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PONTO A PONTO, UM CONTO

Publicado por Luso-Poemas em 10-Mar-2025 19:40 (1274 leituras)

PONTO A PONTO, UM CONTO

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No âmbito das comemorações do 19º aniversário do LP, damos continuidade às atividades com uma nova experiência coletiva, onde cada fio da narrativa será tecido a muitas mãos. De 7 de março a 1 de junho, convidamos todos a embarcar na construção de um conto compartilhado, um mosaico de palavras que se entrelaçam no ritmo de cada participante.
A proposta é simples, mas o resultado promete surpreender: cada autor acrescenta um trecho à história, respeitando o fluxo da narrativa e a continuidade do que já foi escrito. Para que o fio condutor se mantenha vivo, é preciso aguardar que outro luso-poeta participe antes de voltar a contribuir.
Para participar, clique em 'Comentar' e adicione o seu “ponto” à trama. Assim, pouco a pouco, ponto a ponto, um conto nascerá, moldado pela diversidade de vozes, estilos e imaginação que fazem deste espaço um verdadeiro lar para as palavras.
Esperamos por vocês nessa jornada literária, onde cada linha escrita é um convite para a próxima, e a criatividade se torna um elo invisível entre quem escreve e quem lê.


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Enviado por Tópico
Luso-Poemas
Publicado: 10/03/2025 19:50  Atualizado: 10/03/2025 23:37
Administrador
Usuário desde: 25/01/2006
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 PONTO A PONTO, UM CONTO - cap. I
Capítulo I

Quem passava pela ruela estreita de calçamento de pedras pé de moleque, comuns nas cidadezinhas interioranas brasileiras, reparava numa única janela da casa estilo colonial de cinco pequenos cômodos, entreaberta, quase uma fresta, abertura regulada apenas por uma correntezinha presa às duas bandas de madeira carcomida pelo tempo. Ainda assim, se conseguia captar um mínimo de ar, claridade, e a gente; a intimidade daquele eremita citadino contemporâneo. Cotovelos sobre a mesa, uma das mãos apoiando a cabeça e a outra como se também pensativa, burilando a pena sobre o papel almaço contendo já algumas anotações, versos ou pensamentos soltos para talvez se juntar as tantas outras amassadas em bolotas quais jaziam espalhadas pelo chão, pois foram jogadas a esmo em direção à lixeirinha de canto da escrivaninha e errado dado o estágio adiantado duma miopia já que ele recusava o uso dos óculos. Avistava-se, nas duas parede laterais, prateleiras apinhadas até o alto teto ripado com livros e rolete de papéis de mau aspeto, sujos ou amarelados, bolorentos, empoeirados e com sinais visíveis de terem sido recentemente atacados por traças e cupins, contrastando com a saleta de leitura lúgubre que também servia de ambiente para as pequenas refeições quando assim as fizesse, um ser desleixado contumaz. Por mais que a espessa barba cobrisse aquele rosto, apesar de sisudo e afinalado, podia-se notar que sua idade, aparentemente, não o fazia um homem demasiadamente longevo; mãos firmes e sem rugas profundas o que firmava quem tivesse a oportunidade de observá-lo mais aproximado.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 12/03/2025 13:01  Atualizado: 12/03/2025 14:48
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO - Cap. III
Capítulo III

Num assomo de falsa coragem, o rapazola vestido de olhar amendoado, roupas gastas e leves, abeirou o queixo liso do parapeito patinado. Era magrito e moreno. O perfume a bolor agrediu-o e, no meio dum espirro, riu de nervoso para dentro. O quase breu encheu-lhe os olhos.
Espiou a rua à espera duma repreensão oriunda de qualquer lado, mas, não surgindo manteve-se fiel ao coração e viu pela primeira vez o ancião lá dentro. O medo quase o conquistou. Quase fugiu. Mas aquela figura barbuda e de ar cansado, lá lhe acordou o outro lado da coragem – a curiosidade.
Como os gatos que morrem à sua mercê, Maio (assim se chamava o garoto) cruzou o olhar com o mais vivido, que decidira olhar para a janela para determinar a hora do dia.

