo é feliz.

Tens um anel imitado
Mas vais contento de o ter.
Que importa o falsificado
Se é verdadeiro o prazer.

Tenho ainda na lembrança
Como uma coisa que veio,
O quando inda eras criança.
Nunca mais me dás um beijo!

O ar do campo vem brando,
Faz sono haver esse ar.
Já não sei se estou sonhando
Nem de que serve sonhar.

Quando ela pôs o chapéu
Como se tudo acabasse,
Sofri de não haver véu
Que inda um pouco a demorasse.

Quem te deu aquele anel
Que ainda ontem não tinhas?
Como tu foste infiel
A certas idéias minhas!

Essa costura à janela
Que lhe inclinou a cabeça
Fez-me ver como era dela
Que o coração tinha pressa.

O ribeiro bate, bate
Nas pedras que nele estão,
Mas nem há nada em que bata
O meu pobre coração.

Nunca houve romaria
Que se lembrassem de mim...
Também quem se lembraria
De quem se lamenta assim?

Comes melão às dentadas
Porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
Me fazem rir ou sofrer.

Há dois dias que não vejo
Modo de tornar-te a ver:
Se outros também te não vissem,
Desejava sem sofrer.

O teu cabelo cortado
A maneira de rapaz
Não deixa justificado
Aquele amor que me faz.

Se te queres despedir
Não te despidas de mim,
Que eu não posso consentir
Que tu me trates assim.

Quem te fez assim tão linda
Não o fez para mostrar
Que se é mais linda ainda
Quando se sabe negar.

Floriu a roseira toda
Com as rosas de trepar...
Tua cabeça anda à roda
Mas sabes-te equilibrar.

Morena dos olhos baços
Velados de não sei quê,
No mundo há falta de braços
Para o que o teu olhar vê.

Quando compões o cabelo
Com tua mão distraída
Fazer-me um grande novelo
No pensamento da vida.

Teus olhos de quem não fita
Vagueiam, 'stão na distância.
Se fosses menos bonita,
Isso não tinha importância.

Tocam sinos a rebate
E levantaste-te logo.
Teu coração só não bate
Por a quem puseste fogo.

O coração é pequeno,
Coitado, e trabalha tanto!
De dia a ter que chorar,
De noite a fazer o pranto ...

Deram-me um cravo vermelho
Para eu ver como é a vida.
Mas esqueci-me do cravo
Pela hora da saída.

Fiz estoirar um cartucho
Contra a parede do lado.
Assim farei eu à vida,
Que o sonhar fez-me assoprado.

O malmequer que colheste
Deitaste-o fora a falar.
Nem quiseste ver a sorte
Que ele te podia dar.

Comi melão retalhado
E bebi vinho depois,
Quanto mais olho p'ra ti
Mais sei que não somos dois.

Trazes um lenço novinho
Na cabeça e a descair,
Se eu te beijar no cantinho
Só saberá quem nos vir.

E ao acabar estes versos
Feitos em modo menor
Cumpre prestar homenagem
À bebedeira do cantor.

Toda a noite, toda a noite,
Toda a noite sem pensar...
Toda a noite sem dormir
E sem tudo isso acabar.

Puseste um vaso à janela.
Foi sinal ou não foi nada,
Ou foi p'ra que pense em ti
Que te não importas nada?

Eu vi ao longe um navio
Que tinha uma vela só,
Ia sozinho no mar...
Mas não me fazia dó.

Corre a água pelas calhas
Lá segundo a sua lei.
Pareces, vista de lado,
Aquela que te julguei.

Lá por olhar para ti
Não julgues que é por gostar.
Eu gosto muito do sol,
E nem o posso fitar.

Viraste-me a cara quando
Ia a dizer-te, à chegada,
Que, se voltasses a cara,
Que eu não me importava nada.

Na quinta que nunca houve
Há um poço que não há
Onde há de ir encontrar água
Alguém que te entenderá.

Voam débeis e enganadas
As folhas que o vento toma.
Bem sei: deitamos os dados
Mas Deus é sue deita a soma.

Ribeirinho, ribeirinho,
Que falas tão devagar,
Ensina-me o teu caminho
De passar sem desejar amar.

Do alto da torre da igreja
Vê-se o campo todo em roda.
Só do alto da esperança
Vemos nós a vida toda.

Dá-me um sorriso a brincar,
Dá-me uma palavra a rir,
Eu me tenho por feliz
Só de te ver e te ouvir.

Trazes um lenço apertado
Na cabeça, e um nó atrás.
Mas o que me traz cansado
É o nó que nunca se faz.

Vi-te a dizer um adeus
A alguém que se despedia,
E quase implorei dos céus
Que eu partisse qualquer dia.

Eu voltei-me para trás
Para ver se te voltavas.
Há quem dê favas aos burros,
Mas eles comem as favas.

Deixaste cair no chão
O embrulho das queijadas.
Riste disso — E porque não?
A vida é feita de nadas.

Deste-me um cordel comprido
Para atar bem um papel.
Fiquei tão agradecido
Que inda tenho esse cordel.

No dia de Santo Antônio
Todos riem sem razão.
Em São João e São Pedro
Como é que todos rirão?

Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta.

O capilé é barato
E é fresco quando há calor.
Vou sonhar o teu retrato
Já que não tenho melhor.

Baila o trigo quando há vento
Baila porque o vento o toca
Também baila o pensamento
Quando o coração provoca.

Fizeste molhos de flores
Para não dar a ninguém.
São como os molhos de amores
Que foras fazer a alguém.

Se houver alguém que me diga
Que disseste bem de mim,
Farei uma outra cantiga,
Porque esta não é assim.

Manjerico, manjerico,
Manjerico que te dei,
A tristeza com que fico
Inda amanhã a terei.

Ris-te de mim? Não me importo.
Rir não faz mal a ninguém.
Teu rir é tão engraçado
Que, quando faz mal, faz bem.

Ouves-me sem me entender.
Sorris sem ser porque falo.
É assim muita mulher.
Mas nem por isso me calo.

Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei.

Bailaste de noite ao som
De uma música estragada.
Bailar assim só é bom
Quando a alegria é de nada.

Não sei que flores te dar
Para os dias da semana.
Tens tanta sombra no olhar
Que o teu olhar sempre engana.

Descasquei o camarão,
Tirei-lhe a cabeça toda.
Quando o amor não tem razão
É que o amor incomoda.

Cabeça de ouro mortiço
Com olhos de azul do céu,
Quem te ensinou o feitiço
De me fazer não ser eu?

São já onze horas da noite.
Porque te não vais deitar?
Se de nada serve ver-te,
Mais vale não te fitar.

Tiraste o linho da arca,
Da arca tiraste o linho.
Meu coração tem a marca
Que lhe puseste mansinho.

Ao dobrar o guardanapo
Para o meteres na argola
Fizeste-me conhecer
Como um coração se enrola.

Quando eu era pequenino
Cantavam para eu dormir.
Foram-se o canto e o menino.
Sorri-me para eu sentir!

Meia volta, toda a volta,
Muitas voltas de dançar...
Quem tem sonhos por escolta
Não é capaz de parar.

Fui passear no jardim
Sem saber se tinha flores
Assim passeia na vida
Quem tem ou não tem amores.

No dia em que te casares
Hei de te ir ver à Igreja
Para haver o sacramento
De amar-te alguém que ali esteja.

Quando apertaste o teu cinto
Puseste o cravo na boca.
Não sei dizer o que sinto
Quando o que sinto me toca.

Toda a noite ouvi os cães
P'ra manhã ouvi os galos.
Tristeza — vem ter conosco.
Prazeres — é ir achá-los.

Deram-me, para se rirem,
Uma corneta de barro,
Para eu tocar à entrada
Do Castelo do Diabo.

Quando te apertei a mão
Ao modo de assim-assim,
Senti o meu coração
A perguntar-me por mim.

Tinhas um vestido preto
Nesse dia de alegria...
Que certo! Pode pôr luto
Aquele que em ti confia.

Só com um jeito do corpo
Feito sem dares por isso
Fazes mais mal que o demônio
Em dias de grande enguiço.

Esse xaile que arranjaste,
Com que pareces mais alta
Dá ao teu corpo esse brio
Que à minha coragem falta.

Tem um decote pequeno,
Um ar modesto e tranqüilo;
Mas vá-se lá descobrir
Coisa pior do que aquilo!

Teus olhos poisam no chão
Para não me olhar de frente.
Tens vontade de sorrir
Ou de rir? É tão dif'rente!

Quando passas pela rua
Sem reparar em quem passa,
A alegria é toda tua
E minha toda a desgraça.

A esmola que te vi dar
Não me deu crença nem fé,
Pois a que estou a esperar
Não é esmola que se dê.

Caiu no chão a laranja
E rolou pelo chão fora.
Vamos apanhá-la juntos,
E o melhor é ser agora.

Quando te vais a deitar
Não sei se rezas se não.
Devias sempre rezar
E sempre a pedir perdão.

É limpo o adro da igreja.
É grande o largo da praça.
Não há ninguém que te veja
Que te não encontre graça.

Quando agora me sorriste
Foi de contente de eu vir,
Ou porque me achaste triste,
Ou já estavas a sorrir?

Boca que o riso desata
Numa alegria engraçada,
És como a prata lavrada
Que é mais o lavor que a prata.

Por cima da saia azul
Há uma blusa encarnada,
E por cima disso os olhos
Que nunca me dizem nada.

Fazes renda de manhã
E fazes renda ao serão.
Se não fazes senão renda,
Que fazes do coração?

Todos te dizem que és linda.
Todos to dizem a sério.
Como o não sabes ainda
Agradecer é mistério.

Eu bem sei que me desdenhas
Mas gosto que seja assim,
Que o dendém que por mim tenhas
Sempre é pensares em mim.

A tua irmã é pequena,
Quando tiver tua idade,
Transferirei minha pena
Ou fico só com metade?

Quando me deste os bons dias
Deste-mos como a qualquer.
Mais vale não dizer nada
Do que assim nada dizer.

Tenho uma idéia comigo
De que não quero falar.
Se a idéia fosse um postigo
Era pra te ver passar.

Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?

Tenho um lenço que esqueceu
A que se esquece de mim.
Não é dela, não é meu,
Não é princípio nem fim.

Duas horas vão passadas
Sem que te veia passar.
Que coisas mal combinadas
Que são amor e esperar!

Houve um momento entre nós
Em que a gente não falou.
Juntos, estávamos sós.
Que bom é assim estar só!

"Das flores que há pelo campo
O rosmaninho é rei. . . "
É uma velha cantiga...
Bem sei, meu Deus, bem o sei.

O moinho que mói trigo
Mexe-o o vento ou a água,
Mas o que tenho comigo
Mexe-o apenas a mágoa.

