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Passo Fundo e a Guerra Contra o Paraguai

 
Passo Fundo e a Guerra Contra o Paraguai

Paulo Monteiro


Introdução

O envolvimento das cidades rio-grandenses na guerra contra o Paraguai foi muito maior do que se possa imaginar. O estudo da contribuição do Rio Grande do Sul para o esforço de guerra ainda está para ser feito. As biografias dos comandantes rio-grandenses (à época o termo gaúcho não era aplicado no sentido gentílico de hoje), via de regra, assumem caráter laudatório ou de “biografia oficial”, escrita muitas vezes por descendentes dos “heróis”. Arquivos pessoais são guardados como relíquias familiares. Por uma espécie de direito hereditário, apenas aqueles que tenham sangue desses “semideuses” podem manusear os arquivos pessoais e escrever sobre os “caudilhos”.
Verdadeiro “povo em armas”, os rio-grandenses do sul viram nos paraguaios um elemento novo, diferente dos que estavam acostumados a combater. Não eram mais os caudilhos pampianos, com suas cargas de lança seca e seus facões caroneiros. Estavam diante de um exército moderno.
Do ponto de vista psicológico – e a guerra psicológica é uma realidade ancestral – explicam-se os relatos relativos à rápida mobilização dos corpos e espíritos, assim que a notícia da invasão chegou às plagas serranas. A informação de que a força local, inicialmente de 409 combatentes, mobilizada contra o Uruguai, onde participara do célebre cerco de Paysandu, já enfrentava os invasores defendendo o território brasileiro causou comoção geral.
Assim, se explica o esforço de guerra.
O temor de que os paraguaios repetissem, amplificada, as experiências de invasões anteriores, também contribuiu para a energia na ação. Lembrava-se, mais recentemente, o caso de 1827, quando o major Manoel da Silva Pereira do Lago, temendo a invasão de Rivera, refugiou-se onde hoje se situa a cidade de Passo Fundo, ainda encontrava testemunhas vivas. E o exército de Solano Lopes não era a horda comandada pelo caudilho uruguaio...
Os documentos do período não estão mais acessíveis aos pesquisadores contemporâneos. É muito provável que acabaram incinerados por antigas administrações municipais como ocorreu com tantas outras fontes primárias ou que algum pesquisador os tenha guardado e sejam conservados como relíquias familiares. De muitos, talvez ainda possam existir cópias em arquivos públicos e particulares. Somente um esforço coletivo pode revelar-nos esse paradeiro.
O que sabemos hoje se deve aos escritos de Francisco Antonino Xavier e Oliveira, justamente cognominado “pai da história passo-fundense”. Os relatos de Antonino documentam o custo que a contribuição local para a guerra contra o Paraguai representou para a população.
Este artigo é, quase na íntegra, parte de uma série de programas radiofônicos que produzi para a Rádio Planalto, de Passo Fundo, em 2007, dentro das comemorações do sesquicentenário de emancipação político-administrativa do município. Mesmo revisado para a publicação impressa, mantenho o tom coloquial típico dos textos rádio-jornalísticos. Como já afirmei várias vezes sou aquilo que, no velho e bom português, é definido como publicista. O desconhecimento do vernáculo levou alguns tradutores a criarem a expressão “intelectual público”. Escrevo para ser entendido.
O levantamento da participação das diversas comunidades sul-rio-grandenses naquela guerra contribuirá para entendermos o que ela, de fato, representou para a sociedade da época, enquanto um todo.
É o que faço neste estudo, onde consolido trabalhos de pesquisadores “antigos”, como José Hemetério Veloso da Silveira e Antonino Xavier e Oliveira, ou “atuais” como Delma Rosendo Gehn, há pouco falecida, e Ney Eduardo Possap d’Ávila, que seguem a esteira dos pioneiros. Quanto à biografia do general Antonio de Mascarenhas Camello Júnior, baseio-me, também nos textos recentes do pesquisador sorocabano Antonio Fiorotto Filho.
Passo Fundo, 22 de setembro de 2009.