(Rogério Beça)



Enviado por Tópico
ZeSilveiraDoBrasil
Publicado: 12/03/2025 19:25  Atualizado: 12/03/2025 20:21
Administrador
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO - Cap.VI
Capítulo VI

Maio não havia se intimidado, atitude normal de um moleque de rua, retornara esgueirando-se pela parede da casa até chegar novamente a mesma janela e, nas pontas dos pés mas agora em cima da caixeta de engraxate para ter mais altura e melhor visibilidade, a despeito do que seu pai tentará amendrontá-lo, debruçou-se no parapeito, e se pôs a revirar o ambiente, até onde dava, com seus olhos miúdos e espertos, foi quando o eremita contemporâneo afastara com os pés alguns compêndios; fora professor por várias décadas, e eram estes talvez livros desprezados dos últimos resumos de suas teorias. Maio, atento, viu ele levantar-se com certa dificuldade, caminhar para o cômodo ao lado, o quarto. Demorou alguns minutos e quando retornou arrastando os chinelos pelos ladrilhos d'água da sala, trazia na mão um livro cuja capa mostrava-se bastante danificada, despencada, quase desmontando-se, mas, mostrava claramente que se tratava a de um menino ajoelhado num astro celeste. Era o livro do Pequeno príncipe. Absorto por tantas descoberta apenas através daquela fresta da janela não percebeu a aproximação do ancião que frente a frente e, antes que balbuciasse qualquer palavra lhe repetiu a pergunta que ansiava:
- Que queres daqui?
- Sabes ler?

(ZéSilveira)

Enviado por Tópico
Alpha
Publicado: 13/03/2025 13:54  Atualizado: 13/03/2025 14:01
Membro de honra
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO
Capitulo VII

Perante tal interrogação o rapaz ficou embasbacado pois a sua escola era apenas a que a rua lhe tinha ensinado. Passou as mãos várias vezes pelo cabelo que já há muito tempo não sabia o que era o toque das tesouras do barbeiro. Deixou o local sem dar resposta ao ancião e foi procurar o seu “compincha “das traquinices, de seu nome Martim, mais conhecido por (meco). Depois do amigo estar a par da situação engendraram um plano para tentar desvendar tudo o que continha e se passava na "casa" do eremita e o modo de viver do mesmo. Esperaram pela noite para levar a cabo os seus intentos. A noite estava escura e muito fria mas a curiosidade que os movia não os fez vacilar.

(Alpha)

Enviado por Tópico
Beatrix
Publicado: 13/03/2025 15:31  Atualizado: 13/03/2025 15:52
Colaborador
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO- Cap.VIII
Capítulo VIII
.
Maio e Meco dirigiram-se à mesma janela. Havia uma réstia de luz que emanava da casa. Mais uma sombra, talvez. Tinham levado a caixa, puseram-se em cima dela, e olharam para dentro: o homem continuava na mesma posição onde Maio o encontrara horas antes.
Ficaram os dois pendurados na janela, a olhar o homem estranho que, até de noite, na penumbra, estava ali. Não saía dali? O que lhe levava tanto tempo a fazer?
Finalmente, e depois de largos minutos em silêncio, o homem ancião “eremita” levantou a cabeça e olhou os dois pequenos, pendurados à sua janela. Os pequenos assustaram-se e caíram da caixa.
O homem dirigiu-se à janela, espreitou e disse:
“Mas querem entrar ou vão ficar aí estendidos no chão? Estou farto que me ocupem a janela e me estraguem a luz.”

(Beatrix)

Enviado por Tópico
Aline Lima
Publicado: 16/03/2025 04:49  Atualizado: 16/03/2025 04:49
Administrador
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO Capitulo IX
Capítulo IX

Maio e Meco aceitaram o convite em silêncio, como se temessem que o encanto se quebrasse ou que a coragem sumisse caso falassem.
A porta rangeu suavemente ao ser aberta, como se a casa respirasse depois de anos. Os dois cruzaram a soleira com os pés hesitantes e os olhos arregalados. O ar estava impregnado com o cheiro de papel antigo, misturado ao som do assoalho protestando sob os chinelos do homem.
Dentro da sala, os móveis pareciam esquecidos há décadas, mas a escrivaninha estava viva. Os meninos ficaram impressionados com a estante repleta de livros, que ocupava boa parte do ambiente.
O homem caminhou até a escrivaninha, puxou uma cadeira e apontou com a cabeça para os bancos baixos do outro lado. Sentou-se e ajeitou sobre a mesa um exemplar de O Pequeno Príncipe, ao lado de uma xícara solitária.
— Meu nome é Lúcio. Desfaçam essas caras de assustados e sentem-se.
Maio sentia o coração disparar. Meco, desconfiado, segurou o braço do amigo e cochichou:
— Você não acha que ele tem algo... estranho?
Mas a atenção de Maio estava no livro aberto sobre a escrivaninha. As letras e ilustrações pareciam girar devagar, como se o convidassem a tocar nas páginas.
O homem acompanhou o olhar do menino e disse, quase num sussurro:
— Este livro... não é bem o que parece. Acha que os planetas dele acabam onde termina o papel?
Os garotos se entreolharam, confusos.
— Hoje vocês têm um privilégio, algo que poucos terão a chance de ver. Mas, como tudo na vida, nada vem sem um preço. Cada escolha tem seu custo.
Ele se levantou e puxou da estante um envelope envelhecido, lacrado com cera vermelha. O selo trazia um símbolo estranho, como uma espiral cruzada por um traço inclinado, quase como uma bússola que perdeu o norte.
Nos olhos do homem, havia algo que os garotos não conseguiam nomear. Era um olhar estático, meio perdido, mas com algo mais, talvez um segredo que só seria compreendido muito tempo depois.
— Só abram se estiverem prontos.