Aquela que tinha pobre
A única saia que tinha,
Por muitas roupas que dobre
Nunca será mais rainha.

Tens uns brincos, sem valia
E um lenço que não é nada,
Mas quem dera ter o dia
De quem és a madrugada.

Loura, teus olhos de céu
Têm um azul que é fatal..
Bem sei: Foi Deus que tos deu.
Mas então Deus fez o mal?

Vai alta sobre a montanha
Uma nuvem sem razão.
Meu coração acompanha
O não teres coração.

Dizem que as flores são todas
Palavras que a terra diz.
Não me falas: incomodas.
Falas: sou menos feliz.

Duas vezes jurei ser
O que julgo que sou,
Só para desconhecer
Que não sei para onde vou.

O pescador do mar alto
Vem contente de pescar.
Se prometo, sempre falto:
Receio não agradar.

Todos lá vão para a festa
Com um grande azul de céu.
Nada resta, nada resta...
Resta sim, que resta eu.

Andei sozinho na praia
Andei na praia a pensar
No jeito da tua saia
Quando lá estiveste a andar.

Onda que vens e que vais
Mar que vais e depois vens,
Já não sei se tu me atrais,
E, se me, atrais, se me tens.

Quando há música, parece
Que dormes, e assim te calas,
Mas se a música falece,
Acordo, e não me falas.

Trazes uma cruz no peito.
Não sei se é por devoção.
Antes tivesses o jeito
De ter lá um coração.

O guardanapo dobrado
Quer dizer que se não volta.
Tenho o coração atado:
Vê se a tua mão mo solta.

"À tua porta está lama.
Meu amor, quem na faria?"
É assim a velha cantiga
Que como tu principia.

Menina de saia preta
E de blusa de outra cor,
Que é feito daquela seta
Que atirei ao meu amor?

Lavas a roupa na selha
Com um vagar apressado,
E o brinco na tua orelha
Acompanha o teu cuidado.

Duas vezes te falei
De que te iria falar.
Quatro vezes te encontrei
Sem palavra p'ra te dar.

Velha cadeira deixada
No canto da casa antiga
Quem dera ver lá sentada
Qualquer alma minha amiga.

Trazes a bilha à cabeça
Como se ela não houvesse.
Andas sem pressa depressa
Como se eu lá não estivesse.

Trazes um manto comprido
Que não é xaile a valer.
Eu trago em ti o sentido
E não sei que hei de dizer.

Olhas para mim às vezes
Como quem sabe quem sou.
Depois passam dias, meses,
Sem que vás por onde vou.

Quando tiraste da cesta
Os figos que prometeste
Foi em mim dia de festa,
Mas foi a todos que os deste.

Aquela que mora ali
E que ali está à janela
Se um dia morar aqui
Se calhar não será ela.

Mas que grande disparate
É o que penso e o que sinto.
Meu coração bate, bate
E se sonho minto, minto.

Puseste por brincadeira
A touca da tua irmã.
Ó corpo de bailadeira,
Toda a noite tem manhã.

Dizes-me que nunca sonhas
E que dormes sempre a fio.
Quais são as coisas risonhas
Que sonhas por desfastio?

O teu carrinho de linha
Rolou pelo chão caído.
Apanhei-o e dei-to e tinha
Só em ti o meu sentido.

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém te cura
E morrer é que é ter alta.

Que tenho o coração preto
Dizes tu, e inda te alegras.
Eu bem sei que o tenho preto:
Está preto de nódoas negras.

Na praia de Monte Gordo.
Meu amor, te conheci.
Por ter estado em Monte Gordo
É que assim emagreci.

Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem.
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.

"Mau, Maria!" — tu disseste
Quando a trança te caía.
Qual "Mau, Maria", Maria!
"Má Maria"' "Má Maria!"

Era já de madrugada
E eu acordei sem razão,
Senti a vida pesada.
Pesado era o coração.

Boca de romã perfeita
Quando a abres p'ra comer.
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver?

Tenho um segredo comigo
Que me faz sempre cismar,
É se quero estar contigo
Ou quero contigo estar.

Trazes já aquele cinto
Que compraste no outro dia.
Eui trago o que sempre sinto
E que é contigo, Maria.

Teu olhar não tem remorsos
Não é por não ter que os ter.
É porque hoje não é ontem
E viver é só esquecer.

Disseste-me quase rindo:
"Conheço-te muito bem!"
Dito por quem me não quer.
Tem muita graça, não tem?

Fica o coração pesado
Com o choro que chorei.
É um ficar engraçado
O ficar com o que dei. . .

Este é o riso daquela
Em que não se reparou.
Quando a gente se acautela
Vê que não se acautelou.

Tens vontade de comprar
O que vês só porque o viste.
Só a tenho de chorar
Porque só compro o ser triste.

Baila em teu pulso delgado
Uma pulseira que herdaste...
Se amar alguém é pecado.
És santa, nunca pecaste.

Teus olhos querem dizer
Aquilo que se não diz...
Tenho muito que fazer.
Que sejas muito feliz.

Água que passa e canta
É água que faz dormir...
Sonhar é coisa que encanta,
Pensar é já não sentir.

Deste-me um adeus antigo
À maneira de eu não ser
Mais que o amigo do amigo
Que havia de poder ter.

Linda noite a desta lua.
Lindo luar o que está
A fazer sombra na rua.
Por onde ela não virá.

O papagaio do paço
Não falava — assobiava.
Sabia bem que a verdade
Não é coisa de palavra.

Puseste a mantilha negra
Que hás de tirar ao voltar.
A que me puseste na alma
Não tiras. Mas deixa-a estar!

Trazes os brincos compridos,
Aqueles brincos que são
Como as saudades que temos
A pender do coração.

Deixaste cair a liga
Porque não estava apertada...
Por muito que a gente diga
A gente nunca diz nada.

Não há verdade na vida
Que se não diga a mentir.
Há quem apresse a subida
Para descer a sorrir.

No dia de S. João
Há fogueiras e folias.
Gozam uns e outros não,
Tal qual como os outros dias.

Santo Antônio de Lisboa
Era um grande pregador,
Mas é por ser Santo Antônio
Que as moças lhe têm amor.


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O Meu Soneto
em 08/02/2012 15:01:27 (4433 leituras)
Florbela Espanca

Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...

E os meus olhos serenos, enigmáticos
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...

As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d´amor trazem de rastros...

E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!..

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"


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Amai-vos...
em 04/02/2012 22:33:35 (5724 leituras)
Kahlil Gibran



Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.

Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos,
e sede alegres,

mas deixai
cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira
são separadas e,
no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração,
mas não o confieis à guarda um do outro.

Pois somente a mão da Vida
pode conter vosso coração.

E vivei juntos,
mas não vos aconchegueis demasiadamente.

Pois as colunas do templo
erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.


Gibran Kahlil Gibran -


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GRAFITO
em 31/01/2012 20:09:57 (4103 leituras)
José Paulo Paes

neste lugar solitário
o homem toda a manhã
tem o porte estatuário
de um pensador de Rodin

neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como um confessionário
o mais íntimo de si

neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas

neste lugar solitário
faz a conta doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida




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Soneto da grinalda de Rosas
em 25/06/2012 21:13:53 (2734 leituras)
 Federico García Lorca

Essa grinalda! Pronto! Estou morrendo!
Tece depressa! Canta! Geme!Canta!
Que a sombra me enturva a garganta
E outra vez e mil a luz de janeiro.

Entre o que me queres e te quero,
Ar de estrelas e tremor de planta,
Espessura de anêmona levanta
Com escuro gemer um ano inteiro.

Goza a fresca paisagem da minha ferida,
Quebra juncos e arroios delicados.
Bebe em coxa de mel sangue vertido.

Porém, pronto! Que unidos, enlaçados,
Boca rota de amor e alma mordida,
O tempo nos encontre destroçados.


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Vida e Obra
em 22/06/2012 17:01:13 (9556 leituras)
 Federico García Lorca

Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de junho de 1898 — Granada, 19 de agosto de 1936) foi um poeta e dramaturgo espanhol, e uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola devido ao seus alinhamentos políticos com a República Espanhola e por ser abertamente homossexual.

Nascido numa pequena localidade da Andaluzia, García Lorca ingressou na faculdade de Direito de Granada em 1914, e cinco anos depois transferiu-se para Madrid, onde ficou amigo de artistas como Luis Buñuel e Salvador Dali e publicou seus primeiros poemas.
Grande parte dos seus primeiros trabalhos baseiam-se em temas relativos à Andaluzia (Impressões e Paisagens, 1918), à música e ao folclore regionais (Poemas do Canto Fundo, 1921-1922) e aos ciganos (Romancero Gitano, 1928).
Concluído o curso, foi para os Estados Unidos da América e para Cuba, período de seus poemas surrealistas, manifestando seu desprezo pelo modus vivendi estadunidense. Expressou seu horror com a brutalidade da civilização mecanizada nas chocantes imagens de Poeta em Nova Iorque, publicado em 1940.
Voltando à Espanha, criou um grupo de teatro chamado La Barraca. Não ocultava suas idéias socialistas e, com fortes tendências homossexuais, foi certamente um dos alvos mais visados pelo conservadorismo espanhol que ensaiava a tomada do poder, dando início a uma das mais sangrentas guerras fratricidas do século XX.
Intimidado, Lorca retornou para Granada, na Andaluzia, na esperança de encontrar um refúgio. Ali, porém, teve sua prisão determinada por um deputado, sob o argumento (que tornou-se célebre) de que ele seria "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver".
Assim, num dia de agosto de 1936, sem julgamento, o grande poeta foi executado com um tiro na nuca pelos nacionalistas, e seu corpo foi jogado num ponto da Serra Nevada. Segundo algumas versões, ele teria sido fuzilado de costas, em alusão a sua homossexualidade. A caneta se calava, mas a Poesia nascia para a eternidade - e o crime teve repercussão em todo o mundo, despertando por todas as partes um sentimento de que o que ocorria na Espanha dizia respeito a todo o planeta. Foi um prenúncio da Segunda Guerra Mundial.

Assim como muitos artistas - e a obra Guernica, de Pablo Picasso -, durante o longo regime ditatorial do Generalíssimo Franco, suas obras foram consideradas clandestinas na Espanha.
Com o fim do regime, e a volta do país à democracia, finalmente sua terra natal veio a render-lhe homenagens, sendo hoje considerado o maior autor espanhol desde Miguel de Cervantes. Lorca tornou-se o mais notável numa constelação de poetas surgidos durante a guerra, conhecida como "geração de 27", alinhando-se entre os maiores poetas do século XX. Foi ainda um excelente pintor, compositor precoce e pianista. Sua música se reflete no ritmo e sonoridade de sua obra poética. Como dramaturgo, Lorca fez incursões no drama histórico e na farsa antes de obter sucesso com a tragédia. As três tragédias rurais passadas na Andaluzia, Bodas de Sangue (1933), Yerma (1934) e A Casa de Bernarda Alba (1936) asseguraram sua posição como grande dramaturgo.