No período anterior à guerra contra o Paraguai

A emancipação de Passo Fundo, no dia 28 de janeiro de 1857, marcou o reconhecimento oficial da povoação fundada por Manoel José das Neves, seus familiares e escravos, em fins de 1827. Praticamente arrasada durante a Revolução Farroupilha, entre 1835 e 1845, recuperou-se rapidamente. Segundo José Hemetério Velloso da Silveira, em seu livro “As Missões Orientais e seus Domínios”, já em 1855, Passo Fundo era mais desenvolvida do Cruz Alta, a sede do Município.
Os relatórios da Câmara de Vereadores registram que, no ano de 1861, começou o plantio de café no vale do Alto Uruguai, demonstrando novas possibilidades agrícolas para o município. A premiação, com medalha de prata, obtida pelo coronel Antônio Mascarenhas Camello Júnior, para a erva-mate produzida em Passo Fundo, constitui-se num outro registro importante..
No ano seguinte (1862), a Câmara de Vereadores dirigiu-se à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, sediada no Rio de Janeiro, solicitando sementes de fumo e algodão para dar início ao cultivo desses produtos no município. O aumento da produção de milho provocou uma grande queda no preço daquele cereal. Por outro lado, produtos como feijão e farinha ainda necessitavam ser importados, pois a maioria da população dedicava-se à produção de erva-mate, exportada, juntamente com gado vacum, cavalar e muar. Iniciava-se uma crise envolvendo os principais produtos de exportação do município, a erva-mate e as mulas. A crise se avolumaria nos anos seguintes, como se vê no relatório de 1863.
Para resolver essa crise, agravada pelas taxas cobradas nos portos de Cachoeira do Sul e Rio Pardo, Diogo José de Oliveira, delegado de polícia, coordenou uma expedição de índios, pagos de seu próprio bolso, para abrir uma picada pelo Rio das Antas, procurando um caminho direto com Porto Alegre.
O governo da Província negou, sistematicamente, apoio à iniciativa passo-fundense, diante da oposição movida pelas autoridades de Rio Pardo e Cachoeira do Sul, que se beneficiavam com o isolamento de Passo Fundo.
Esse isolamento atrasou em muito o desenvolvimento do município, o que somente seria rompido em 1898, com a chegada da estrada de ferro, provocando um surto de desenvolvimento.
Quando as lideranças municipais procuravam soluções para a crise econômica local, a segunda tragédia bélica se abateria sobre o município: a guerra contra o Paraguai. Passo Fundo já contribuía com o 9º Corpo Provisório da Guarda Nacional, formado de 409 soldados, sob o comando do tenente-coronel João de Freitas Noronha. Incorporado ao exército brasileiro sob as ordens do brigadeiro José Luiz Menna Barreto, participou do famoso cerco de Paysandu (31.12.1864/2.1.1865), entre dezembro daquele ano e janeiro de 1865.
Quem organizou esse corpo provisório foi o coronel Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, somente com jovens solteiros. O único homem casado que fez parte desse corpo era um sargento. O coronel Mascarenhas, sorocabano de nascimento, como teremos oportunidade de verificar, foi o único militar passo-fundense que chegou ao posto de general do Exército Brasileiro, pelo empenho nas guerras do Prata e na guerra contra o Paraguai.
A notícia da nova conflagração armada chegou junto com a informação de que os passo-fundenses do 9º Corpo Provisório da Guarda Nacional formam entre os primeiros brasileiros que resistiam à invasão do Rio Grande do Sul pelas tropas paraguaias. A população caiu em verdadeira comoção.
Enquanto mais voluntários se apresentavam, contribuindo para a expulsão dos invasores paraguaios e a libertação de Uruguaiana, Passo Fundo se transformava num verdadeiro acampamento militar. Era um povo em armas.
Os teares domésticos funcionavam dia e noite produzindo ponchos e palas para os voluntários da pátria; as ferrarias suspendiam a produção de foices, machados, enxadas e arados. As forjas derretiam o ferro e as bigornas mantinham a população acordada enquanto fabricavam lanças e facões caroneiros; marceneiros transformavam guamirim em cabos para lanças e facões; guasqueiros e seleiros fabricavam arreamentos e boleadeiras, “pra pealar paraguaios”, garantiam os pelos-duros.
Alemães de nascimento e seus filhos, loiros de olhos azuis, armavam-se para defender a pátria; dos fundos dos matos, caboclos e caingangues, acostumados ao corte da erva-mate, surgiam com seus facões, o fio brilhando, prometendo decepar as cabeças dos milenarmente odiados invasores guaranis; velhos lanceiros negros farroupilhas, levantavam a poeira da Rua do Comércio retouçando cavalos selvagens, ainda em pelo. E dando vivas ao coronel Joaquim Teixeira Nunes, ensinavam aos mais jovens como se fazia uma carga de lança seca. À noite, ao redor do fogo de chão, lembravam o Massacre de Porongos e lamentavam a falta do seu grande comandante, o bravo Teixeira Nunes. Aí é que os paraguaios iam ver o que era uma carga de lança!...
Já no dia 26 de junho de 1865, em Botuí, o 5º Corpo da Guarda Nacional de Passo Fundo, comandado pelo tenente-coronel Francisco de Barros Miranda, antes de chegar a Uruguaiana, enfrentava as forças paraguaias do major José Lopez. Era parte do exército invasor. As partes oficiais elogiaram a bravura com que se portaram os soldados passo-fundenses.
O Coronel Chicuta contou em carta à esposa a força paraguaia era de 470 homens, perdendo entre 200 e 300 combatentes. Os passo-fundenses foram os que mais resistiram ao fogo; “eu –escreveu Chicuta – não pude deixar de ir no meio do inimigo com meu esquadrão de lanceiros e ali achei-me obrigado a matar um sujeito que se me ajeitou para não sair em jejum. Não te mando a orelha deste por ter faltado o sal para salgar”.
E a participação da atual “Capital do Planalto” culminaria com a prisão do general Bernardino Caballero de Añasco y Melgarejo, depois presidente do Paraguai, e todo o seu estado maior, nos últimos dias da guerra, pelas forças comandadas pelo coronel Chicuta. Além do general Caballero, os passo-fundenses aprisionaram o major Silva, mais dois majores, dois capitães, quatro alferes e 45 soldados.
Logo marchavam o 42º corpo e o 8º esquadrão da Guarda Nacional, comandados pelo tenente-coronel Irineo José Topázio e o major João Cipriano da Rocha Loures. Seguia-lhes outro corpo provisório, tendo à frente o major Cesário Antônio Lopes. Totalizavam aproximadamente 1.700 homens. Somando-se os 409 combatentes do 9º Corpo da Guarda Nacional, que já se encontravam na frente de batalha, Passo Fundo contribuiu com 2.109 homens, cerca 20% do total de sua população masculina.
Enquanto a maior parte dos homens válidos, especialmente os jovens, caboclos, índios e negros, estes responsáveis pelos serviços mais duros e produtivos da economia agro-extrativista, estavam na frente de batalha, as mulheres passo-fundenses, sem descurar a grande missão de criar filhos e filhas, assumiam as lides produtivas.
Apesar dos esforços dos que ficaram, a economia entrou em decadência. Alguns comandantes, que eram homens ricos, abriam mãos dos vencimentos a que tinham direito, em favor dos seus soldados mais pobres, para que estes enviassem o dinheiro às famílias que ficaram em estado de absoluta miséria.
Como em todos os períodos de crise apareceram aproveitadores. Começaram a falsificar a erva-mate, misturando com plantas do gênero Illex, como a caúna e a erva-de-sapo. Isso obrigou a Câmara de Vereadores a adotar medidas repressoras exemplares contra esses falsificadores.
O comércio de muares e de erva-mate, sustentáculos econômicos do município, praticamente desapareceram, conforme relatório da Câmara de Vereadores, assinado pelos vereadores Francisco de Barros Miranda, Francisco Xavier de Castro, Joaquim da Silva Portela, Benedicto Pinto de Moraes e Jerônimo Savinhone Marques, datado de 18 de outubro de 1865.
Do ponto de vista econômico e do desenvolvimento social, a guerra contra o Paraguai representou uma das grandes tragédias vividas por Passo Fundo, ao lado da Revolução Farroupilha (1835-1845) e da Revolução Federalista (1893/1895). Serviu, entretanto, para fazer surgir diversas lideranças que teriam destaque nos anos posteriores. Ao mesmo tempo, esses líderes, pelas relações estabelecidas durante a guerra contra o Paraguai, com dignitários do Império, obtiveram reconhecimento além do município, contribuindo para que Passo Fundo começasse a salientar-se politicamente. Dois desses nomes foram o general Antonio Ferreira Prestes Guimarães e o coronel Francisco Marques Xavier, alcunhado de Chicuta, por ser de baixa estatura física.