(Aline Lima).


Enviado por Tópico
idália
Publicado: 18/03/2025 16:03  Atualizado: 18/03/2025 20:20
Membro de honra
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO - Cap. XI
Capítulo XI

Prolongavam os ecos dos acontecimentos que marcariam a sua trajetória. Porque havia o instante. O relógio tinha marcado o instante.
Naquele dia, há quase quatro décadas, ele partira sem olhar para trás, abandonando um lar cheio de despedidas não ditas. A luz intensa daquele feriado, o calor sufocante e o som das sapatilhas gastas sobre a calçada ainda eram tão vívidos quanto o perfume que, por algum tempo, se manteve no ambiente.
Mas o que procurava Lúcio naquele dia? Ele nunca contou a ninguém, mas aquele momento fora a sua escolha mais ousada e assustadora. Ele fora levado até à casa de um homem estranho, tal como Maio e Meco tinham sido levados até à sua própria casa. Esse homem, um guardião de segredos, apresentou-lhe o mesmo livro e o mesmo mapa. Naquela época, Lúcio era apenas um jovem sonhador, determinado a escapar de uma vida comum e a descobrir aquilo que um mundo desconhecido teria para oferecer.
Ao abrir o mapa, Lúcio embarcou numa jornada que mudou tudo. Explorou mundos que refletiam os seus medos e as suas ambições. Contudo, nem todas as escolhas que fez foram sábias. Houve momentos em que ele cedeu à curiosidade sem pensar nas consequências, o que trouxe perdas e cicatrizes que ele carregava até hoje. Nunca conseguiu voltar ao que deixara para trás, e o retrato que um dia fora pousado sobre o móvel desapareceu junto com o tempo, assim como as palavras que ele nunca pronunciou.
Agora, ao olhar Maio e Meco diante dele, Lúcio via neles uma nova oportunidade. Talvez eles pudessem fazer escolhas diferentes, aprender com os seus erros e encontrar aquilo que ele não tinha conseguido. O olhar estático, perdido, mas ao mesmo tempo carregado de um segredo profundo, refletia o peso da sua experiência e a esperança de redenção.


( idália )



Enviado por Tópico
Aline Lima
Publicado: 22/04/2025 01:51  Atualizado: 22/04/2025 01:51
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO
Capítulo XIV

Correram.
Saíram pela porta e não chegaram à rua, como seria de esperar, mas num campo que parecia não ter fim. Verde por todos os lados. Um silêncio quase vivo. Folhas altas roçavam os tornozelos como se soubessem quem passava.
Não disseram nada, mas sabiam, como por instinto, que deviam proteger o livro. Era quase um acordo orgânico entre os três. Não um segredo, mas um pacto.
O chão parecia ter pressa. E eles também.
Atravessaram o campo com o vento na cara e a infância nos pés. Havia beleza, sim, mas uma beleza que não distraía, apenas empurrava adiante.
Só que, quando pararam, ofegantes, com os olhos buscando algo novo, estavam de volta.
A mesma casa. O mesmo lugar.
Tavess, ali, à porta.
Como se o caminho fosse apenas um contorno em torno de si.
Lúcio em silêncio e atento, como se escutasse algo que os outros não podiam ouvir. Talvez o som de quando o passado bate palma.
— Sabe o que carrega? — perguntou Tavess, apontando para o livro.
Maio assentiu, mas Meco desviou o olhar.
Lúcio não respondeu. Apenas fez um gesto para Maio abrir o livro.
Estava em branco.
Seus olhos brilharam. Não era susto. Era confirmação.
Lúcio sorriu. Um riso gasto, mas inteiro.
— Agora vocês escrevem.
— O quê? — Maio parecia querer entender com pressa.
— O resto.
Tavess deu um passo à frente, mas Lúcio o conteve com o gesto simples de uma mão sobre a outra.
— Já não é mais contigo.
Tavess recuou. Mas algo se torceu nele — e não no corpo. No tempo. Um estalo, talvez. Um erro que se corrige por dentro.
E então, a casa gemeu.
O chão se abriu.
Sem grito, sem aviso.
O mundo o engoliu como um bocejo.
Maio segurou firme na mão de Lúcio.
Meco chorava sem som.
Mas nenhum deles correu.
Ficaram ali, a olhar o buraco.
O livro ainda em branco.
Mas agora, com espaço para tudo.