Em sua curta existência, García Lorca deixou importantes obras-primas da literatura, muitas delas publicadas postumamente, dentre as quais:

Poesia

Livro de Poemas - 1921
Ode a Salvador Dalí - 1926.
Canciones (1921-24) - 1927.
Romancero gitano (1924-27) - 1928.
Poema del cante jondo (1921-22) - 1931.
Ode a Walt Whitman - 1933.
Canto a Ignacio Sánchez Mejías - 1935.
Seis poemas galegos - 1935.
Primeiras canções (1922) - 1936.
Poeta em Nueva York (1929-30) - 1940.
Divã do Tamarit - 1940.
Sonetos del Amor Oscuro - 1936

Prosa

Impressões e Paisagens - 1918
Desenhos (publicados em Madri) - 1949
Cartas aos Amigos - 1950

Teatro

Assim que passarem cinco anos - Lenda do tempo - 1931.
Retábulo de Don Cristóvão e D.Rosita - 1931.
Amores de Dom Perlimplim e Belisa em seu jardim" - 1926.
Mariana Pineda - 1925.
Dona Rosinha, a solteira - 1927.
Bodas de Sangue (Trilogia) - 1933.
Yerma (Trilogia) - 1934.
A Casa de Bernarda Alba (Trilogia) - 1936.
Quimera - 1930.
El publico - 1933.
O sortilégio da mariposa - 1918.
A sapateira prodigiosa - 1930.
Pequeno retábulo de Dom Cristóvão - 1931.



Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Federico_Garc%C3%ADa_Lorca


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Gabriela, Cravo e Canela
em 18/06/2012 18:13:13 (6501 leituras)
Jorge Amado

Gabriela, Cravo e Canela é um romance do escritor brasileiro Jorge Amado, publicado em 1958.
A obra é um retorno ao chamado ciclo do cacau. Ao citar o universo de coronéis, jagunços, prostitutas e trambiqueiros de calibre variado, que desenham o horizonte da sociedade cacaueira.
Na década de 20 na então rica e pacata Ilhéus, ansiando progressos, com intensa vida noturna litorânea, entre bares e bordéis, desenrola-se o drama, que acaba por tornar-se uma explosão de folia e luz, cor, som, sexo e riso.

O livro foi concluído em Petrópolis, Rio de Janeiro, no mês de maio de 1958. Sua 1ª edição foi lançada pela Livraria Martins Editora, São Paulo, 1958, com 453 páginas, capa de Clóvis Graciano e ilustrações de Di Cavalcanti.
Tamanho foi o sucesso que em dezembro do mesmo ano, foi lançada a 6ª edição, que passou a integrar a coleção Obras Ilustradas de Jorge Amado como tomo décimo quarto, volume XIX em seguidas e sucessivas edições chegou até a 50ª edição em 1975.
Nesse mesmo ano, foi publicada uma edição, fora da coleção, com um convênio entre a Livraria Martins Editora e a Distribuidora Record, Rio de Janeiro, a 51ª edição, com capa de Di Cavalcanti, conservando as ilustrações anteriores desta vez com 363 páginas, contendo o retrato do autor por Carlos Bastos e foto por Zélia Gattai.
A partir de então a Editora Record, Rio de Janeiro, passou a deter os direitos editoriais da 52ª em diante até a última edição de número 80ª edição em 1999, a mais recente, com fixação de texto por Paloma Jorge Amado e Pedro Costa, capa de Pedro Costa com ilustração de Di Cavalcanti, sobrecapa e ilustrações de Di Cavalcanti, e vinhetas de Pedro Costa, retrato do autor por Jordão de Oliveira e foto por Zélia Gattai.
Atualmente os direitos pertencem a editora Companhia das Letras, que está relançando todos os livros do autor.

No ano seguinte ao da sua 1ª edição, ganhou cinco prêmios:

Prêmio Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1959;
Prêmio Paula Brito, da antiga Prefeitura do Distrito Federal, Rio de Janeiro, 1959;
Prêmio Luísa Cláudia de Sousa, do PEN Clube do Brasil, Rio de Janeiro, 1959;
Prêmio Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo, 1959;
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, São Paulo, 1959.
Devido ao grande desempenho nas vendas e nome Gabriela se tornou popular após o romance, sendo utilizado para denominar de bares e restaurantes a suco de cacau, além de empresas dos mais diversos ramos.

Publicado em Portugal é o romance de Jorge Amado com o maior número de traduções, tendo sido editado em alemão, árabe, búlgaro, catalão, chinês, coreano, dinamarquês, eslovaco, esloveno, espanhol, estoniano, finlandês, francês, georgiano, grego, hebraico, holandês, húngaro, inglês, italiano, lituano, macedônio, moldávio, norueguês, persa, polonês, romeno, russo, sueco, tcheco, turco e ucraniano.


Fundação Casa de Jorge Amado
http://www.jorgeamado.org.br/

Pequisa em sites da rede.


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Sinto na angústia o quem me lembrasse
em 15/06/2012 00:18:44 (2144 leituras)
Vergílio António Ferreira

Sinto na angústia o quem me lembrasse
e do lembrar a mim como uma ponte
onde de noite já ninguém passasse
viesse a notícia desse outro horizonte

em que o meu grito preso na garganta
dissesse à voz que não ouvi e veio
quanto vansaço inverosímil, quanta
fadiga me enternece como um seio.

Vibrátil voga vaga pela tarde
que em cigarros distrai o eu estar só
a chama obscura que visível arde
quando arde ao sol o pó.



Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'


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De almas sinceras a união sincera
em 11/06/2012 17:28:38 (11198 leituras)
William Shakespeare

Soneto 96


De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça. Amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
È astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe nenhuma idade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.


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Soneto do amor demais
em 31/05/2012 18:48:23 (3812 leituras)
Vinícius de Moraes

Não, já não amo mais os passarinhos
A quem, triste, contei tanto segredo
Nem amo as flores despertadas cedo
Pelo vento orvalhado dos caminhos.

Não amo mais as sombras do arvoredo
Em seu suave entardecer de ninhos
Nem amo receber outros carinhos
E até de amar a vida tenho medo.

Tenho medo de amar o que de cada
Coisa que der resulte empobrecida
A paixão do que se der à coisa amada

E que não sofra por desmerecida
Aquela que me deu tudo na vida
E que de mim só quer amor – mais nada.


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O Meu Público
em 29/05/2012 14:49:22 (1619 leituras)
Vergílio António Ferreira

Quando escrevo, o meu único público sou eu. Depois é que me ponho à espera de que sejam também os outros. Não porque antes os menospreze: simplesmente porque não existem. Mas é evidente que me interessa que existam depois como público pelo desejo natural de me confirmarem a existência como escritor. Porque a existência como escritor implica a audiência dos outros. Não escolho porém o público - espero que ele me escolha. Seria duro que me não escolhesse, por todas as implicações que se adivinham. Mas não é impeditivo de continuar - excepto se me convencerem (quem se convence?) que não tinha nada a dizer. E no entanto, se nós exprimirmos o tempo que nos exprime, há um pacto indissolúvel entre o tempo e nós. Assim, o nosso público está aí sempre, ainda que tenhamos que ser nós a despertá-lo.
Esse público não desperta se nós de facto lhe não falarmos, ou seja, se realmente não houve pacto algum com ele. Todas estas questões, porém, são supérfluas para a necessidade de escrever. Cumpre-se um destino de artista como outros o de serem santos ou criminosos...
O resto não é connosco - é com os críticos, os hagiógrafos e os arquivos da polícia.

Sim, tenho um público restrito. Em todo o caso, há excepções. Há certos livros - a Aparição, por exemplo - que atingem uma camada mais vasta. Outros, não. O leitor de Aparição gostou e vai comprar, por exemplo, Nítido Nulo. E sentiu que esse livro não era, digamos, tão digerível como o primeiro. E então evita decerto comprar outro. Não sei se é isto mesmo o que acontece. Sei é que não tenho um grande público, embora não me lamente por isso.
Não vou alterar os meus interesses literários em função disso. De resto, nem eu nem, suponho, qualquer escritor escreve seja para quem for: escreve para si. O que acontece é que, depois, o público vem ou não ter com ele. Reconhece-se ou não na obra desse escritor. E passa a ser desse público porque se identifica com o escritor.

Vergílio Ferreira, in 'Um Escritor Apresenta-se'


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Quem se Interessa pela Cultura?
em 19/05/2012 15:32:41 (1785 leituras)
Vergílio António Ferreira

Afinal, quantas pessoas se interessam pela cultura?, se põem o problema da vida?, do homem?, se põem a interrogação sobre o que nos rodeia? É um erro tocante o imaginar-se que as pessoas cultivadas se interessam pela cultura. A cultura não vem nos livros, nem nos cursos, nem nas salas de conferências, espectáculos, exposições com uísque ou a seco. A cultura é um problema que tem que ver com os nossos cromossomas e tem a dimensão secreta, oculta, privada, íntima, de uma vivência sagrada.



Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'


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Mater
em 12/05/2012 00:37:37 (1916 leituras)
Augusto dos Anjos


Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite —
Que amamentou os éfebos de Sparta. —

Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas cousas pequeninas
A um biscuít de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescera há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos!
Relembrarás chorando o que eu te disse,
A sombra dos sicômoros eternos!


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Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
em 11/05/2012 17:52:56 (3175 leituras)
Almada Negreiros

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!
Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!



(A Invenção do Dia Claro, de Almada Negreiros, INCM)


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Minha Mãe
em 08/05/2012 20:11:22 (3700 leituras)
Vinícius de Moraes

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.





O poema acima foi extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 186.


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Mãe...
em 04/05/2012 18:35:02 (2818 leituras)
Antero de Quental

Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu podesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!



Antero de Quental, in "Sonetos"


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O Operário Em Construção
em 27/04/2012 11:44:58 (3389 leituras)
Vinícius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


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No Fundo Somos Bons Mas Abusam de Nós
em 23/04/2012 20:00:05 (2222 leituras)
Vergílio António Ferreira

O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.
Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia, na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse colectivo é hoje o puro vazio.




Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2'


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Só nos pertence o gesto que fizemos
em 18/04/2012 14:33:54 (2089 leituras)
Vergílio António Ferreira

Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.




Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'


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A Defesa da Liberdade Humana
em 17/04/2012 14:08:15 (2146 leituras)
Vergílio António Ferreira

O problema da liberdade foi o que sempre mais me preocupou. Tento pôr ordem nas minhas ideias, mas não é fácil. Fui da esquerda e mesmo da sua direita (porque a direita da esquerda é a mais esquerda, como a direita da direita, a mais direita). Fui-o porque ela era a favor da liberdade humana e se parecia que era contra a liberdade humana, era só por defender a liberdade humana. Hoje sou contra a defesa da liberdade humana, porque sou a favor da liberdade humana. Esquerdas e direitas dizem-me que se eu sou contra a defesa da liberdade humana, por ser a favor da liberdade humana, sou realmente contra a liberdade humana e estou por isso fazendo o jogo de uns ou de outros, consoante aqueles que me acusam.
Ah, por favor, não me peçam explicações - sou homem, não sou político. Defendo a liberdade porque sou pela liberdade e por isso não devo defender a liberdade, porque para defender a liberdade teria de atacar a liberdade, o que me obrigaria então a defendê-la por ser a favor dela - merda! Sou pela liberdade, sou contra a opressão, e isto é simples, é humano, é evidente - disse! E não me chateiem mais.



Vergílio Ferreira, in 'Estrela Polar'


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Questão de pontuação
em 15/04/2012 18:51:55 (5136 leituras)
João Cabral de Melo Neto

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.




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A morte absoluta
em 09/04/2012 22:44:22 (3066 leituras)
Manuel Bandeira

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.


Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.


Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?


Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.


Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."


Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.


FONTE: JORNAL DE POESIA


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Vestígios
em 09/04/2012 22:32:11 (3183 leituras)
Al Berto


noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras



hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se



onde se pode - num vocabulário reduzido e

obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir



apesar de tudo

continuamos e repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial




“Horto de Incêndio” Assirio & Alvim, 1997



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Nossa truculência
em 09/04/2012 22:22:37 (2896 leituras)
Clarice Lispector

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.


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O quotidiano “não”
em 09/04/2012 21:51:28 (2444 leituras)
Alexandre O´Neill


Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»

não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação
(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto

da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...




“Poesias Completas” Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983


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Decálogo do artista
em 07/04/2012 20:13:45 (1568 leituras)
Outros Autores



Gabriela Mistral

I. Amarás a beleza, que é a sombra de Deus sobre o Universo.
II. Não há arte atéia. Embora não ames ao Criador, o afirmarás criando a sua semelhança.
III. Não darás a beleza como isca para os sentidos, se não como o natural alimento da alma.
IV. Não te será pretexto para a luxúria nem para a vaidade, se não exercício divino.
V. Não a buscarás nas feiras nem levarás tua obra a elas, porque a Beleza é virgem, e a que está nas feiras não é Ela.
VI. Subirá de teu coração a teu canto e te haverá purificado a ti o primeiro.
VII. Tua beleza se chamará também misericórdia e consolará o coração dos homens.
VIII. Darás tua obra como se dá um filho: tirando sangue de teu coração.
IX. Não te será a beleza ópio adormecido, se não vinho generoso que te estimula para a ação, pois se deixas de ser homem ou mulher, deixarás de
ser artista.
X. De toda a criação sairás com vergonha, porque foi inferior a teu sonho e inferior a esse maravilhoso Deus que é Natureza.



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Vida e Obra
em 31/03/2012 13:48:12 (4694 leituras)
Millôr Fernandes

Millôr Fernandes

"Acreditar que não acreditamos
em nada é crer na crença do descrer".


"Millôr Fernandes nasceu. Todo o seu aprendizado, desde a mais remota infância. Só aos 13 anos de idade, partindo de onde estava. E também mais tarde, já homem formado. No jornalismo e nas artes gráficas, especialmente. Sempre, porém, recusou-se, ou como se diz por aí. Contudo, no campo teatral, tanto então quanto agora. Sem a menor sombra de dúvida. Em todos seus livros publicados vê-se a mesma tendência. Nunca, porém diante de reprimidos. De 78 a 89, janeiro a fevereiro. De frente ou de perfil, como percebeu assim que terminou seu curso secundário. Quando o conheceu em Lisboa, o ditador Salazar, o que não significa absolutamente nada. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi exatamente o contrário. Amigos e mesmo pessoas remotamente interessadas - sem temor nenhum. Onde e como, mas talvez, talvez — Millôr, porém, nunca. Isso para não falar em termos públicos. Mas, ao ser premiado, disse logo bem alto - e realmente não falou em vão. Entre todos os tradutores brasileiros. Como ninguém ignora. De resto, sempre, até o Dia a Dia”.

("Currículo" publicado por Millôr quando de sua estréia no jornal "O Dia", Rio (RJ).


Considerado "um dos poucos escritores universais que possuímos", na opinião do crítico Fausto Cunha, filho de Francisco Fernandes e de Maria Viola Fernandes, Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923 no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, com o nome de Milton Viola Fernandes. Só seria registrado no ano seguinte, tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924. Sua certidão de nascimento, grafada à mão, fazia crer que seu nome era Millôr e não Milton. Seu pai, engenheiro emigrante da Espanha, morre em 1925, com apenas 36 anos. A família começa a passar por dificuldades e sua mãe passa horas em frente a uma máquina de costura para poder sustentar os 4 filhos. Apesar do aperto, o autor teve uma infância feliz, ao lado de 10 tios, 42 primos e primas e da avó italiana D. Concetta de Napole Viola.

Estuda na Escola Ennes de Souza, de 1931 a 1935, por ele chamada de Universidade do Meyer, mas que na verdade era uma escola pública. Diz dever tudo o que sabe a sua professora, Isabel Mendes, depois diretora e hoje nome da escola. Se emociona ao falar sobre ela "...uma mulatinha magra e devotada, que me ensinou tudo que se deve aprender de um professor ou de uma escola: a gostar de estudar. Depois disso, pode-se ser autodidata. Escola, a não ser para campos técnicos/experimentais, é praticamente inútil".

A chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, em 1934, faz de Millôr um leitor assíduo dessas publicações, em especial de Flash Gordon, de autoria de Alex Raymond, e, com isso, dar vazão à sua criatividade. Sob a influência de seu tio Antônio Viola, tem seu primeiro trabalho publicado em um órgão da imprensa — "O Jornal", do Rio de Janeiro, tendo recebido o pagamento de 10 mil reis por ele. Era o início do profissionalismo, adotado e defendido para sempre.




Em 1935, também com 36 anos, falece sua mãe, o que faz com que os irmãos Fernandes passem a levar uma vida dificílima. Essa coincidência de datas leva Millôr a escrever um conto, "Agonia", publicado na revista "Cigarra" em janeiro de 1947, onde afirmava: "Tenho dia e hora marcada para me ir e o acontecimento se dará por volta de 1959". A morte da mãe o leva a morar em Terra Nova, subúrbio próximo ao Méier, com o tio materno Francisco, sua mulher Maria e quatro filhos.

Trabalha, em 1938, com o Dr. Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto, entregando o remédio para os rins "Urokava" em farmácias e drogarias. Durou pouco esse emprego. Logo vai ser contínuo, repaginador, factótum, na pequena revista "O Cruzeiro", que nessa época tinha, além de Millôr, mais dois funcionários: um diretor e um paginador. A revista, anos depois, chegou a vender mais de 750.000 exemplares. Com o pseudônimo "Notlim" ganha um concurso de crônicas promovido pela revista "A Cigarra". Com isso, é promovido e passa a trabalhar no arquivo.

O cancelamento de publicidade em quatro páginas de "A Cigarra" fez com que fosse chamado por Frederico Chateaubriand para preencher as páginas que ficaram em branco. Cria, então, o "Poste Escrito", onde assinava-se Vão Gôgo. O sucesso da seção faz com que ela passe a ser fixa. Com o mesmo pseudônimo, começa a escrever uma coluna no "Diário da Noite". Assume a direção de "A Cigarra", cargo que ocuparia por três anos. Dirigiu também "O Guri", revista em quadrinhos e "Detetive", que publicava contos policiais.

Ciente da necessidade de se aprimorar, estuda no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro de 1938 a 1943.

Em 1940, muda-se para o bairro da Lapa, centro da cidade, e passa a morar próximo a Alceu Pena, seu colega em "O Cruzeiro". Colabora na seção "As garotas do Alceu" como colorista e versejador.

Autodidata, faz sua primeira tradução literária: "Dragon seed", romance da americana Pearl S. Buck, com o título "A estirpe do dragão", em 1942.

No ano seguinte retorna, com Frederico Chateaubriand e Péricles, à revista "O Cruzeiro". Em dez anos, a tiragem foi um grande êxito editorial, passando de 11 mil para mais de 750 mil exemplares semanais.

Em 1945, inicia a publicação de seus trabalhos na revista "O Cruzeiro", na seção "O Pif-Paf", sob o pseudônimo de Vão Gôgo e com desenhos de Péricles.

No ano seguinte lança "Eva sem costela — Um livro em defesa do homem", sob o pseudônimo de Adão Júnior.

Sua colaboração para "O Cruzeiro", em 1947, atinge a marca de dez seções por semana.

Em 1948 viaja aos Estados Unidos, onde encontra-se com Walt Disney, Vinicius de Moraes, o cientista César Lates e a estrela Carmen Miranda. Casa-se com Wanda Rubino.

Publica "Tempo e Contratempo", com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo, em 1949. Assina seu primeiro roteiro cinematográfico, "Modelo 19". O filme, lançado com o título "O amanhã será melhor", ganha cinco prêmios Governador do Estado de São Paulo. Millôr é agraciado com o de melhores diálogos.

Em 1951, na companhia de Fernando Sabino, viaja de carro pelo Brasil, durante 45 dias. Lança a revista semanal "Voga", que teve apenas cinco números.

Viaja pela Europa por quatro meses, em 1952.

"Uma mulher em três atos", sua primeira peça, estréia no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo (SP), em 1953.

No ano seguinte, compra o imóvel que se tornaria famoso — "a cobertura do Millôr", no bairro de Ipanema, onde o escritor até hoje vive. Nasce seu filho Ivan.

Em 1955, divide com o desenhista norte-americano Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, Argentina. Escreve “Do tamanho de um defunto”, que estreou no Teatro de Bolso (Rio) e, depois, adaptado pelo próprio autor para o cinema, tendo o filme o título de “Ladrão em noite de chuva”. Nesse ano escreve “Bonito como um deus”, que estréia no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo (SP), e ainda “Um elefante no caos” e “Pigmaleoa”.

Em 1956, Millôr passa a ilustrar todos os seus textos publicados na revista "O Cruzeiro".

No ano de 1957, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebe exposição individual do biografado. Realiza a cenografia de “As guerras do alecrim e da manjerona”. Esse trabalho foi premiado pelo Serviço Nacional de Teatro no ano de 1958.