O primeiro general de Passo Fundo

Quando estudamos a contribuição passo-fundense para a guerra contra o Paraguai notamos a presença do coronel Antônio de Mascarenhas Camello Júnior. Segundo o historiador Antonino Xavier e Oliveira, que examinou a documentação daquele período, “Reuniu e fez marchar toda a guarda nacional do município e, em pessoa, seguiu para a campanha onde se conserva prestando bons serviços”. Acabou como o oficial mais graduado da Guarda Nacional passo-fundense. Já na República terminou promovido a general pelo presidente Floriano Peixoto. Depois dele é que aparece o tenente-coronel Francisco de Barros Miranda.
Apesar disso, Antônio de Mascarenhas Camello Júnior acabou relegado a segundo plano pelos historiadores passo-fundenses. Em trabalho ainda inédito que temos sob nossos olhos o genealogista Gilberto Motta Gomide, trineto do coronel Mascarenhas, resgata um pouco da biografia daquele comandante militar.
Antônio de Mascarenhas Camello Júnior nasceu em Sorocaba no dia 7 de fevereiro de 1820, casou com sua prima Anna de Mascarenhas Martins, com a qual teve diversos filhos, alguns deles nascidos em Passo Fundo. Sua filha, Porfiria de Mascarenhas Camello, sorocabana, casou em Passo Fundo, com Joaquim Gonçalves Gomide, também sorocabano, deixando uma grande descendência, a partir dos 14 filhos tidos pelo casal.
Antônio de Mascarenhas Camello Júnior ingressou na Guarda Nacional em 1840. No ano seguinte era promovido a alferes, em 1844 já era capitão. Em 1850 era comerciava em Sorocaba; e, 1852, naquela cidade iniciou-se na Maçonaria. Em 1954, como capitão, aparece pela primeira vez em documentos passo-fundenses. Com a doença de Joaquim Fagundes dos Reis, que possuía obras maçônicas em sua biblioteca, o maçom Mascarenhas Camello Júnior, acaba herdando a liderança política de Fagundes dos Reis. Formou entre os primeiros vereadores eleitos, em 1857. Em 21 de setembro desse ano assumiu a função de Juiz Municipal, primeiro suplente, o mais votado. Dois anos depois (7 de agosto de 1859) é suplente de Delegado de Polícia.
No dia 13 de outubro de 1860 Camello Júnior foi nomeado Coronel Comandante Superior da Guarda Nacional de Passo Fundo. Nessa função, cumprindo ordem do presidente da Província, em 1864, organizou o 9º Corpo Provisório, que seguiu para o Uruguai, participando do cerco de Paysandu.
Em 1865, constituídos os diversos contingentes passo-fundenses enviados para a guerra contra o Paraguai, Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, à frente do 42º Corpo de Cavalaria Provisória marchou para a frente de batalha, apresentando-se e à Divisão do general José Gomes Portinho, que lhe conferiu o comando de uma Brigada.
Na guerra contra o Paraguai, como dirigente de Brigada, comandou o tenente-coronel Chicuta e demais passo-fundenses. De volta a Passo Fundo, presidiu a segunda reunião da Guarda Nacional, tendo como secretário seu genro Joaquim Gonçalves Gomide, em 1870. No ano seguinte, a Câmara de Vereadores presta homenagem aos passo-fundenses voluntários da pátria, reunidos e mobilizados pelo coronel Camello Júnior, que sob sua liderança geral, fizeram toda a campanha contra o Paraguai.
Em 1876, de novo, Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, juntamente com outros veteranos daquela guerra, integra a Câmara de Vereadores. No ano seguinte (1877) há notícias de que possuía terras em Nonoai. Por motivos não apurados até agora, pouco tempo depois, retorna para Sorocaba, juntamente com a maior parte de a família.
Proclamada a República, é promovido a general pelo presidente Floriano Peixoto. E, aos 78 anos de idade, no dia 6 de agosto de 1898, falece na sua fazenda, no então distrito de Campo Largo.
Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, comandante da Guarda Nacional de Passo Fundo, foi o único dos nossos veteranos da guerra contra o Paraguai que chegou ao posto de general do Exército Brasileiro.
Sobre o general Antônio Mascarenhas Camello Júnior, comandante geral da Guarda Nacional de Passo Fundo e das forças passo-fundenses durante a guerra contra o Paraguai, o historiador Hemetério José Velloso da Silveira, em seu livro “As Missões Orientais e seus Domínios”, afirma textualmente: “Em 1885, achando-nos em Cruz Alta, aí chegou o doutor Francisco Antônio Rosa, médico, o qual tendo isso a Passo Fundo, disse ter achado a povoação muito mais animada, em sua vida comercial, do que a de Cruz Alta.
Já ali havia chegado e fixado residência o capitão Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, o qual com bastante tino soube insinuar-se no ânimo daquela população e levá-la a melhor caminho.
Ou devido ao seu prestígio ou porque os homens mais notáveis de Cruz Alta reconhecessem a impossibilidade de uma boa administração num município tão vasto, como tinham-no, desde logo foi aventada a idéia da separação de Passo Fundo para conjuntamente com Soledade constituir um município distinto”.
José Hemetério Veloso da Silveira destaca a importância do futuro general Antônio Mascarenhas Camello Júnior no processo de emancipação de Passo Fundo, conferindo-lhe o papel de verdadeiro articulador desse processo junto ao então deputado provincial Antônio de Mello Albuquerque, “de acordo com seu ilustrado antagonista Doutor Antônio Gomes Pinheiro Machado” para a proposição da lei que criou nosso município. Salienta sua importância política, de tal sorte que nomeado juiz municipal suplente pelo governo da Província, renunciou ao mandato de vereador para assumir essa função pública.
O historiador informa textualmente que “O Coronel Mascarenhas Júnior que abandonou interesses reais, voltou paupérrimo” da guerra contra o Paraguai. A seguir, num parágrafo curto e grosso, declara: “Sendo esquecido seus bons serviços, foi finar-se em São Paulo”.
Conclusão: desiludido com as injustiças sofridas, com a premiação dos oportunistas, Antônio de Mascarenhas Camello Júnior, que seria o verdadeiro articulador da emancipação de Passo Fundo e que, verdadeiramente, comandou as forças passo-fundenses na guerra contra o Paraguai, “foi finar-se em São Paulo”.