Aline Lima.

Enviado por Tópico
Benjamin Pó
Publicado: 12/05/2025 15:25  Atualizado: 12/05/2025 15:30
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Usuário desde: 02/10/2021
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Mensagens: 621
 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO
Cap. XV

Nessa noite, Maio sonhou com um campo dourado, feito de trigo e de vento. No céu, flutuava um planeta pequeno, tão leve que poderia desaparecer com um sopro. Encontrou-se lá, em frente de um rapaz de cabelo de fogo e olhos que sabiam escutar.
Mostrou-lhe um pôr do sol que se repetia com um gesto, falou-lhe de uma rosa frágil e exigente, contou-lhe como aprendera que o essencial é invisível aos olhos.
Maio pensava em Lúcio — no seu caderno de pensamentos inacabados, nos livros destruídos pelo bolor e pela traça, cheios de verdades. Compreendeu então que viver era aproximar-se dos silêncios que os outros lhe ofereciam.
Acordou com os olhos húmidos e uma flor de papel na mesinha de cabeceira.


Enviado por Tópico
KaiiqueNascimentto
Publicado: 29/05/2025 20:35  Atualizado: 29/05/2025 22:46
Da casa!
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Mensagens: 342
 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO Capítulo XVII
Capítulo XVII

A luz naquele campo parecia de outro tempo. Não era manhã nem entardecer — era uma suspensão. O céu, de um azul doce e intocado, parecia pairar mais próximo da pele do mundo, como se quisesse escutar também. Meco apertava os olhos, achando que conhecia aquela paisagem de algum sonho antigo. Lúcio andava com passos demorados, farejando o ar como quem caminha dentro de uma lembrança. Maio ia no meio, e sentia que o campo falava — não com sons, mas com respiros, como se tudo estivesse vivo por dentro.

Carregavam o livro ainda em branco, mas cada passo parecia preenche-lo com alguma coisa invisível.

— Por onde vamos? — perguntou Meco, mais ao vento do que aos outros.

Mas ninguém respondeu.

Foi então que, ao pé de uma árvore que não estava ali antes — uma árvore de folhas quase brancas, pulsantes —, alguém apareceu. Primeiro foi o cheiro: algo entre folhas queimadas e chuva no barro. Depois, o vulto — parado, imóvel como uma escultura, mas vivo como um sopro quente.

O homem tinha cabelos que pareciam fogo — não por serem apenas vermelhos, mas porque brilhavam em movimento, como se acesos por dentro. Os olhos eram calmos. Profundos. Como se ali dentro morasse o tempo todo do mundo. Vestia roupas simples, um manto desbotado que parecia feito de tecido e brisa.

— Não se assustem — disse ele, com a voz que parecia já conhecida, embora nenhum deles o tivesse ouvido antes.

Meco deu um passo atrás, mas Maio ficou.

Lúcio, com olhos semicerrados, buscava algo em si mesmo, talvez tentando lembrar se já o tinha visto em algum livro esquecido ou ouvido em alguma das muitas noites em que a casa parecia murmurar histórias.

— Quem é você? — perguntou Lúcio.

O homem sorriu. Um sorriso sereno, inteiro.

— Podem me chamar de Arien.

Maio piscou.

— Arien? Como no mito?

O homem assentiu.

— Alguns me chamaram assim. Muitos esqueceram. Mas o nome não importa tanto quanto o que carregam. — E então, apontou para o livro.

O livro, nas mãos de Maio, pesou mais de repente. Como se soubesse que havia sido notado.

— Esse livro... — continuou Arien — não é apenas papel. Ele é ligação. É caminho. É herança. Ele não escreve o que se quer, mas o que se sente com verdade. Ele responde à vida que vive dentro de quem o carrega.

— Mas ele está vazio — murmurou Meco.

— Está cheio do que ainda não se disse — respondeu Arien. — E é por isso que vieram até aqui.

Houve um silêncio. O vento se movimentava como se respeitasse aquele instante.