Nesse ano, conclui a primeira tradução teatral: “Good people”, então intitulada “A fábula de Brooklin — Gente como nós”. Fez parte do grupo que "implantou" o frescobol no posto 9, Ipanema, Rio de Janeiro.

Escreve o roteiro de “Marafa”, a partir do romance homônimo de Marques Rebello. Em 1959. No mesmo ano, apresenta na TV Itacolomi, de Belo Horizonte, a convite de Frederico Chateaubriand, uma série de programas intitulada “Universidade do Méier”, na qual desenhava enquanto fazia comentários. Posteriormente, o programa foi transferido para a TV Tupi do Rio de Janeiro, com o título de “Treze lições de um ignorante” e suspenso por ordem do governo Juscelino Kubitschek após uma crítica à primeira dama do país: Disse Millôr: "Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de 5 meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho." Nasce sua filha, Paula.

Nos anos seguintes, já integrado à intelectualidade carioca, convive com Péricles, criador de "O Amigo da Onça", Nelson Rodrigues, David Nasser, Jean Manson, Alfredo Machado, Fernando Chateaubriand, Emil Farhat e Accioly Netto, entre outros.

Em 1960, depois de resolvidos os problemas com a censura, estréia no Teatro da Praça, no Rio, ”Um elefante no caos”. O título original da peça era “Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país” rendeu a Millôr o prêmio de “Melhor Autor” da Comissão Municipal de Teatro. O filme “Amor para três”, com roteiro do biografado, baseado em “Divórcio para três”, de Victorien Sardou, é dirigido por Carlos Hugo Christensen. Millôr colaboraria com esse diretor em mais três filmes: “Esse Rio que eu amo”, 1962, Crônica da cidade amada”, 1965, e O menino e o vento, 1967.

Expõe, em 1961, desenhos na Petit Galerie, no Rio. Viaja ao Egito e retorna antes do previsto, tendo em vista a renúncia do presidente Jânio Quadros. Trabalha por 7 dias no jornal "Tribuna da Imprensa", Rio, que mais tarde pertenceu a seu irmão Hélio Fernandes. Foi demitido por ter escrito um artigo sobre a corrupção na imprensa. Os editores, o poeta Mário Faustino e o jornalista Paulo Francis pediram também demissão em solidariedade.

No ano seguinte, na edição de 10 de março de “O Cruzeiro”, “demite” Vão Gôgo e passa a assinar Millôr. A Amstutz & Herder Graphic Press, importante publicação de Zurique, dedica uma página de seu anuário ao autor. “Pigmaleoa” é apresentada, sob a direção de Adolfo Celi, no Teatro Rio.

Em 1963, escreve a peça teatral “Flávia, cabeça, tronco e membros”. Viaja a Portugal e, durante sua ausência, a revista “O Cruzeiro” publica editorial no qual se isenta de responsabilidade pela publicação de “História do Paraíso”, que obteve repercussão negativa por parte dos leitores católicos da revista. Millôr deixa a revista e começa a trabalhar no jornal “Correio da Manhã”, lá ficando até o ano seguinte.

A partir de 1964, e até 1974, colabora semanalmente no jornal Diário Popular, de Portugal. A página mereceria o seguinte comentário de um ministro de Salazar: "Este tem piada, pena que escreva tão mal o português". Lança a revista “Pif-Paf”, considerada o início da imprensa alternativa no Brasil. Foi fechada em seu oitavo número, por problemas financeiros.

Volta à TV, em 1965, como apresentador na TV Record, ao lado de Luis Jatobá e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), do “Jornal de Vanguarda”. “Liberdade liberdade” estréia no Teatro Opinião, no Rio, musical escrito em parceria com Flávio Rangel.

Composta pelo biografado, a canção “O homem” é defendida no II Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record, por Nara Leão, em 1966. Monta, ao ar livre, no Largo do Boticário, Rio, só com atores negros, sua adaptação de “Memórias de um sargento de milícias”.

Em 1968 atua, ao lado de Elizeth Cardoso e do Zimbo Trio, em “Do fundo do azul do mundo”, espetáculo musical de sua autoria. Passa a colaborar com a revista “Veja”.

Na sua estréia, apresentou-se com o texto que abaixo reproduzimos parcialmente:

SUPERMERCADO MILLÔR
ANO I - N.º 1

(Autobiografia De Mim Mesmo À Maneira De Mim Próprio)

"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras — reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.”

”... Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela....Aos quinze (anos) já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil. Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conhas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes ciclames. Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo. Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu.”

”Sou um crente, pois creio firmemente na descrença. ...Creio que a terra é chata. Procuro não sê-lo. ...Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos.”

”A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado. É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a idéia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo. Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar.”·

Ainda em 1968 escreve o texto do show “Momento 68”, promovido pela empresa Rhodia, que contou com a participação de Caetano Veloso, Walmor Chagas e Lennie Dale, entre outros.

No ano seguinte, participa do grupo fundador de “O Pasquim”.

Fernanda Montenegro estrela “Computa, computador, computa”, no Teatro Santa Rosa, no Rio, em 1972. Lança o livro “Esta é a verdadeira história do Paraíso” e também “Trinta anos de mim mesmo”, numa sessão de autógrafos denominada “Noite da contra-incultura”.

Em 1975, faz exposição de 25 quadros “em branco, mas com significado”, na Galeria Grafitti, no Rio.

No ano seguinte, escreve para Fernanda Montenegro a peça “É...”, que se tornou o grande sucesso teatral de Millôr ao ser encenada no Teatro Maison de France, no Rio.

Em 1977, realiza nova exposição de seus trabalhos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Adapta, no ano seguinte, para o formato de musical a peça “Deus lhe pague”, de Joracy Camargo, que contou com Bibi Ferreira na direção e com músicas de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. É homenageado pelo 5º Salão de Humor de Piracicaba (SP), mas “exige” que a honraria seja “para todos os humoristas na pessoa de Millôr Fernandes”. Em Brasília, para o Museu da Moeda, localizado no Banco Central do Brasil, produz quatro painéis que contam a
história do dinheiro.

Estréia no Teatro dos Quatro, Rio, a peça “Os órfãos de Jânio”, em 1980.

Publica “Desenhos”, uma compilação de seus trabalhos gráficos, com textos de apresentação de Pietro Maria Bardi e Antônio Houaiss, em 1981.

O ano de 1982 é de muito trabalho. O autor escreve e publica a peça “Duas tábuas e uma paixão”. Traduz a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lear, apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tetê Medina monta “A eterna luta entre o homem e a mulher”, no Teatro Clara Nunes – Rio. Escreve a adaptação de “A chorus line”, encenado por Walter Clark. Estréia “Vidigal: Memórias de um sargento de milícias”. São dele, nessa peça, os cenários, figurinos e letras, musicadas por Carlos Lyra. Com Flávio Rangel, escreve e representa o espetáculo “O gesto, a festa, a mensagem”, na TV Record de São Paulo. Deixa a revista “Veja”.

Em 1983, é homenageado pela Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, de Niterói (RJ). Millôr não comparece ao desfile. Passa a colaborar com a revista “Istoé”.

Lança “Poemas”, em 1984. Estréia o musical “O MPB4 e o dr. Çobral vão em busca do mal”.

No ano seguinte, colabora com o Jornal do Brasil. Lança o “Diário da Nova República”. É montada a peça “Flávia, cabeça, tronco e membros” no Teatro Ginástico – Rio.

Passa a usar o computador para escrever e desenhar, em 1986. Escreve, com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, o roteiro do filme “O judeu”, dirigido por Jom Tob Azulay, baseado na vida de António José da Silva. Rodado em Portugal, só seria concluído em 1995.

”L’anné 82 au Brésil: le regard critique de Millôr Fernandes” (O ano de 82 no Brasil: o olhar crítico de Millôr Fernandes), é o tema de tese de doutoramento de Françoise Duprat na Universidade de Toulouse-Le Mirail II, França, em 1987.

No ano seguinte, lança “The cow went to the swamp / A vaca foi para o brejo”. Na Universidade de São Paulo (USP), Branca Granatic defende, na dissertação de mestrado, “Os recursos humorísticos de Millôr Fernandes”.

Em 1990, nasce seu neto, Gabriel, filho de Ivan.

Deixa a revista “Istoé” e o Jornal do Brasil, em 1992.

No ano de 1994, lança “Millôr definitivo — A bíblia do caos”.

Escreve a peça “Kaos”, Adapta para a Rede Globo “Memórias de um sargento de milícias”. A partir de um argumento de Walter Salles, escreve o roteiro “Últimos diálogos”, em 1995.

Em 1996, passa a colaborar nos jornais “O Dia” (RJ), “O Estado de São Paulo” (SP) e “Correio Braziliense” (DF). Neste último, trabalharia somente até o fim do ano.

Em 1998, em parceria com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay, assina o roteiro de “Mátria”.

No ano seguinte, começa a adaptar “Os três mosqueteiros”, de Dumas, para o formato de musical, trabalho que não chegou a ser concluído.

Em 2000, escreve o roteiro de “Brasil! Outros 500 — Uma PoopÓpera”, que teve sua estréia no Teatro Municipal de São Paulo. O espetáculo contava com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro e arranjos de Wagner Tiso. Deixa de colaborar com “O Estado de São Paulo” e “O Dia”. Passa a colaborar com coluna semanal na “Folha de São Paulo”. Lança o site “Millôr On Line” (http://www.millor.com.br) .

No ano seguinte, deixa a “Folha de São Paulo” e volta ao “Jornal do Brasil”.

Em 2002, publica “Crítica da razão impura ou O primado da ignorância”, em que analisa as obras “Brejal dos Guajas e outras histórias”, de José Sarney, e “Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso. Deixa de colaborar, em novembro, com o “Jornal do Brasil”.

Em 2003, ilustra “O menino”, volume de contos de João Uchoa Cavalcanti Netto, e faz cem desenhos para uma nova compilação das “Fábulas fabulosas”.

Em 2004, lança pela Editora Record, “Apresentações”.

Em meados de agosto de 2004 é anunciado seu retorno às folhas da revista semanal “Veja”, a partir de setembro daquele ano.

Tempos atrás um jornal publicou que Millôr estava todo cheio de si por ter recebido, em sua casa, uma carta de um leitor com o seguinte endereçamento:

"Millôr
Ipanema"

É a glória!

Mestre Millôr Fernandes, 88 anos, deixou a Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, onde havia sido internado no início de fevereiro, devido a um AVC. Se recupera em sua casa.


Textos extraídos de livros do autor, da Internet, do CD "Em busca da Imperfeição", de 1999, produzido pela Neder & Associados e dos “Cadernos de Literatura Brasileira – Instituto Moreira Salles.

Esse gênio brasileiro faleceu no dia 27/03/2012 na cidade do Rio de Janeiro.

