Poemas : 

O MONGE

 
vai em passos lentos o velho monge
a caminhar pelo jardim do claustro
seus olhos estão cansados
as lentes dos óculos gastas
de percorrer os mesmos caminhos feitos de silêncio
as páginas do breviário não suportam mais
as mesmas orações o mesmo latim

vai em passos lentos o velho monge
não se recorda mais como foi a primeira vez em que
penetrou nos mistérios da clausura
não se recorda mais o dia da profissão dos seus votos perpétuos - castidade obediência e pobreza
não se recorda mais quando recebeu do abade o livro com as regras
escritas por são bento - o pai fundador:
"Escute, meu filho, os preceitos do mestre
e incline o ouvido do seu coração."
o velho monge não se recorda mais também do nome secular
o nome que lhe fora dado pela família quando ainda estava no mundo
não se recorda mais... faz tanto tempo - melhor não recordar mesmo

vai em passos lentos o velho monge
tantas vezes foi preciso lutar contra os desejos da carne
tantas vezes castigou o corpo na solidão da cela
tantas vezes abafou o sorriso dos lábios
porque do sorriso deus não se agrada
tantas vezes durante os pesados jejuns da quaresma
despejou cinzas no prato para tornar intragável
o sabor do parco alimento servido

vai em passos lentos o velho monge
entra no cemitério do mosteiro
olha as sepulturas todas iguais - apenas uma cruz um nome
martinho beda basílio plácido
todos nomes de santos da sua ordem
todos repousam ali onde ele também repousará um dia
quantas sandálias são necessárias para chegar ao reino dos céus?
que julgamento deus fará dele se não foram raras
as vezes em que seu pensamento se desviou
para as coisas do mundo
quando devia estar voltado para o Livro de Horas?
quantas vezes profanou durante o Canto Gregoriano?

vai em passos lentos o velho monge
algo estranho lhe invade a cabeça
sente nojo de deus sente ódio de deus
se pudesse assassinaria deus agora mesmo
agora mesmo
agora mesmo
foda-se o reino dos céus
foda-se deus
se pudesse...
mas como não pode culpa-se mais uma vez
retorna ao jardim do claustro
e resignado prossegue a leitura do seu breviário

__________

júlio

http://currupiao.blogspot.com/



Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
Texto
Data
Leituras
1606
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
20 pontos
12
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 15/10/2009 11:14  Atualizado: 15/10/2009 11:18
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: O MONGE
que essa clausura permitisse ao monge,para além de profícuas leituras,o libertar constante de profícua poesia...como esta, da qual é tema e não autor.porque o monge,apenas meditava...e meditando vivia a sua poesia enclausurada.

beijo,
alex
p.s.:gostei muito de acompanhar esse monge,com passos lentos, através da leitura deste poema.quando a escrita tem a virtude de nos transportar com ela,cumpre a sua missão.



Enviado por Tópico
poesiadeneno
Publicado: 15/10/2009 11:42  Atualizado: 15/10/2009 11:42
Colaborador
Usuário desde: 27/06/2009
Localidade:
Mensagens: 1405
 Re: O MONGE
Julio Saraiva,

Penso que esta imagem/mensagem,faz parte do nosso inconsciente,representando algo de atracção/repulsa.

Apreciei seguir os passos da sua escrita.



Abraço


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 15/10/2009 13:35  Atualizado: 15/10/2009 13:35
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: O MONGE
Júlio, este texto está extraordinário!
Nele, nos vamos revendo enquanto o acompanhamos.
Quantos momentos temos de dúvidas? Quantas vezes questionamos a fé? Isto... para quem tem uma fé, como eu.

Destacaria...

"quantas sandálias são necessárias para chegar ao reino dos céus?
que julgamento deus fará dele se não foram raras
as vezes em que seu pensamento se desviou
para as coisas do mundo
quando devia estar voltado para o Livro de Horas?
quantas vezes profanou durante o Canto Gregoriano?"

E para que o possa ler muitas vezes vou guardar este texto primoroso.

Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/10/2009 22:21  Atualizado: 15/10/2009 22:21
 Re: O MONGE
«quantas sandálias são necessárias para chegar ao reino dos céus?», este verso, Júlio, quase que concentra todo o poema: sinceramente, não sei, se são muitas, se poucas, se gastas pelo uso, rotas, sem solas, se acabadas de calçar. mas para um monge, nos claustros do seu coração, certamente que terão de ser muitas as sandálias da penitência: e chegará, por fim, ao reino dos céus?

DM


Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 17/10/2009 08:43  Atualizado: 17/10/2009 08:46
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: O MONGE
Júlio,
Sei que sabes do que falas.
Esta revolta do monge existe porque na clausura do templo estas vidas seguem a fé com regras tão rígidas o que aborta qualquer voto ou entrega. Acrescido ao despojo total de bens materiais dos quais, afinal, porque somos, simplesmente, humanos, com alguma moderação, também sentimos falta.
Um beijo de admiração, o poema está excelente.
Nanda


Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 20/10/2009 07:51  Atualizado: 20/10/2009 07:51
Colaborador
Usuário desde: 02/04/2009
Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: O MONGE
As crueldades do tempo e os desencantos da vida, podem levar o homem à blasfémia mais profunda...
Importa que esses instantes sejam efêmeros, como as brisas do Verão.
Nada pode travar a caminhada do ser.

Um abraçooo!
Abílio