Combatentes passo-fundenses no Paraguai

Os oficiais integrantes o 9º Corpo da Guarda Nacional que participou da luta no Uruguai, inclusive do cerco e bombardeio de Paysandu foram os seguintes: tenente-coronel João de Freitas Noronha, comandante, capitão Patrício Falkembach, capitães Salvador Alves de Rezende e Felipe José da Silva, tenentes Firmino da Silveira Castro, José Maria dos Santos Prates, Vidal Francisco de Borba, Francisco Alves dos Santos Rabello, alferes Antônio João Ferreira, Cypriano Rodrigues da Silva, Antônio Xavier Simões, José Borges Vieira, Justo José da Silva e Julião Luiz da Rocha. Integraram como sargentos o 9º Corpo da Guarda Nacional, durante a guerra contra o Paraguai: José Luiz de Oliveira, João José Duarte, Manoel Soares Antunes, Francisco dos Santos Moraes, Luiz Ferreira Soares e Vasco dos Santos Moraes.
Ao falarmos desse período histórico e da chamada Campanha de Paysandu é importante lembrar que muitos uruguaios que apoiaram a intervenção brasileira, acabaram imigrando para o Brasil. Alguns deles fixaram residência em Passo, dando origem às famílias Palhano (ou Paiano) e Benevenuto ou Benavenuto. Considerados traidores do Uruguai, os uruguaios que apoiaram a intervenção brasileira, sofreram sérias represálias. Ficou famoso o Massacre de Quinteros, quando 159 prisioneiros foram fuzilados, entre eles o general César Díaz, herói nacional do Uruguai em campanhas anteriores.
O tenente-coronel Francisco de Barros Miranda comandava o 5º Corpo da Guarda Nacional, que participou do cerco de Uruguaiana, seguindo até Corrientes, na Argentina, de onde regressou por motivos de doença. Seguia-lhe, por ordem de posto, o major Francisco Marques Xavier, conhecido pela alcunha de Chicuta, diminutivo de Francisco, por ser de baixa estatura física. O coronel Chicuta, fez toda a campanha participando dos combates de Botuí, Humaitá, Itororó, Avaí, Lomas Valentinas, Sapucaí, Aquidabã, e participou do aprisionamento do general Bernardino Caballero de Añasco y Melgarejo.
Do 5º Corpo da Guarda Nacional de Passo Fundo, que participou da Guerra Contra o Paraguai, além do major, ocupando o posto de tenente-coronel Francisco Marques Xavier, alcunhado de Chicuta, faziam parte os capitães Bernardo Antônio de Quadros, Bento Mascarenhas de Carvalho, Athanazio Baptista do Nascimento e os tenentes Salvador Alves dos Santos Rabello, Lucas José d'Araújo, Manoel Nunes Vieira, que regressou por ter sido ferido em combate, Francisco José dos Santos, que também regressou doente, Floriano José Rodrigues, outro que adoeceu e voltou em meio à guerra. Outros oficiais que fizeram parte foram os alferes Pedro Bueno de Quadros e José Maria Xavier d'Araújo e os sargentos Porfírio José d'Araújo, Braz Ferreira Martins e Francisco Bier. Este, no posto de tenente-coronel republicano foi ferido e decolado no Combate do Umbu, a 16 de janeiro de 1894, durante a Revolução Federalista. Aliás, muitos veteranos da guerra contra o Paraguai participaram da Revolução Federalista, em ambos os lados.
Para que se aquilate a contribuição dos passo-fundenses na “guerra contra o governo do Paraguai” como, oficialmente, à época, os comandantes brasileiros denominavam o conflito, basta dizer que a biografia do Coronel Chicuta, que comandou o 5º Corpo de Voluntários da Guarda Nacional, na maior parte da guerra, contabiliza a participação em 22 combates.
Ao final da Campanha, menos de 25% dos voluntários voltaram vivos. Mais de 75% dos passo-fundenses perderam a vida na guerra.
Também participou da guerra contra o Paraguai o 42º Corpo da Guarda Nacional de Passo Fundo, sob o comando do tenente-coronel Irineu José Topázio, que morreu na guerra. Contando com os seguintes oficiais: capitães Lúcio da Silva Portella, José Sebastião Apiahy, que fez parte da campanha, José Alexandre de Brito, Theobaldo Gonçalves do Nascimento, Antônio Camillo Ruas, Elisário Ferreira Prestes, que seria um dos comandantes maragatos durante a Revolução Federalista, e os sargentos Joaquim Borges Vieira, outro combatente na Revolução Federalista, Crescêncio Rodrigues de Lima e Manoel Pedro de Alcântara.
O 8º Esquadrão Avulso era comandado pelo major João Cypriano da Rocha Loyres, tendo os tenentes Laurindo dos Santos Cardozo de Menezes, Eduardo Velloso de Linhares e o alferes Manoel Geminiano Baptista, além dos sargentos João Fernandes do Carmo e Manoel José de Almeida.
A 2ª secção de Batalhão era comandada pelo major Cesário Antônio Lopes, que adoeceu, regressando para Passo Fundo, onde continuou reunindo gente para integrar a Guarda Nacional. Também integrava a secção o major Nicolau Falkembach, o capitão Antônio Rodrigues Batista, o tenente cirurgião Francisco Miguel Ribeiro Jardim e o tenente João José Antunes, que fez parte da campanha. O alferes Antônio Delfino de Oliveira, também fez parte da campanha. O alferes Bento Mascarenhas Jequetinhonhas e Jerônymo Fernandes de Oliveira, participaram de toda a guerra. Jerônymo Fernandes de Oliveira, apesar de passo-fundense, integrou as forças de Cruz Alta.
Infelizmente, os registros até agora divulgados não revelam os nomes de todos os voluntários passo-fundenses que participaram da guerra contra o Paraguai. É possível que nunca os seus nomes venham a público
Brasileiros de todas as origens e até imigrantes apresentaram-se para defender o território brasileiro, invadido pelas forças paraguaias. Entre os oficiais notamos diversos sobrenomes estrangeiros: Falkembach, Müller, Bier, Doring, Salinet, Aguirre, Morsch, Stürm, Marchi (Marques) e Pedra, do português Manoel José da Silva Pedra, que continuam entre nós. Esse detalhe é de extrema importância. Os imigrantes logo se integraram à vida brasileira, assumiram os costumes e as tradições nacionais. Imigrantes de todas as nacionalidades que aqui aportaram logo se tornaram viciados no chimarrão, apreciadores do churrasco e demais alimentos da culinária brasileira. Adotaram as vestimentas típicas. Numa palavra: abrasileiraram-se.
Uma vez terminada a guerra contra o Paraguai os passo-fundenses que dela participaram – e que sobreviveram – retornaram ao município.