— Vocês três foram escolhidos não por acaso — disse Arien, olhando um a um. — Há algo maior se formando. E esse livro é a centelha. Mas não posso obrigá-los a nada. Posso apenas mostrar o que se esconde nas frestas.

Lúcio assentiu, como quem compreendia mais do que poderia dizer em palavras.

Maio sentia algo difícil de nomear. Como se o tempo ao lado de Arien fosse mais lento e mais rápido ao mesmo tempo. E, em algum canto da memória, parecia ter ouvido aquele nome — Arien — sussurrado por entre páginas úmidas de um caderno velho que encontrara um dia na casa de Lúcio, entre livros que cheiravam a mofo e segredo.

— O que quer de nós? — perguntou Maio.

— Apenas que leiam com o corpo. Que escrevam com o coração. E que, acima de tudo, estejam atentos. Porque...

Mas antes que Arien completasse, o céu tremeu.

Não com trovões. Não com nuvens.

Foi como um silêncio que se rompe.

E a figura de Tavess surgiu no alto do campo, vindo sem pressa, como se já soubesse o caminho. Não havia passos no seu andar — era como se deslizasse. Usava um sobretudo escuro, e seu olhar era um convite disfarçado.

O campo inteiro pareceu encolher-se, como se sentisse a chegada de algo que não queria tocar.

Lúcio estalou a língua, inquieto.

— Ele — murmurou. — Sempre aparece quando algo começa.

Tavess não olhou para Meco. Nem para Lúcio.

Seus olhos foram direto para Maio.

E Maio, por um instante, não desviou.

Tavess parou a poucos passos de Maio.

Seus olhos eram de um cinza antigo, como cinza de lenha que ardeu por dias em silêncio. A boca, fina, trazia o rastro de um sorriso que parecia não se decidir entre cinismo e ternura. O sobretudo ondulava com o vento, como se tivesse vida própria. E, mesmo sem se mover muito, sua presença tomava espaço demais.

— Maio — disse, como quem o conhecia desde menino. — Você sente, não sente?

Maio hesitou.

— Sentir... o quê?

— Que há algo errado. Que há mais. Que tudo o que disseram sobre o bem e o mal é apenas um arranjo. Um enredo velho que não serve mais.

Meco avançou um passo.

— Não o escute, Maio.

Tavess virou o rosto lentamente para ele. Seu olhar o atravessou, mas não parou. Depois voltou para Maio, como se o resto fosse paisagem.

— Você sempre soube, Maio. Desde pequeno. Quando olhava o teto à noite e não conseguia dormir. Quando via beleza no que os outros chamavam de feio. Quando sentia o peso do mundo sem nunca ter segurado nada. Você é feito de perguntas, e eu sou a única resposta que não finge ser fácil.

Maio olhava para ele como se olhasse para si mesmo, num espelho antigo e torto.

— E esse livro? — perguntou, tentando manter a firmeza.

Tavess riu. Um riso curto e amargo.

— Esse livro é a chave para abrir ou para fechar. Depende de quem o lê. Depende de quem escreve. Eu não vim tomá-lo. Vim te mostrar o que ninguém vai ousar contar.

Maio sentia o coração bater fora do compasso. Algo no fundo de si queria recuar, mas outra parte — uma mais antiga, mais ferida — pedia para ouvir. Ele lembrava de noites em que se sentia só, mesmo entre amigos. Lembrava da infância, da escola, dos dias cinzas que ninguém parecia notar.

E então Tavess disse:

— Quer ver alguém que sempre te entendeu?

Maio não respondeu. Mas Tavess não esperava. Apenas estendeu a mão, e o vento mudou de direção.

Das brumas do campo — que antes não estavam lá — surgiu uma silhueta.

Cabelos escuros, presos num coque desfeito. Vestia uma blusa de colégio, antiga, desbotada. Os olhos eram um poço cheio de tardes que nunca voltaram. Ela caminhou como se soubesse exatamente onde estava. Como se tivesse estado ali desde sempre.

— Raquel — sussurrou Maio.

O nome caiu da boca dele como um segredo que nunca quis sair.

Ela sorriu. E foi um sorriso que doeu.

— Maio — disse ela, e era como se dissesse “lar”.

Meco arregalou os olhos. Lúcio fechou os punhos.

— Não pode ser — murmurou o velho.

Maio se aproximou. Cada passo era um rompimento. Meco tentou avançar, mas Arien colocou a mão em seu ombro.

— Ele precisa escolher — disse o homem de cabelos de fogo, com ternura e dor na voz. — Não se pode salvar quem não quer voltar.