LIVROS DO AUTOR:

Prosa:

- "Eva sem costela – Um livro em defesa do homem" (sob o pseudônimo de Adão Júnior) - 1946 - Editora O Cruzeiro.

- "Tempo e contratempo" (sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogô) - 1949 - Editora O Cruzeiro.

- "Lições de um ignorante" - 1963 - J. Álvaro Editor

- "Fábulas Fabulosas" - 1964 - J. Álvaro Editor. Edição revista e ilustrada – 1973 - Nórdica

- "Esta é a verdadeira história do Paraíso" - 1972 - Livraria Francisco Alves

- "Trinta anos de mim mesmo" - 1972 - Nórdica

- "Livro vermelho dos pensamentos de Millôr" - 1973 – Nórdica. Edição revista e ampliada: Senac – 2.000.

- "Compozissõis imfãtis" - 1975 - Nórdica

- "Livro branco do humor" - 1975 – Nórdica

- "Devora-me ou te decifro" – 1976 – L&PM

- "Millôr no Pasquim" - 1977 – Nórdica

- "Reflexões sem dor" - 1977 - Edibolso.

- "Novas fábulas fabulosas" - 1978 – Nórdica

- "Que país é este?" - 1978 – Nórdica

- "Millôr Fernandes – Literatura comentada". Organização de Maria Célia Paulillo – 1980 Abril Educação

- "Todo homem é minha caça" - 1981 - Nórdica

- "Diário da Nova República" - 1985 – L&PM

- "Eros uma vez" – 1987 – Nórdica – Ilustrações de Nani

- "Diário da Nova República,v. 2" - 1988 – L&PM

- "Diário da Nova República, v. 3" – 1988 – L&PM

- "The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo" – 1988 - Record

- "Humor nos tempos do Collor" (com L. F. Veríssimo e Jô Soares) – 1992 – L&PM

- "Millôr definitivo - A bíblia do caos" - 1994 – L&PM

- "Amostra bem-humorada" – 1997 – Ediouro – Seleção de textos de Maura Sardinha

- "Tempo e contratempo (2ª edição) – Millôr revisita Vão Gogô" - 1998 - Beca.

- "Crítica da razão impura ou O primado da ignorância – Sobre Brejal dos Guajas, de José Sarney, e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso" – 2002 – L&PM

- "100 Fábulas Fabulosas" – 2003 – Record

- "Apresentações" – 2004 – Record.

- "Abecedário do Millôr para crianças" - 2004 - Nova Fronteira, com Guto Lins e Susan Johnson

- "Pif Paf 40 anos depois" - 2005 - Argumento, com Ziraldo, Claudius e outros

Poesia:

- "Papaverum Millôr" – 1967 – Prelo. Edição revista e ilustrada: 1974 – Nórdica

- "Hai-kais" – 1968 – Senzala

- "Poemas" – 1984 – L&PM


Artes visuais:

- "Desenhos" – 1981 – Raízes Artes Gráficas. Prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss.


PEÇAS DE TEATRO:

Publicadas em livros:

- "Teatro de Millôr Fernandes (inclui Uma mulher em três atos [1953], Do tamanho de um defunto [1955], Bonito como um deus [1955] e A gaivota [1959])" – 1957 –Civilização Brasileira

- "Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país" – 1962 – Editora do Autor

- "Pigmaleoa" – 1965 – Brasiliense

- "Computa, computador, computa" – 1972 – Nórdica

- "É..." – 1977 – L&PM

- "A história é uma istória" – 1978 – L&PM

- "O homem do princípio ao fim" – 1982 – L&PM

- "Os órfãos de Jânio" – 1979 – L&PM

- "Duas tábuas e uma paixão" – 1982 – L&PM (nunca encenada)

Não editadas:

- "Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal" - 1955

- "Pif, tac, zig, pong"– 1962

- "A viúva imortal" – 1967

- "A eterna luta entre o homem e a mulher" – 1982

- "Kaos" – 1995 (leitura pública em 2001 – nunca encenada)


ESPETÁCULOS MUSICAIS:

- "Pif-Paf – Edição extra!" – 1952 (com músicas de Ary Barroso)

- "Esse mundo é meu" – 1965 (em parceria com Sérgio Ricardo)

- "Liberdade liberdade" – 1965 (em parceria com Flávio Rangel)

- "Memórias de um sargento de milícias" - 1966 (com músicas de Marco Antonio e Nelson Lins e Barros)

- Momento 68 – 1968

- Mulher, esse super-homem – 1969

- Bons tempos, hein?! – 1979 (publicada pela L&PM - 1979 - Porto Alegre)

- Vidigal: Memórias de um sargento de milícias – 1982 (com músicas de Carlos Lyra)

- De repente – 1984

- O MPB-4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal – 1984

- Brasil! Outros 500 – Uma PopÓpera (com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro)


TRADUÇÕES:

Romances:

- A estirpe do dragão (Dragon seed), de Pearl S. Buck - 1942 - José Olympio Editora - Rio de Janeiro.

- Nunca saí de casa (I never left home), de Bob Hope - 1945 - O Cruzeiro - Rio de Janeiro.

Textos teatrais:

1958 – "A fábula de Brooklin – Gente como nós", de Irwin Shaw.

1960 - "O prodígio do mundo Ocidental", de John M. Synge.

1961 - "Megera domada", de W. Shakespeare.

1961 – "O velho ciumento", de Miguel de Cervantes.

1963 – "Mary, Mary", de Jean Kerr.

1963 – "Pigmaleão", de G. Bernard Shaw.

1963 – "As preciosas ridículas", de Molière.

1965 - "Pequenos assassinatos", de Jules Feiffer.

1965 – "A mulher de todos nós", de Henri Becque.

1965 - "Escola de mulheres", de Molière.

1967 - "Lisistrata", de Aristófanes.

1967 – "Negra meobem", de François Campaux.

1967 – "O assassinato da irmã Geórgia", de Frank Marcus.

1967 - "Marat Sade", de Peter Weiss.

1967 - "A volta ao lar", de Harold Pinter.

1967 - "Blecaute", de Frederic Knott.

1968 - "A cozinha", de Arnold Wesker.

1970 – "Rapazes da banda", de Mart Crowley.

1971 - "As eruditas", de Molière.

1972 - "Antigamente", de Harold Pinter.

1974 - "Antígona", de Sófocles.

1975 - "Os filhos de Kennedy", de Robert Patrick.

1976 - "Senhor Puntila e seu criado Matti", de Bertold Brechet.

1976 – "Vivaldino, servidor de dois amos", de Carlo Goldoni.

1977 - "A calça", de Carl Sternheim.

1978 - "Quem tem medo de Virginia Wolf?", de Edward Albee.

1979 - "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder.

1979 - "Palhaços de ouro", de Neil Simon.

1980 – "O rei Lear", de W. Shakespeare.

1980 - "De quem é a vida, afinal?", de Brian Clark.

1980 - "Gata em telhado de zinco quente", de Tennessee Williams.

1980 - "A carta", de Somerset Maugham.

1980 - "Ó, Calcutá!", de Kenneth Tynan.

1981 - "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder.

1981 – Bunny’s Bar, de Josiane Balasko.

1981 - "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare.

1981 - "A senhorita de Tacna", de Mario Vargas Llosa.

1982 - "Chorus line", de de Michael Bennet.

1982 – "Casamento branco", de Tadeusz Rozewicz.

1982 – "Hedda Gabler", de Henrik Ibsen.

1982 - "A viúva alegre", de Franz Lehar.

1983 - "A falecida senhora sua mãe", de George Feydeau.

1983 - "Piaf", de Pam Gems.

1983 - "O jardim das cerejeiras", de Anton Tchekov.

1983 - "Boa noite, mãe", de Marsha Norman.

1984 - "Grande e pequeno", de Botho Strauss.

1984 - "Pô, Romeu!", de Efraim Kishon.

1984 - "Hamlet", de W. Shakespeare.

1984 - "Tio Vânia", de Anton Tchekov.

1984 – "Dédalo e Ícaro", de Dario Fo.

1984 – "O sacrifício de Isaac", de Dário Fo.

1984 – "A tigresa", de Dário Fó.

1984 – "Gilda, um projeto de vida", de Noel Coward.

1984 - "Madame Vidal", de Georges Feydeau.

1985 - "Fedra", de Jean Racine.

1985 - "O feitichista", de Michel Tournier.

1985 - "Imaculada", de Franco Scaglia.

1985 - "Sábado, domingo e segunda", de Edoardo de Filippo.

1985 - "Assim é, se lhe parece", de Luigi Pirandello.

1986 - "Quarteto", de Heiner Müller.

1986 – "Quatro vezes Beckett", de Samuel Beckett.

1986 – "Ensina-me a viver", de Collin Higgins.

1987 - "O preço", de Arthur Miller.

1987 - "Filumena Marturano", de Edoardo de Filippo.

1987 - "Vestir os nus", de Pirandello.

1988 - "Encontrarse", de Pirandello.

1987 – "La mamma ou O belo Antônio", de Vitaliano Francatti.

1994 - "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière.

1996 - "Anna Magnani", de Armand Meffre.

1996 – "Paloma", de Jean Anouilh.

1996 – "Master class", de Terence McNally.

1999 - "Últimas luas", de Furio Bordon.

2001 – "Fim de jogo", de S. Beckett.

Traduções para o teatro publicadas:

- "A megera domada", de W.Shakespeare - 1965 - Letras e Artes

- "Sr. Puntila e seu criado Matti", de B.Brecht - 1966 - Civilização.Brasileira

- "O prodígio do mundo ocidental", de John M. Synge - 1968 – Braziliense

- "Escola de mulheres", de Molière - 1973 – Nórdica

- "Os filhos de Kennedy", de R. Patrick - 1975 – Nórdica

- "A volta ao lar", de Harold Pinter – 1976 – Abril Cultural

- "Lisistrata", de Aristófanes – 1977 – Abril Cultural

- "O rei Lear", de W. Shakespeare – 1981 – L&PM

- "A senhorita de Tacha", de Mário Vargas Llosa – 1981 – Francisco Alves

- "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM

- "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM

- "Hamlet", de W. Shakespeare – 1984 – L&PM

- "Fedra", de J. Racine – 1985 – L&PM

- "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière – 1994 – L&PM

- "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare – 1995 – L&PM

- "Antígona", de Sófocles – 1996 – Paz e Terra

- "As eruditas", de Molière – 2003 – L&PM.


FÁBULA:

- "A ovelha negra e outras fábulas", de Augusto Monterroso – 1983 – Record, ilustrações de Jaguar.


HUMOR:

- "A completa lei de Murphy", de Arthur Bloch – 1996 – Record – ilustrações de Jaguar.


EXPOSIÇÕES:

1957 - Exposição no Museu de Arte Moderna - Rio.