Conseqüências da guerra para Passo Fundo

Essa guerra trouxe duas contribuições significativas para a política brasileira: o aumento de simpatizantes para a causa abolicionista e a simpatia dos brasileiros com o movimento republicano que se iniciava.
A convivência entre brasileiros de todas as etnias e classes sociais, na luta contra um “inimigo comum”, a ditadura de Solano Lopes, convenceu os brasileiros de que não havia mais clima para a manutenção da escravidão. Brancos e negros tiveram que defender-se mutuamente; passaram sede e fome juntos. E com toda a certeza, muitos brancos somente foram salvos graças à solidariedade de brasileiros de pele escura.
Outro fator que contribuiu para que os brasileiros se tornassem sensíveis ao movimento abolicionista, seguramente, foi a convivência com uruguaios e argentinos, onde a escravidão tinha sido abolida há décadas. Essa convivência, também fortaleceu em muitos e despertou em tantos outros brasileiros, os ideais republicanos.
A guerra sendo, na definição clássica do estrategista alemão Karl Klauzeritz, a “continuação da política por outros meios”, também acaba apresentando aspectos positivos, entre eles o fortalecimento dos vínculos nacionais no interior dos povos envolvidos e a consolidação de novos segmentos sociais.
No caso brasileiro, a guerra contra o Paraguai consolidou uma classe média, constituída basicamente pelo funcionalismo público, em especial os militares. Comerciantes de todos os tipos, entre fornecedores para os governos envolvidos e simples mascates, também lucraram, além de tantos quantos que se dedicaram ao fornecimento de suprimentos para os combatentes.
Isso tudo contribuiu para mudara a configuração social da sociedade brasileira, que não poderia mais continuar sendo a mesma.


Primeira conseqüência: o movimento republicano

A convivência dos brasileiros com uruguaios e argentinos, durante a guerra contra o Paraguai provocou o aumento de simpatias com a causa republicana.
O Rio Grande do Sul já possuía certa tradição republicana, através da República Rio-Grandense, proclamada no dia 11 de setembro de 1836, durante a Revolução Farroupilha pelo general Antônio de Souza Neto. A República Rio-Grandense chegou a adotar hino e bandeira próprios, a convocar e eleger uma Assembléia Constituinte e a elaborar um projeto de constituição republicana.
Republicano e abolicionista, o general Antônio de Souza Neto, terminada a Revolução Farroupilha, recolheu-se para suas fazendas no interior do Uruguai, levando consigo centenas de negros que participaram com ele daquela revolução. Temia que os imperiais desrespeitassem os acordos firmados, garantindo a libertação dos escravos que lutaram ao lado dos farrapos.
Mesmo republicano, o general Antônio de Souza Neto morreu na guerra contra o Paraguai, acompanhado de muitos negros brasileiros que viviam no Uruguai.
Outros republicanos brasileiros, veteranos da Revolução Farroupilha, também participaram daquela grande guerra.
Em 1868, na capital gaúcha, o professor Apolinário Porto Alegre fundou o Clube 20 de Setembro, reunindo republicanos em torno da mística dos farrapos, no dizer do historiador Moacyr Flores. Dois anos depois, a 23 de dezembro de 1870, no Rio de Janeiro, era publicado, no jornal A República, o famoso Manifesto Republicano, de autoria de Quintino Bocaiúva.
Dois partidos políticos dividiam Passo Fundo, o Liberal e o Conservador. Os liberais eram liderados por Antônio Ferreira Prestes Guimarães e os conservadores por Gervazio Luccas Annes, que chegaram a ser deputados na Assembléia Provincial, correspondendo à atual Assembléia Legislativa.
Algum tempo depois Passo Fundo viu surgir um grupo de jovens que procurou organizar suas simpatias pelo movimento republicano através de reuniões realizadas na casa do marceneiro Augusto Reichmann, situada na Avenida Brasil, parte fronteira ao atual Colégio Notre Dame.
Os jovens republicanos, que costumavam se reunir à noite, passaram a ser ridicularizados, tanto por liberais quanto pelos conservadores, com o apelido de “Clube do Toco de Velas”. Além dos encontros na casa de Augusto Reichmann, os jovens republicanos realizavam comícios, diante da ferraria de Tomaz Canfild, que ficava nas proximidades da residência de Augusto, também na frente da então Praça Boa Vista, como era conhecido o espaço depois doado para a construção do atual Colégio Notre Dame.
Os comícios do “Clube do Toco de Vela” atraiam a atenção de curiosos. E, apesar de ridicularizados, acabaram contribuindo para que a discussão em torno da República se popularizasse em Passo Fundo. Entre os integrantes desse núcleo de republicanos estavam Francisco Prestes, que teria sido o primeiro passo-fundense a assumir a militância republicana, Manoel de Araújo Schell, Pedro Pereira dos Santos, Afonso Caetano de Souza, Fidêncio Pinheiro, Fernando Zimermann, Irineu Lewis, José Savinhone Marques Sobrinho e, naturalmente, Augusto Reichmann, o dono da casa que sediava o “Clube do Toco de Vela”.
Francisco Prestes, que seria o líder dos jovens republicanos, mudou-se de Passo Fundo, provocando um declínio do movimento. Este, porém, logo se recomporia com a adesão do major Lucas José de Araújo, comerciante rico e de grande projeção social, que passou a acolher os republicanos remanescentes em sua casa, na esquina a Avenida Brasil com a Rua Marcelino Ramos.
Na casa de Lucas José de Araújo, que ficava na esquina da Avenida Brasil com a Rua Marcelino Ramos, onde, posteriormente, foi construído o prédio do Círculo Operário Passo-Fundense, há pouco demolido, para dar lugar a um edifício ainda em fase de construção, também se reuniam os liberais Antônio Ferreira Prestes Guimarães, que morava ao lado, na Avenida Brasil, Jerônimo Savinhone Marques, Joaquim Gonçalves Gomide, José Prestes Guimarães, Jorge Schell, e os conservadores Teófilo Rodrigues da Silva, Manoel Teodoro da Rocha Ribeiro, Daniel Manoel de Araújo, Saturnino Vitor de Almeida Pillar e Gervazio Luccas Annes.
O major Lucas José de Araújo representava, em Passo Fundo, do jornal A Federação, que surgiu em 1º de janeiro de 1884, como órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense. O jornal contava com outros assinantes no município, servindo como um veículo para a difusão e consolidação da idéia republicana. Empregando seu prestígio, Lucas José de Araújo consolidou o Partido Republicano Rio-Grandense local. Este, pouco antes da proclamação da República avolumou-se com a adesão dos militantes do Partido Conservador, adesão que contribuiu para que as perseguições políticas mudassem de lado, sendo uma das explicações para a violência que explodiria durante a Revolução Federalista (1893/1895).


