Mensagens : 

AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM

 


Esta que ora escrevo não tem destinatário. Pois não é bom escrever assim, sem se preocupar com as palavras? Com sim e não, talvez, certamente, esses advérbios que se posicionam como cães de guarda das nossas ações? Pois são eles criaturas que demarcam os limites da nossa transigência ou da nossa vontade, são eles que transgridem ou não as leis do bom convívio, ou ainda informam a quem interessa se vamos finalmente tomar uma iniciativa.

Na mais completa liberdade eu posso dizer ao sr. Ninguém o que bem entender, pois ninguém é aquele que é a negação de uma existência, ninguém é o João que nasceu predestinado a ser arigó, pobre bicho, ao deus-dará da vida. Ninguém é a melhor pessoa deste mundo, o eleito de todas as horas de tédio e vagabundagem solitária... e é um amigo como (só ) ninguém pode ser. Não nos cobra nada, não espera nada de nossa coerência, postura, o escambau. Não nos recrimina, nem adula, nem faz cara de nojo diante de nossas idiossincrasias menos civilizadas.

Eu creio mesmo que a solidão é o paraíso a ser canonizado. Um altar para a ausência do outro! Uma vela enorme, de dois metros para queimar em honra daquele que podemos construir à imagem e semelhança de nada, um nada a serviço do nosso bem-estar, um nada para amar e para odiar.

Pra ti meu querido amigo Ninguém, escrevo estas palavras na mais completa tranquilidade, numa pasmaceira de fazer inveja a muita cidadezinha coió, abrindo a boca num enorme bocejo de preguiça e tranquilidade, pois sei que nenhuma oração adversativa se atravessará em nossa correspondência, nenhum anatipático ponto de interrogação surgirá inesperadamente querendo xeretar a minha paciência, nenhum adjetivo irritante e acusatório apontará o dedo na minha cara.

Pois estou tomando gosto pela novidade e logo minha vida se transformará no paraíso da não presença do outro. Servirei meu vinho no copo que bem quiser, nunca sentirei aquele olhar de reprovação por ter derramado o leite no tapete, jamais terei que encontrar a porta do banheiro fechada.

Uma total ausência humana deixará meu dia completamente limpo, livre e desimpedido. Por isso meu caro Ninguém, estou a lhe escrever agora, pois sei que serás a única pessoa que doravante adentrará ao sagrado recinto do meu eu. Uma não presença das mais simpáticas e desinteressadas. Você, Ninguém, não tem pés pra pisar meus calos, nem mãos pra estender em pedidos, nem olhos pra censurar, nem ouvidos pra não querer ouvir. Você é o mais perfeito destinatário para esta carta que estou a enviar. E o carteiro, ao tentar entregar esta correspondência, vai perceber que tem as mãos vazias e concluir que o envelope se perdeu. Afinal, isso não será nenhum fato extraordinário na vida dele. Mas pra mim vai fazer toda a diferença!


 
Autor
tania orsi vargas
 
Texto
Data
Leituras
1599
Favoritos
2
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
23 pontos
7
0
2
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/11/2008 14:20  Atualizado: 07/11/2008 14:20
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Uma carta esperada por alguém...para mim que também adoro o senhor NINGUÉM.
A liberdade desperta nesta carta a sede de bebe-la num trago só.
Parabéns

Bj
ConceiçãoB

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/11/2008 14:49  Atualizado: 07/11/2008 14:49
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
...rs.. É por essa e outras razões que sou sua leitora assíduo:

"Eu creio mesmo que a solidão é o paraíso a ser canonizado. Um altar para a ausência do outro! Uma vela enorme, de dois metros para queimar em honra daquele que podemos construir à imagem e semelhança de nada, um nada a serviço do nosso bem-estar, um nada para amar e para odiar."

Vc tem uma visão muito cristalizada sobre tudo e todos, Tânia. Neste patamar de vivência que vc se encontra, raríssimas pessoas se dão conta deste conhecimento individual e creio que este "Sr. Ninguém" mesmo não recebendo sua carta de fato, fez-lhe um grande favor: "Um bota fora!"

tua fã

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/11/2008 15:10  Atualizado: 07/11/2008 15:10
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Querida Tânia,
Carta a altura do tamanho do teu sentimento e personalidade de prenda marcada com a cor púrpura.
Espero que Alguém seja Ninguém suficiente para assimilar tudo o aqui escrito.
Carinho e bjins meus, Betha.

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 07/11/2008 15:19  Atualizado: 07/11/2008 15:19
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Fiquei absolutamente fascinada com a recriação no seu imaginário do tal Sr, Ninguém que terá por certo muito de alguém, que para si é Ninguém.
Este texto para além de uma beleza rara, acaba por nos obrigar a mergulhar no mais profundo do imaginário...
Adorei a sua carta, Tânia. Confesso que não conhecia o que escreve. Estarei mais atenta pois é fascinante a forma como se exprime.
Open in new window

Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 07/11/2008 15:51  Atualizado: 07/11/2008 15:51
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Adorei esta carta Xará! Beijos a ti!

Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 08/11/2008 09:37  Atualizado: 08/11/2008 09:37
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Bem... Acho que Ninguém abriu a sua carta com uma visível indiferença (ou uma invisível diferença?...)... Alguém, porém, a leu e a fez sua...muitos Alguéns, que também vêm a "sua" vela de dois metros arder a seu lado, em honra da solidão e do nada... (Ainda bem que ainda se escrevem cartas... mesmo que se enviem sem envelope e o carteiro as viole, por puro descuido...) Beijinhos, Tânia!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/11/2008 10:06  Atualizado: 08/11/2008 10:06
 Re: AO EXCELENTÍSSIMO SR. NINGUÉM
Tania Orsi Vargas.

A inteligência e o discernimento
buscam nas profundezas da alma
o não comum a todos.
As vezes, invejo a quem não pensa,
pois pouco enxerga das agruras da vida.
Não nego que serei seu leitor assíduo.

Meus parabéns

Ulysses