— Mas ele é nosso amigo! — gritou Meco.

— E continuará sendo — respondeu Arien. — Mas há caminhos que se percorrem sozinho.

Raquel tocou a mão de Maio, e o campo pareceu murchar em volta deles. O livro, em suas mãos, tremia. Não por medo — mas por transformação.

Tavess observava, sereno, como um maestro invisível.

— Por que... você está aqui? — perguntou Maio a Raquel, com olhos úmidos.

Ela não respondeu logo. Apenas o olhou com uma intensidade que feria.

— Porque eu nunca fui embora de verdade — disse. — Porque eu também cansei de fingir luz onde só havia sombra. E porque ele... — ela olhou para Tavess — me mostrou que você ainda podia ser inteiro. Mesmo se isso significasse ser outro.

Maio respirou fundo. Seu peito era uma batalha.

“E se eles estiverem certos?”, pensava.
“E se esse ‘bem’ que Arien fala for só outra forma de controle?”
“E se a liberdade estiver aqui, onde ninguém manda, onde a dor também tem casa?”

Ele virou-se lentamente para Meco e Lúcio.

— Me desculpem... — disse. — Mas eu preciso saber o que é isso.

— Maio... — sussurrou Meco, sentindo o vazio já crescer entre eles.

— Talvez eu volte — disse ele. — Talvez não. Mas se eu não for agora, vou passar o resto da vida me perguntando.

A mão de Raquel encontrou a dele. E naquele instante, o Livro nas mãos de Maio brilhou em silêncio... e se partiu. Como se soubesse. Como se já estivesse à espera da decisão.

Um pedaço ficou com Maio.

Outro, com Meco e Lúcio.

Arien fechou os olhos, como se já soubesse que isso aconteceria.

— Agora ele está dividido. E cada parte será escrita conforme o caminho de quem o carrega.

Lúcio se adiantou:

— Mas... isso não deveria acontecer. O livro foi feito para ser um!

— Foi feito para os três — disse Arien. — Mas agora, é reflexo. Cada parte sentirá a outra. E se escreverem capítulos opostos, o mundo responderá.

E assim Maio, tomou a mão de Raquel. Tavess virou-se, satisfeito. Não disse nada. Não precisava. Já havia vencido, por enquanto.

Maio o seguiu em silêncio, com Raquel ao lado.
E o campo, antes vivo, pareceu apagar suas cores.

Lúcio se abaixou, pegou um punhado de terra nas mãos e deixou escorrer entre os dedos.

— Ele está indo... para dentro da própria noite — murmurou.

Arien permaneceu quieto por um tempo. Depois, finalmente falou:

— Ainda há caminhos. Ainda há luz onde parece não haver. Mas agora, é com vocês dois. A parte mais difícil começa agora.

Meco assentiu, sentindo que algo mudara para sempre. Mas também que algo — talvez maior — apenas começava a nascer.

[A Divisão dos Caminhos]

"E foi dito que o Livro se escreveria por três corações, não por mãos. Que cada um seria guardião de uma parte invisível, e juntos dariam forma à escritura maior. Mas se um dos três partisse, o Livro se rasgaria em dois ou três— não por vaidade, mas por equilíbrio. E a parte dividida passaria a ter voz própria, ecoando desejos ocultos, sendo reflexo da alma que o carrega.

Esses dois livros não são espelhos, nem rivais. São irmãos. Comunicam-se sem palavras, dançam sobre o mesmo fio de tempo, cada qual tentando puxar o destino para um lado. Quando unidos, abrem a última porta. Quando separados, semeiam os caminhos."

[A Palavra Dividida]

A noite caiu cedo demais.

Meco olhava para o céu como se esperasse alguma resposta. Mas as estrelas estavam mudas. O campo, antes vivo, agora parecia um eco distante.

Lúcio permanecia em silêncio, com o rosto voltado para o sul. Seus olhos, embora marcados pelo tempo, viam mais do que os jovens ao seu redor. Arien, à margem, passava os dedos pelas páginas abertas do Livro — mas agora, as páginas pareciam menos densas, como se faltasse algo nelas.

Meco notou.

— Está... mais fino?

Arien assentiu lentamente.

— O Livro... foi feito para três. Mas ele sente quando os caminhos se partem. Maio decidiu seguir Tavess. E no instante em que ele deu aquele passo... o Livro se quebrou.

Lúcio arregalou os olhos.

— Quebrou?