Segunda conseqüência: o movimento abolicionista

A segunda grande conseqüência foi o fortalecimento do Abolicionismo. Gaúchos de todas as etnias irmanaram-se durante séculos na defesa das fronteiras. Isso não impediu que homens livres continuassem homens livres e escravos continuassem escravos. A democracia racial é uma grotesca mentira. Não é o momento nem o local de discutir o assunto. A guerra contra o Paraguai não causou diretamente o aumento dos sentimentos abolicionistas em Passo Fundo. O contato dos veteranos com argentinos, uruguaios e paraguaios, que viviam sob regimes republicanos, e onde a escravidão dos negros já fora abolida, favoreceu o surgimento de idéias republicanas e abolicionistas. Quando essas idéias não eram francamente favoráveis à República e à Abolição pelo menos aumentaram a permeabilidade das elites brasileiras a essas mudanças.
Tanto isto é verdade que já no dia 13 de agosto de 1871, às 19 horas, com a presença de várias pessoas – brancos, naturalmente –, era realizada uma reunião abolicionista. O evento foi aberto pelo Dr. Cândido Lopes de Oliveira, defendendo a necessidade de que fosse fundada uma “sociedade libertadora das crianças do sexo feminino”, a exemplo do que já ocorrera em diversas outras vilas e cidades, como Cruz Alta, Porto Alegre e na Capital do Império, que era o Rio de Janeiro.
Cândido Lopes de Oliveira preconizou a adoção como modelo os estatutos da sociedade congênere de Porto Alegre, com pequenas modificações, como o donativo de dez mil réis, ao ano, por parte de cada associado. Propôs que a comemoração do Dia da Independência, anualmente, com a libertação do máximo de crianças que fosse possível libertar com os recursos da sociedade.
Falou em seguida o major Antônio Ferreira Prestes Guimarães, que apoiou as propostas de Cândido Lopes de Oliveira e informou sobre medidas já adotadas, entre as quais a formação de diversas comissões abolicionistas nos distritos do município.
Com a aprovação unânime fundou-se a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense, aprovando-se, por aclamação, Pedro Lopes de Oliveira, como presidente, e Antônio Ferreira Prestes Guimarães, como secretário geral.
A Assembléia que decidiu fundar a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense, no dia 13 de agosto de 1871, resolveu, também, delegar poderes para que o presidente, Cândido Lopes de Oliveira, e o secretário geral, Antônio Ferreira Prestes Guimarães, tratassem de organizá-la com vistas a realizar uma grande festa no dia 7 de setembro seguinte. Cândido Lopes de Oliveira afirmou que, como vereador, apresentaria proposta à Câmara para a colocação em uma tabuleta e registro em livro próprio dos nomes dos sócios presentes, sendo declarados beneméritos.
Fundaram a Sociedade Emancipadora de Passo Fundo as seguintes pessoas: Cândido Lopes de Oliveira, Antônio Ferreira Prestes Guimarães; Nicolau José Gomes; Matheus Gomes Nogueira; Joaquim Gonçalves Gomide; Ludovig Morsch; Joaquim Dias Medeiros; Amâncio d'Oliveira Cardozo; Ramon Rico; Cecília Rico; Cícero Melquíades de Figueiredo; Francisca de Mata Figueiredo; Celina de Figueiredo; Zoraida de Figueiredo; Tacir de Figueiredo; Theóphilo Rodrigues da Silva; Mathilde Teixeira de Moraes; Jorge Meister; Pantaleão Ferreira Prestes; Padre Antônio da Rocha Pinto; José Francisco de Oliveira; José Pinto de Moraes; Antônio José de Almeida Teto; Antônio José da Silva Loureiro; Guilhermina Pedrina de Oliveira; João Müller; Francisco de Barros Miranda; Antônio Ferreira de Albuquerque Netto; Bento Martins da Cunha; Manoel Francisco de Oliveira; Joaquim José de Andrade Pereira; Pedro Ferreira da Silva; Polycarpo Ferreira da Silva; Guilherme Block; João Severiano Marques da Cunha; Felicidade Maria Vieira Martins; Maria Luiza Gomes; Affonso Maria Vieira Martins; João Henrique Luiz Daerve; Francisco Teixeira Alves; João Teixeira Procópio; Cesário Antônio Lopes; Manoel Ferreira Carpes; Tibiriçá Tobias de Oliveira; Diogo José de Oliveira (que concedeu liberdade a uma escrava); Manoel José Gomes Ferreira Pedra; João Gabriel de Resende; Leôncio Osana Rico; Adão Rico; Cantalício Rico; Carlos Gosch; C. V. Reutter; Jorge Sturm Filho; Rufino Antônio da Silva (que também libertou uma escrava); Mariano Antônio de Assumpção; Manoel Nunes Vieira; Francisco de Paula Vieira; Maria Joana Vieira (que declarou livre uma escrava) e Anna Thereza Prestes (outra que concedeu liberdade a uma escrava).
Ao estudarmos a organização da Sociedade Emancipadora Passo-Fundense, um detalhe que salta aos olhos é o número significativo de mulheres, numa sociedade dominada pela presença de pioneiros. Outro ponto que merece destaque é a alta quantidade de nomes conhecidos na história de Passo Fundo, o que demonstra a profundidade alcançada pelo movimento abolicionista.
Em folheto divulgado, ainda no mesmo ano de 1871, a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense comemorava as festividades promovidas no dia 7 de setembro daquele ano, lembrando que, em apenas três semanas, foram libertadas “seis inocentes crianças, quase todas brancas”, com os fundos da sociedade, “além de quatro adultas – por liberalidade dos seus senhores”. Um detalhe importante é que as crianças libertadas eram “quase todas brancas”, demonstrando que a miscigenação entre brancos e negros também se verificava em Passo Fundo...
Depois de um ímpeto inicial, o movimento abolicionista passo-fundense sofreu um decréscimo. Talvez se explique pela profunda crise que afetou a economia local nos anos que se seguiram ao fim da guerra contra o Paraguai.
Assim, no dia 3 de setembro de 1884, o vereador Antônio Ferreira Prestes Guimarães, lembrando a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, propôs a criação de um livro ouro, para registrar as atas das reuniões objetivando a abolição da escravatura de das pessoas que, espontaneamente, libertassem seus escravos.
O movimento alcançou grande repercussão, tanto que, no dia 28 de setembro de 1884, reunida solenemente, a Câmara de Vereadores proclamou a libertação de 300 escravos, seguindo-se um culto solene e um Te-Déum na Matriz, hoje Catedral, em comemoração ao ato, além de festejos populares. Essa abolição aconteceu com o concurso dos dinheiros públicos.
No dia seguinte, os vereadores passaram telegrama ao presidente da Província, que terminava com as seguintes palavras: “Vai desaparecer a mancha negra”.
Como podemos ver, o movimento abolicionista passo-fundense inseria-se dentro do mesmo processo em nível nacional. Tanto isto é verdade, que a Sociedade Emancipadora Passo-Fundense foi fundada no dia 13 de agosto de 1871, pouco mais de um mês antes da aprovação da Lei do Ventre Livre. Tinha o objetivo de libertar as crianças do sexo feminino.
O movimento diminuiu logo depois, reiniciando-se, no ano de 1884, menos de quatro anos antes da proclamação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
Em 1886, a Câmara de Vereadores comunicava à Assembléia Provincial que havia instituído um imposto de 200$000 réis por escravo introduzido no município, com exceção aos que coubessem por herança a órfãos e interditos aqui residentes. Informava, ainda, que a escravidão estava praticamente extinta em Passo Fundo.