1961 - Exposição na Petite Galerie - Rio.

1975 - Exposição de desenhos na Galeria Grafitti - Rio.

1977 - Exposição "Visão da Terra" no Museu de Arte Moderna - Rio.


MULTIMÍDIA:

2000 - "Em Busca da Imperfeição" - CD-Rom - Neder & Associados / Oficina / Universo Online (UOL).


ROTEIROS PARA O CINEMA:

Individuais:

1952 – "Modelo 19". Lançado como “O amanhã será melhor”, também conhecido como “Uma ponte de esperança”. Direção de Armando Couto.

1960 – "Amor para três". Direção de Carlos Augusto Christensen.

1960 – "Ladrão em noite de chuva". Direção de Armando Couto.

1962 – "Esse Rio que eu amo". Direção de Carlos Augusto Christensen.

1965 – "Crônica da cidade amada". Direção de Carlos Augusto Christensen.

1967 – "O menino e o vento". Direção de Carlos Augusto Christensen.

1995 – "Últimos diálogos". Ainda não filmado (2004).

Em parceria:

1995 - "O judeu". Com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira. Direção de Jom Tob Azulay.

1998 - "Matria”. Com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay (Ainda não filmado – 2004).

Colaboração:

1995 – "Terra estrangeira". Direção de Walter Salles e Daniela Thomas (diálogos adicionais).


ADAPTAÇÃO PARA A TELEVISÃO:

- "Memórias de um sargento de milícias". Baseado no musical “Vidigal”. Direção de Mauro Mendonça Filho, Rede Globo de Televisão – 1995.


INTERNET:

2000 – Millôr Online (http://www.millor.com.br).


ILUSTRAÇÕES:

- "Maurício, o leão de menino", de Flávia Mari. São Paulo - 1981 – Summus.

- "Sapomorfose ou O príncipe que coaxava", de Cora Rónai. Rio de Janeiro – 1983 – Salamandra.

- "O caderno rosa de Lori Lamby", de Hilda Hilst. São Paulo – 1990 – Massao Ohno.

- "Retrato do artista quando coisa", de Manuel de Barros. Rio de Janeiro - 1998 - Editora Record

- "O menino", de João Uchoa Cavalcanti Netto. Rio de Janeiro – 2003 – Editora Rio.


COMPOSIÇÃO MUSICAL:

1966 – "O homem". Apresentada por Nara Leão no II Festival de Música Brasileira, da TV Record de São Paulo.


Textos extraídos de livros do autor, da Internet , do CD "Em busca da Imperfeição", de 1999, produzido pela Neder & Associados e dos “Cadernos de Literatura Brasileira – Instituto Moreira Salles.

Fonte: http://www.releituras.com/


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Mudança
em 03/03/2012 14:45:43 (5818 leituras)
Clarice Lispector

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa. Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua. Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas. Dê os seus sapatos velhos. Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da cama... Depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de tv, compre outros jornais... leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida. Ame a novidade. Durma mais tarde. Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
A nova vida. Tente. Busque novos amigos. Tente novos amores. Faça novas relações.
Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado... outra marca de sabonete, outro creme dental... Tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores. Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco. Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só. E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as. Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino. Experimente coisas novas. Troque novamente. Mude, de novo. Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia. Só o que está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!


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Primeiros cem anos de uma eternidade
em 28/02/2012 22:40:37 (2130 leituras)
Outros Autores




A semana passada, fomos largamente informados, por todos os meios de comunicação, do centenário do nascimento de Charlie Chaplin. A Rádio Televisão Portuguesa levou a todas as casas o eco da sua homenagem, transmitindo uma pequena série dos primeiros e difíceis passos do querido Charlot e repondo um dos seus filmes mais celebrados – AS LUZES DA RIBALTA. Não exagero se lhes disser que senti todas as manifestações de carinho e homenagem como se fossem feitas a uma pessoa de família. É que… o meu espírito jamais se desligou de Charlie Chaplin desde que, em pequenino, os meus olhos se alegraram e a minha boca se encheu de riso à sua custa. Ao longo da vida, fui vendo todos os seus filmes e lendo todas as suas biografias. E nunca no meu sentir foi menos luminosa a sua figura de artista inigualável. Tenho dele um grande poster ao fundo do corredor. É uma espécie de ícone dessa estranha religião que é o humor universal. O riso é a mais inequívoca expressão de felicidade. Enquanto o homem ri, nada lhe pode enegrecer a alma e o espírito. Nunca dois homens se odiaram, ao rir do mesmo riso. Mais do que a política ou a religião o riso é capaz de irmanar os homens, ainda que por uns segundos… Charlie Chaplin foi o maior e mais completo artista cómico da história do cinema. Do gesto mais simples à mais complicada montagem, tudo nele é intenção de fazer rir. Mas nunca é alvar o riso ou o sorriso que nos liberta, por momentos, do peso da vida. No riso de Charlot há sempre conteúdo humano. Por vezes tão humano que a comoção chega primeiro que o riso. Tantas, tantas cenas em que nos fica no peito uma estranha sensação de alegre sofrimento… Durante dezenas de anos Charlie Chaplin fez rir as crianças de todo o mundo. As crianças e os adultos. Adulto que não ri com Charlot só cresceu por fora. Vamos fechar as luzes e passar uma fita de Charlot. É bem capaz de partir quando estiver no melhor da fita. Mas não faz mal. Vale sempre a pena! Charlot aparece com aquele cão esbranquiçado que às vezes o acompanha. A rua é escura, sórdida e deserta… Diante da porta iluminada de um cabaret Charlot hesita entre seguir ou entrar. Dois passinhos à frente… dois passinhos atrás… Depois de uns segundos de reflexão, toma um ar resoluto e tenta atravessar a porta. Mas o porteiro, que é uma abantesma, faz-lhe ver que não pode entrar com o cão. Charlot parece compreender e afasta-se. De repente pára de rosto iluminado por uma ideia. A ideia foi meter o cão no fole das calças e voltar ao cabaret com um ar muito digno. O porteiro, assim, sem cão, deixa-o entrar, embora intrigado com tão rápida mudança… Ao passar por entre as mesas, Charlot puxa as calças acima, mas tem tanto azar que o rabo do cão lhe sai pela braguilha, muito teso… Já com muita gente a rir e a morrer de espanto, Charlot quer salvar a situação, tentando meter o rabo para dentro, com ar pudico e circunspecto de quem acaba de urinar. A mão esquerda metida no fole das calças faz festas ao cão para o sossegar. Foi pior! O cão, com as festas, desata a dar ao rabo, tornando ainda mais insólito o que se passa na braguilha… Tomado de pânico, Charlot corre para a orquestra e tenta esconder-se atrás do bombo. Consegue ali sossegar um pouco, mas logo tudo se agita porque o cão volta a dar ao rabo e a bater no bombo… pom!... pom!... pom!... A fita parte, acendem-se as luzes e Charlot regressa em passinhos curtos de botas cambadas ao cantinho da nossa memória.”

“Crónicas do meu vagar”
de Camilo de Araújo Correia


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Monólogo de Orfeu
em 19/02/2012 16:43:48 (3146 leituras)
Vinícius de Moraes



Mulher mais adorada!
Agora que não estás,
deixa que rompa o meu peito em soluços
Te enrustiste em minha vida,
e cada hora que passa
É mais por que te amar
a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.

E sabes de uma coisa?
Cada vez que o sofrimento vem,
essa vontade de estar perto, se longe
ou estar mais perto se perto
Que é que eu sei?
Este sentir-se fraco,
o peito extravasado
o mel correndo,
essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu;
Tudo isso que é bem capaz
de confundir o espírito de um homem.

Nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga,
esse contentamento, esse corpo
E me dizes essas coisas
que me dão essa força, esse orgulho de rei.

Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música.
Nunca fujas de mim.
Sem ti, sou nada.
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada.
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo,
minha amiga mais querida!

Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu,
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres -
que ele, Orfeu,
Ficasse assim rendido aos teus encantos?

Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho
que eu vou te seguindo no pensamento
e aqui me deixo rente quando voltares,
pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo

Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo.


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Primeiro motivo da rosa
em 12/02/2012 22:10:10 (7236 leituras)
Cecília Meireles



Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho… E frágil.


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Alma a sangrar
em 08/02/2012 14:58:20 (4763 leituras)
Florbela Espanca

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...

Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"


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Vida e Obra
em 02/02/2012 13:14:34 (17559 leituras)
José Paulo Paes

José Paulo Paes (Taquaritinga, 1926 — São Paulo, São Paulo, 9 de outubro de 1998) foi um poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta brasileiro.
Tendo estudado química industrial na cidade de Curitiba (entre 1945 e 1948), durante muitos anos José Paulo trabalhou em laboratório farmacêutico. Todavia, paralelo a essa profissão jamais deixou de lado a literatura, cujo interesse foi lhe passado pelo avô que era livreiro, sendo que ainda nos tempos de aluno em Curitiba, já colaborava com a revista Joaquim, dirigida por Dalton Trevisan. Dessa temporada paranaense nasce seu livro de estréia, O aluno, de 1947, fortemente influenciado pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, o qual o respondeu com o conselho de evitar a imitação de vozes alheias.
Em 1949, transfere-se para São Paulo, quando passa a colaborar com os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Tempo, Jornal de Notícias e Revista Brasiliense, aproximando-se de escritores modernistas como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Oswald de Andrade. Conhece também Dora, sua mulher por toda a vida a quem dedicou Cúmplices, de 1951, seu segundo livro. Por falta de um estudo melhor, sua obra foi comparada às dos poetas da Geração de 45, tendo inclusive participado de uma antologia na companhia de Haroldo de Campos e Décio Pignatari, quando eram chamados de “Novíssimos”, ou seja antes da eclosão da poesia concreta, à qual Zé Paulo soube com inteligência absorver, cujos resultados apareceram em seu livro Anatomias de 1967, apresentado justamente por Augusto de Campos. Mais que poesia concreta seu livro aproveitava um ritmo mais oswaldiano, como nos poemas “L'affaire Sardinha” (que fora publicado em 1962 na antologia Violão de Rua, da UNE) e o conhecido “Epitáfio para um Banqueiro”
Por volta de 1963, Zé Paulo dá início a um trabalho editorial intenso à frente da Editora Cultrix, abandonando o trabalho como químico, dedicando-se a partir de então integralmente à literatura. Na companhia de Massaud Moisés foi organizador do Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, publicado pela Editora Cultriz em 1967.
Em 1981,José Paulo aposenta-se como editor, dando início a um dos mais competentes trabalhos de tradução entre os escritores brasileiros, verteu para o português autores de diversas línguas, como Charles Dickens, Joseph Conrad, Pietro Aretino, Konstantínos Kaváfis, Laurence Sterne, W. H. Auden, William Carlos Williams, J.K. Huysmans, Paul Éluard, Hölderlin, Paladas de Alexandria, Edward Lear, Rilke, Seféris, Lewis Carroll, Ovídio, Níkos Kazantzákis, entre outros tantos. Seu reconhecimento na matéria resultou em sua nomeação como Diretor da oficina de tradução de poesia no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 1986 vem a público o livro Um por todos, reunião de seu trabalho até então, apresentado pelo crítico Alfredo Bosi. Vem ainda da década de 1980 seu interesse pela poesia infantil, com a qual alcançou grande êxito entre as crianças.
Em 1989, Zé Paulo lança pela coleção Claro Enigma, organizada por Augusto Massi, o livro "A poesia está morta mas eu juro que não fui eu", título extraído do poema "Acima de qualquer suspeita".
Na década de 1990 dá seqüência ao seu trabalho, lançando diversos livros de ensaios, poemas infantis, traduções e poesia, sendo um dos mais bem recebidos "Prosas seguidas de odes mínimas", livro no qual reflete um momento difícil de sua vida, quando tem uma perna amputada, como pode-se ler no poema "Ode à minha perna esquerda":
Ao falecer em 1998, deixou inédito o livro "Socráticas" que veio a público em 2001.