— Em dois. Como se partisse o coração de uma mesma história. A metade que permaneceu conosco é feita de memória, esperança e vínculo. A que foi com Tavess... é desejo, ruptura e reescrita.
Cada parte se tornou um espelho da outra. Elas se comunicam, mesmo distantes. Mas... incompletas, nenhuma pode ser ativada totalmente. Tavess sabe disso. E quer reunir ambas — por razões que Maio ainda não compreende.

Arien fechou os olhos, escutando o silêncio entre as árvores.

— Maio ainda é Maio — disse. — Mas cada passo que dá o leva mais fundo. E onde Tavess o escondeu... poucos retornaram com a alma intacta.

Lúcio se virou.

— Você sabe onde ele está?

— Não com os olhos — respondeu Arien. — Mas o Livro sente seus movimentos. Ele escreve e reescreve enquanto respira. E agora, Tavess está moldando as páginas para aprisionar Maio num enredo que ele mesmo não reconhecerá como prisão.

Ele estendeu a metade do livro para os dois.

— Sigam a palavra que ainda não foi dita.

E então, como quem rasga véus com gestos, tocou a capa com a palma aberta. Uma brisa soprou, e o ar pareceu se curvar à sua volta. O espaço rangeu. O campo se dobrou.

E os três desapareceram ali.

[Enquanto isso...]

Maio sentava-se num quarto sem janelas. As paredes eram negras, mas não de tinta — eram feitas de algo que absorvia a luz. O teto pulsava devagar, como se respirasse. E havia livros... centenas de livros sem título, empilhados em formas que desafiavam a lógica.

Mas um, em especial, flutuava diante dele.

O Livro.

A outra metade.

Raquel dormia num colchão antigo, com os cabelos espalhados sobre o peito nu. A respiração era leve, serena, como se o mundo ali fora já não lhe dissesse respeito.

Maio estava acordado. O corpo, imóvel. Mas a mente... um mar revolto.

— Isso tudo... é real? — murmurou para si mesmo.

E então Tavess apareceu.

Não pela porta — não havia porta. Ele surgiu das sombras, como se fosse a própria parede se virando ao avesso.

— O que é real, Maio?

Maio se encolheu.

— Esse lugar... Raquel... o livro... você.

Tavess se aproximou e sentou-se à frente dele, cruzando as pernas como um velho amigo que viera consolar.

— A verdade dói, Maio. Mas a mentira vicia.

Do bolso de seu sobretudo, tirou uma pequena pena dourada. E com ela, tocou a testa de Maio.

— Veja.

E Maio viu.

[FLASHS]

Raquel correndo na chuva, no colégio. Olhava para trás, procurava alguém. Era ele.

Uma sala escura. A mãe de Maio rasgava uma carta enquanto chorava. Tavess observava da esquina.

Um homem de terno apertando a mão de outro. O segundo homem segurava um frasco. Um contrato era assinado. Maio dormia numa cama de hospital ao fundo.

O Livro, fechado, mas com páginas que sangravam por dentro.

Maio gritou.

— Isso... isso não pode ser verdade!

Tavess apenas sorriu.

— O mundo mentiu para você. Desde o berço. A dor que sentiu? Fabricada. Os amores que perdeu? Calculados. Sua vida... nunca foi sua.

Maio caiu de joelhos.

— E por quê?

— Porque você carrega algo que não deveria existir: o poder de escrever. Mas não como escritor comum... você reescreve as raízes. O tempo. Os encontros. Os destinos.

Tavess se inclinou e sussurrou:

— Esse livro... é seu. Só seu. Ele se dividiu por causa de você, Maio. E apenas você pode reuni-lo.

— Mas Arien...

Tavess franziu os lábios.

— Arien quer preservar a velha ordem. A fantasia da luz. Mas eu... eu quero queimar os scripts. Reescrever com dor e verdade. Você merece saber. Você merece... o controle.

[Na trilha da luz quebrada...]

Lúcio, Meco e Arien caminhavam por um bosque que se contorcia. As árvores se afastavam quando Arien tocava o chão. O ar cheirava a ferro e flor morta. Meco tremia.

— Eu não gosto disso.

— Nem eu — disse Lúcio. — Mas gosto menos de perdê-lo.

Arien estendeu a mão e falou baixo:

— Estamos perto. Mas há barreiras... palavras malditas escritas por Tavess em véus que se movem. Eu não posso atravessar todos. Vocês terão que continuar por mim.

— E você?

Arien fechou os olhos.

— Eu estarei onde a esperança ainda puder respirar.

[Enquanto isso...]