Efeitos negativos da guerra contra o Paraguai

Durante a guerra contra o Paraguai, a maior parte da força produtiva, constituída pelos homens jovens e escravos, mobilizou-se para a frente de batalha, ocasionando falta de braços para tocar as lavouras, a criação de gado e a incipiente indústria local. Passada a guerra, boa parte dessa força produtiva ou não retornou, pois muitos passo-fundenses pereceram na luta, ou não pode ser integralmente aproveitada, uma vez que outros tantos voltaram mutilados.
A ocorrência de grandes secas contribuiu para agravar os efeitos negativos provocados pela guerra sobre a agropecuária. As notícias sobre esse período de secas foram preservadas pela história oral. Meu avô paterno, José Mendes Monteiro, nascido em 1900, costumava repetir o que ouvira de seu pai, Alexandre Mendes Monteiro, e de seu avô Francisco Mendes Monteiro: todas as fontes da região de São Miguel secaram. Sobrou apenas um olho-d'água, em meio a um mato hoje pertencente à Indústria Bertol, nas proximidades de Santo Antão. Próximo a essa fonte, o mato foi derrubado e queimado. Apenas nesse lugar conseguiram colher um pouco de milho e feijão.
A maior de todas as secas daquele período iniciou no dia 24 de outubro de 1876 durando até 12 de fevereiro do ano seguinte. Esse período permanece na história oral até hoje, como o espaço de tempo em que praticamente todas as fontes secaram em Passo Fundo. Quase toda a safra de verão foi perdida. Poucas famílias conseguiram colher alguma coisa em suas lavouras.
Em 1877, a miséria em conseqüência da seca, atingia tal magnitude que a Câmara formou quatro comissões para socorrer os flagelados. A primeira delas, na vila, sob a presidência de José Pinto de Moraes era integrada, também por João Jacob Müller Filho e Antônio Ferreira Prestes Guimarães, dispondo de 300$000 réis para socorro das vítimas; a segunda, para o Campo do Meio, dispunha de 250$000; a terceira, para Nonoai, contava com um aporte de 250$000 e, a última, para Jacuizinho, contava com recursos da ordem de 300$000.
As dificuldades provocadas pela guerra e as intempéries, a década de 1870 despertavam choradeira, especialmente entre os políticos locais. Tanto isto é verdade que, a 15 de fevereiro de 1874, os vereadores informavam, textualmente, à Assembléia Provincial: “A agricultura, neste município, corretamente ninguém dirá que definha, porque só definha aquilo que algum tempo prosperou”.
Os vereadores lembravam que as dificuldades maiores para o desenvolvimento de Passo Fundo estavam na grande distância dos centros consumidores, o que era agravado pela falta de mão-de-obra, a dificuldade de transporte e a agricultura de subsistência, que não gerava excedentes comercializáveis. E vinha o otimismo ao destacarem a fertilidade do solo, especialmente nos vales do Uruguai, do Jacuí e do Taquari (Capingüí). Lembravam que a cana-de-açúcar, o fumo, o arroz e o trigo haveriam de figurar entre os produtos exportáveis pelo município, desde que tivessem o concurso da melhoria das estradas, do aumento da população e da introdução de novas tecnologias.
Os métodos de cultivo eram ainda rudimentares. Vivia-se no regime das queimadas. O fogo, o machado, a foice e a enxada formavam os instrumentos empregados. O arado praticamente não se introduzira. A semeadura continuava praticada a lanço, com os cereais sendo atirados com a mão sobre a terra capinada e cobertos com terra, passando-se os pés ou ramos sobre o local da semeadura, ou em covas abertas com a enxada ou com espécies de cavadeiras, muitas vezes feitas com galhos de árvores. Era uma técnica, evidentemente, herdada dos índios.
Para aumentar a produtividade os vereadores preconizavam a inclusão dos caingangues ao processo produtivo, através da catequização. Defendiam o fortalecimento da colônia agrícola em Nonoai para civilizar as hordas indígenas que viviam na vadiação, na libertinagem e no saque. E já preconizavam a introdução de imigrantes no município de Passo Fundo.
O mesmo relatório da Câmara de Vereadores, divulgado em 1874, salienta que as exportações passo-fundenses constituíam-se nas levas de muares para a Feira de Sorocaba, em São Paulo, na erva-mate que era exportada para o Uruguai e a Argentina e na ágata para as fábricas da Alemanha.
Os vereadores lembravam as ricas pastagens dos campos costeados por capões de mato que serviam de proteção para os animais durante o inverno. Apesar disso, era impossível desenvolver uma indústria saladeiril, visto que os custos com o sal indispensável para o funcionamento das charqueadas, impossibilitava que o charque serrano competisse com o das regiões próximas do Litoral.
O comércio de mulas vivia uma crise. E, também, sob crise estava a produção ervateira. A ambição fazia com que os produtos fossem falsificados.
A educação era outro problema. Passo Fundo contava com uma população aproximada de 18 mil habitantes e com apenas três salas de aula para alunos do sexo masculino: uma na sede do município, outra em Soledade e a terceira em Nonoai. Todas elas sem professor. Uma sala de aula para meninas era a única em funcionamento. Apesar disso, os vereadores solicitavam mais salas de aula para meninos em Campo do Meio, em Restinga (Marau), em Jacuizinho (Carazinho) e Lagoão e para meninas em Nonoai e Soledade.
Nesse ano de 1874, Passo Fundo perdia o distrito de Nonoai, com a criação do município de Palmeira das Missões
No ano seguinte (1875) o município adquiria o prédio da Intendência (antiga Prefeitura) e solicitava uma verba de 1:000$000 para fundar uma biblioteca pública. O território passo-fundense diminuía com a emancipação de Soledade.