Entrevista por Rodrigo de Souza Leão com José Paulo Paes
jun/98

Jornal de Poesia - O que o poeta deve ter, de menino, para realizar o seu trabalho?

José Paulo Paes - Uma pequena objeção: poesia não é trabalho, é vocação. Para realizar a sua vocação, todo e qualquer poeta deve preservar o menino que todos trazemos dentro de nós mas que a vida dita prática nos obriga freqüentemente a renegar. O poeta é aquele que se recusa a renegá-lo. E, paradoxalmente, é esse menino que o torna o poeta o mais agudo dos adultos.


Jornal de Poesia - O que busca na sua infância para elaboração dos seus poemas?

JPP - Não creio que se trate de uma busca deliberada. A rigor, o poeta não escreve o poema: o poema é que se escreve através dele. Não que o poeta escreva às cegas, como um medium em transe. Mas a minha experiência me indica que o embrião do poema nasce por si, fruto de uma intuição ou inspiração. À artesania do poeta compete levar o embrião até o fruto final. As mais das vezes, tal embrião é feito de uma ou mais proteínas da infância. Todavia, só as descobrimos a posteriori, quando o poema se completa.


Jornal de Poesia - Como brincar de poesia sem ser infantil?

JPP - Sendo apenas e tão-somente poeta, tipo de homem que se orgulho de ser um adulto infantil ou uma criança adulta.


Jornal de Poesia - Qual a diferença entre brincar com palavras e brincar simplesmente? A poesia é uma brincadeira?

JPP - Você está levando ao pé da letra o que “Convite” diz. Nunca se deve levar um poema ao pé da letra. A poesia está sempre além da letra. O que eu quis dizer em “Convite” é quem se não se deleita, passiva ou ativamente, no convívio com as palavras, jamais conseguirá descobrir o que seja poesia. A quel é, no meu entender, a festa das palavras. Festa no sentido de alegria gratuita, em contraposição a utilização interesseira.


Jornal de Poesia - Como se fundem, num mesmo escritor, o ensaísta, o tradutor e o poeta?

JPP - Nenhum de nós é um só. Se o fôssemos, a vida seria insuportável. Já imaginou alguém que pudesse ser, por exemplo, funcionário público 24 horas por dia? Alguém que também também não fosse pai que brinca com os filhos, torcedor que sofre e se alegra pelo seu time, dançarino ou ouvinte de música? No meu caso, o poeta é o ponto de partida. Não acredito em poeta que não pense acerca do seu ofício: daí o ensaísta. Nem acredito em poeta que não aprenda com outros poetas, principalmente de outras línguas que não a sua própria: daí o tradutor.


Jornal de Poesia - Em “Acima de qualquer suspeita” o senhor jura que não matou a poesia. Quem a matou?

JPP - A poesia morre toda vez que se publica um mau poema. Por isso mesmo, só publico um poema quando acho que estou de mãos limpas. Se me enganei, perdão: mandem-me para a guilhotina.


Jornal de Poesia - Sobre os poetas que o influenciaram, alguns dos quais estão citados em “Acima de qualquer suspeita”. Fale um pouco de cada um.

JPP - Em vez de responder à sua pergunta, que exigiria todo um ensaio para ser respondida, prefiro remetê-lo à leitura dos poetas citados e, se ainda tiver interesse, da minha poesia. Aí você verá em que medida me influenciaram e em que medida lhes sublimei a influência numa dicção diferenciada.


Jornal de Poesia - Considera-se injustiçado, esquecido ou eclipsado por talentos duvidosos?

JPP - Não, pelo contrário. Acho que mereci mais atenção do que talvez merecesse.


Jornal de Poesia -. Em “Elegia holandesa” você utiliza a linguagem concreta. Que balanço faz desse movimento?

JPP - Não sou contabilista literário e não tenho a menor vocação para balanços -- a menos que seja balanço de samba. Tampouco creio que haja uma linguagem concreta. O que há são alguns procedimentos verbais e visuais desenvolvidos pela poesia concreta. Deles me vali, a uma certa altura, para levar avante o gosto pelo humor que sempre foi consubstancial à minha dicção de poeta.


Jornal de Poesia - Acredita em poesia sem linguagem poética?

JPP - Depende. Se por linguagem poética se entender linguagem enfeitada, repleta de metáforas que não sejam consubstanciais ao que o poeta intenta dizer, ela em nada adianta à poesia. Poesia, para mim, é a capacidade de iluminar a linguagem de todos os dias, aprofundando-lhe os significados, tornando-os de tal modo memoráveis que eles nunca mais consigam separar-se do modo por que foram ditos.


Jornal de Poesia - Como definiria poesia?

JPP - Não tenho nenhuma definição de bolso. Aliás, sou cético quanto às definições de bolso. Mas poderia dizer que, ao longo da minha experiência pessoal, deparei-me com três concepções de poesia. Os professores do curso primário me incutiram a idéia de que ela era um tipo especial de linguagem rimada, metrificada e enfeitada, para ser declamada, mão no peito, durante as festas escolares. Mas os versos metafísicos de Augusto dos Anjos, com que travei contacto aos l5 ou 16 anos, abalaram essa idéia primeva ao convencer-me, pela força do exemplo, de que poesia é a linguagem de descoberta do mundo e das perplexidades que ele podia suscitar em nós. Tanto o mundo fora como o mundo dentro de nós. Um pouco mais tarde, com os seus poemas desafetados que estilizavam a linguagem coloquial, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade me ensinaram que poesia é a redescoberta da novidade perene da vida nas pequenas/grandes coisas do dia a dia. Desde então, em maior ou menor grau, venho tentando ser fiel, em quanto escrevo, a essas duas últimas concepções. Meu ideal poético é a desafetação, a concisão e a intensidade postas todas a serviço da minha própria visão de mundo.


Jornal de Poesia - “Lisboa: aventuras” é um poema-piada. Em que condições o escreveu?

JPP - Certa vertente da geração de 45 via com maus olhos o poema-piada. Pessoalmente, acho que o humor é um dos ingredientes de base do sentimento poético. Esse poema eu o escrevi por ocasião de minha primeira viagem a Portugal, quando me diverti com as discrepâncias vocabulares entre o falar brasileiro e o lusitano. Explorei caricaturalmente essas discrepâncias sob a égide alusiva da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que exprimiu emblematicamente, para além das similitudes de origem, a diferencialidade de base entre o sentir brasileiro e o português.


Jornal de Poesia - Seu poema “O engenheiro” é um exemplo de concisão. Como enriquecer o poema, cortando, lapidando, buscando a palavra exata?

JPP - Acho que é uma questão de temperamento. Sempre tive, da poesia, uma concepção epigramática. O multum in parvo, o muito no pouco. Quanto menos palavras se use para dizer algo, maiores as possibilidades de dizê-lo melhor. Nesse poema especificamente, através de umas poucas notações, tentei exprimir as minhas esperanças juvenis (escrevi-o aos 19 ou 20 anos) de um mundo construído com limpeza e solidariedade pela inteligência humana que fosse mais justo do que o mundo injusto em que eu próprio nascera.


Jornal de Poesia - Em “O poeta e seu mestre”, o poeta veste-se de mestre? É preciso ser um pouco outro poeta para ser um grande poeta também?

JPP - Ao contrário do que você diz, nesse poema eu sou apenas o aprendiz da humilde grandeza humana de Carlitos. “O poeta e seu mestre” apareceu no meu livro de estréia cujo título era O aluno. Por si só, tal título responde à sua segunda pergunta. O discípulo precisa de um mestre para deixar de ser discípulo e adquirir voz própria. A esse voz própria sempre aspirei. Mas nunca ambicionei ser um grande poeta. Ser poeta tout court já é para mim dignidade bastante.


Jornal de Poesia - “Canção do afogado” é belíssima. Não acha que a poesia está viva e muito?

JPP - Esse poema é também um poema de juventude, com evidente influência bandeiriana, desde logo declarada no vocativo “Maninha” que se repete ao longo dele. Concordo em que a poesia está sempre viva, mesmo porque é uma forma essencial de experiência humana, que só poderia desaparecer com a extinção da nossa espécie. Quanto a estar “muito viva”, não sei dizer. Contento-me em saber que não morreu.


Jornal de Poesia - No soneto “O aluno”, o senhor mostra mestria. Qual a semelhança entre o poeta e um aluno?

JPP - Respondi implicitamente a essa pergunta mais acima, no item 4. Pelos poemas que você cita, vejo que, através da Internet, teve acesso apenas a poemas do meu livro de estréia, O aluno, publicado em 1947, e a A poesia está morta mais juro que não fui eu, de 1988. Mas depois de O aluno, e antes e depois de A poesia está morta mas juro que não fui eu, publiquei várias outras coletâneas de poemas. Nesse sentido, atrevo-me a recomendar-lhe ler os meus livros de poemas, em vez de procurá-los apenas na Internet. Não escrevo para internautas; escrevo para leitores de livros. Se me permite uma sugestão, por que não lê Prosas seguidas de Odes mínimas, publicado pela Cia. das Letras e ainda hoje encontrável nas boas livrarias? Através dele, você e outros freqüentadores do endereço eletrônico do seu “Jornal de Poesia” poderão ter uma idéia mais cabal da natureza e dos propósitos da minha atividade poética.

Fontes: wikipédia e Jornal de Poeisa.


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TERMO DE RESPONSABILIDADE
em 31/01/2012 19:53:32 (2916 leituras)
José Paulo Paes


mais nada
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício

já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita
coração

silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!





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