Maio estava só novamente. Raquel desaparecera como fumaça. No lugar dela, um espelho — e nele, um Maio que sorria... mas não como ele. Um Maio sombrio, que escrevia no livro com tinta escura que escorria como óleo.

Ele estendeu a mão para o espelho.

Tavess apareceu atrás, encostando levemente a mão em seu ombro.

— Toque. Torne real.

E Maio tocou.

O espelho estilhaçou-se em silêncio. E a tinta negra escorreu para dentro do quarto. O livro, em suas mãos, brilhou.

Tavess abriu os braços. Seu corpo se fragmentava em luz e trevas, como se não fosse feito de um só elemento.

— Bem-vindo ao começo, Maio. Escreva. Apague. Destrua se for preciso. A luz mente... mas a escuridão revela.

[No bosque...]

Lúcio para de andar. Meco também. Uma aura vermelha explode diante deles. E no centro dela, aparece um símbolo: um olho de fogo.

Arien murmura:

— Ele tocou o espelho...
— Ele abriu a primeira página do fim.

Meco engole seco.

— Isso é ruim?

Arien olha para ele com uma dor silenciosa.

— Não. É... apenas o início do que não tem fim.

...

Em algum lugar profundo do escuro, o livro nas mãos de Maio brilha em resposta ao outro livro que pulsa com Arien. As duas metades tremem, como se um sussurro percorresse o espaço entre mundos.

Arien cai de joelhos.

Meco corre até ele.

— O que foi isso?

Arien ergue os olhos, marejados.

— Ele... começou a escrever.

Lúcio franze os olhos.

— Maio?

Arien apenas balança a cabeça. O silêncio ao redor se rompe com um som sutil, como páginas virando sozinhas em todas as direções.

E então, uma única frase surge gravada no ar, escrita por uma mão invisível, flutuando entre mundos:

"Nem toda luz é salvação. Nem toda sombra é perdição."

O vento para.

Tudo respira.

E os livros... esperam.

(Kaique Nascimento)

Enviado por Tópico
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Publicado: 31/05/2025 14:30  Atualizado: 31/05/2025 14:30
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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO
CAPÍTULO FINAL

E estas imagens, difusas, misteriosas e enigmáticas, de tantos personagens seriam uma só persona?

Quatro décadas!

Nos seus dez, onze anos de existência, fulgurantes saberes... Enlouquecidos nas contradições e imperfeições humanas, demasiado humanas, demasiado livro por escrever, demasiada vida por viver.

É quase loucura ver Maio, Meco, tantos nomes, até Lúcio – projetos de uma mesma linha de montagem daquela simples casa de tijolos, baralhando mundos. E o sábio eremita, sem nome, a beber o que lhe apetece na borda de um livro em branco.

Mas talvez, entre os traços dispersos das máscaras, houvesse um fio. Não uma lógica, não um destino – apenas um impulso antigo. Continuar, mesmo sem costura entre os dias, mesmo sem saber se eram três ou um, ou nenhum.

Era nesse impulso que Maio se confundia com Meco, que Lúcio se desfazia em silêncio. Talvez fosse sempre o mesmo gesto, repetido em corpos diferentes.

E o sábio eremita, sentado no chão da casa, percorria com os dedos as páginas em branco, como se nelas estivesse escrito o segredo de simplesmente seguir.

Talvez, no fim, tudo se trate disso: continuar, mesmo sem entender. Não por saber o rumo, mas por não desistir do passo.

Maio, Meco, Lúcio, nomes que se cruzam, variações de um mesmo fôlego.

A casa? Ainda ali, como uma dobra no tempo.

E o livro, ainda em branco, agora sabia esperar.

Não era silêncio o que havia ali, era espaço. Para o que não se diz. Para o que ainda pulsa, e ainda está por vir.

FIM

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 Re: PONTO A PONTO, UM CONTO - DE TODOS PARA TODOS
DE TODOS PARA TODOS

Findo o período desta atividade, a Administração está grata pela participação.

Sabíamos que a proposta não seria tarefa fácil, no entanto, alguns agarraram o seu espírito e eis que surgiu um conto que valeu a pena escrever e que vale a pena reler.

A vossa presença e a vossa criatividade fizeram do "Ponto a Ponto, um Conto" um verdadeiro trajeto sobre o poder da escrita.

A todos os participantes nesta iniciativa, a Administração irá ofertar 50 créditos para que possam trocá-los por presentes virtuais e enviá-los aos poetas que mais estimam.

É um compromisso e uma honra proporcionar estes elos entre os nossos utilizadores.

Até novas dinâmicas.
Bem hajam!

A Administração do Luso-Poemas

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