Passo Fundo contra a divisão do Rio Grande

Em meados do século XIX toda a força política do Rio Grande do Sul concentrava-se na Fronteira. Os estancieiros das divisas com o Uruguai e a Argentina dominavam a Província. Dali saía a maioria dos deputados, os senadores, os presidentes da Província, em suma, todas as principais autoridades. A chamada região serrana, onde se incluíam os vastos municípios de Vacaria, Passo Fundo e Cruz Alta quedavam abandonados. Não tinham voz e vez.
Toda essa situação gerava muito descontentamento. Como tivemos a oportunidade de lembrar, a região não dispunha de estradas que levassem diretamente aos centros consumidores. O comércio sofria com a ação de atravessadores estabelecidos em Cachoeira do Sul e Rio Pardo, que influenciavam as decisões políticas de Porto Alegre.
A situação, agravada com as intempéries, levou a Câmara de Vereadores de Cruz Alta, em 1877, a tomar uma medida radical: iniciar um movimento com vistas a criar a Província das Missões, com a separação da metade norte do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, no dia 22 de fevereiro daquele ano, enviou ofício à Câmara de Vereadores de Passo Fundo, solicitando que os vereadores passo-fundenses oficiassem à Assembléia Provincial, solicitando a criação da nova Província.
Reunidos, os vereadores João de Vergueiros, Antônio Pereira de Almeida, José Pinto de Moraes, João Jacob Müller e Joaquim de Andrade Pereira, manifestaram-se contrário à proposta de criação da Província das Missões.
O argumento central dos vereadores de Passo Fundo era o seguinte:
“Por mais brilhantes e sedutores que possam parecer os argumentos da causa, expostos, como foram, com habilidade e arte, é inegável que o projeto concebido visa ao quebrantamento da heróica província do Rio Grande do Sul e, portanto, o seu enfraquecimento e ruína.
“De uma província vasta, rica, forte e gloriosamente autonômica far-se-ão duas insignificantes, pobres, frágeis e quiçá miserandas sucursais da opulenta corte”.
A Província das Missões morreu na casca.


A recuperação econômica

Historicamente, Passo Fundo apresenta uma tradição de rápida recuperação econômica. Em 1877, já emancipados Soledade e Nonoai integrado ao município de Palmeira, Passo Fundo contava com um rebanho de 50 mil cabeças de gado vacum, 3 mil porcos, 3.600 ovinos e 300 caprinos. Eram exportados 300 couros em bruto, 3 mil em surrões, espécies de bolsas de couro usadas no transporte de mercadorias, além disso, 300 couros eram consumidos pela população local. Os passo-fundenses empregavam, para uso próprio, 200 couros de ovelha e 30 de couro caprino.
Nos anos seguintes a economia começava a recuperar-se, tanto que, quatro anos depois, em 1881, o município participava da Exposição Brasileiro-Alemã de Porto Alegre, com uma comissão composta por Antônio Bento de Souza, Antônio Ferreira Prestes Guimarães, Jorge Schell, José Diogo de Lewis, Luiz Morsch, Laurindo dos Santos Cardoso de Menezes e Maximiliano Bechoren.
Passo Fundo contava com seis soques de erva, que exportavam o produto para o Uruguai e Argentina. A produção ervateira, recuperando-se de uma crise recente, era de 293 toneladas e 780 quilogramas anuais. Em Nonoai, que retornara a Passo Fundo, começava a desenvolver-se a indústria açucareira e da produção de cachaça.
Os vereadores continuavam defendendo a colonização da margem esquerda do Uruguai e da margem direita do Rio Passo Fundo e reivindicando a construção de estradas. O preço do gado, nas charqueadas de Pelotas e Cachoeira do Sul e na Feira de Sorocaba, era convidativo, contribuindo para a acumulação de capitais na região. Os preços de cavalos e muares, também eram favoráveis, pois as lavouras de café precisavam desses animais.
A produção de milho e a abundância de frutos silvestres, como o pinhão e o butiá, contribuíam para a facilidade na engorda de porcos. Os vereadores previam que a produção de banha suína seria uma das grandes fontes de renda do município.

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Paulo Monteiro, jornalista e autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas históricos culturais e literários, pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do Exterior. É presidente da Academia Passo-Fundense de Letras e secretário do Instituto Histórico de Passo Fundo. Endereços para correspondência: academiapletras@yahoo.com.br e Caixa Postal: 462 – CEP: 99001-970 – Passo Fundo – RS – Brasil.



poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos

 
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PAULOMONTEIRO
 
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