Textos : 

O livro de todo o conhecimento(XVI)

 
Depois de ter estado a ouvir Teresa, ainda pensei passar pela polícia por causa do furto do meu automóvel, mas estava a ficar escuro e tinha o Às em casa, com fome, e decidi recolher-me para ruminar a minha tristeza, agora que tinha mais elementos para acrescentar à minha visão catastrófica do mundo. Eu, que era e sempre fui rico, não era capaz, nunca tinha aprendido e não sabia gozar a vida. Vivia desconfiado de tudo e de todos, com muito mais propensão ao ódio e ao desprezo do que à compreensão e ao amor.
- E tens razões para isso. - dizia-me um amigo psiquiatra com quem costumo disputar umas partidas de Ténis e que me tem encorajado a não abandonar o desporto, «para teu bem e para bem da humanidade». – E se quiseres consigo elencar mais uma centena de razões para te sentires e viveres como vives, ou mesmo pior.
Em momentos de maior abatimento, como ocorriam cada vez mais frequentemente, lembrava-me do meu tio Aniceto, que seguiu o sacerdócio e era uma pessoa de invejável bonomia. Guardo dele a imagem de um homem que vivia para valores, alguns dos quais colocava acima dele próprio. Não era truculento, falava pouco e num tom amigável. Raramente entrava em discussões teóricas. Evitava discursar e nunca pregava sermões, nem dava lições de moral. Rezava, fazia o trabalho dele, parte do qual consistia em ensinar Botânica e Mineralogia no Liceu e ajudava o próximo, sempre que alguém lhe solicitava auxílio, conforto ou conselho. Era dois anos mais novo do que o meu pai. Um e outro divergiam em muitos pontos de vista e cada qual seguiu um percurso de vida diferente. Das poucas vezes que o vi discutir teoricamente, ficou-me registada na memória uma bela tarde de Verão, que descemos, a pé, até ao rio Douro, meu pai, meu tio e eu. Aquele percurso, de mais de mil metros, desde a eira da casa que habito, até ao rio, é de uma beleza rara, seja em que estação do ano for. Uma grande parte do meu imaginário infantil está associado à mística daquele declive, do qual se avista o Douro a serpentear até ao ponto em que se encontra com o Tâmega. Nessa altura, ainda estava a uns anos de descobrir que a construção da casa naquele local obedeceu a uma estratégia muito singular e muito secreta de defesa. Com aparência de edifício conventual, na realidade, era a estrutura visível de uma verdadeira fortaleza defensiva, com uma rede de galerias subterrâneas, labirínticas e fatais para quem ousasse explorá-las.
Sentamo-nos na beira do rio, num pequeno areal, à sombra de um grande salgueiro e eu, inquirido pelo tio Aniceto sobre os meus estudos e sobre a área que mais me agradava, disse que achava todas importantes, que tinha melhores notas nas Ciências, mas gostava mais de Humanidades, sobretudo Literatura. O meu pai aproveitou para dizer que, na minha idade de dezasseis anos, era muito importante o estudo da História e da Filosofia.
- Quando tinha a tua idade, – continuou ele – o meu erro foi desprezar os estudos e ter-me deixado seduzir pelos negócios. Com isso devo ter agradado ao teu avô, mas desagradei à tua avó. O tio Aniceto ignorou completamente os negócios e seguiu uma vida de estudo. O teu avô achava ridículo que alguém dedicasse uma vida a nada, a passar o tempo. Mas a tua avó encorajava o teu tio porque entendia que o estudo e As Sagradas Escrituras eram mais importantes que todo o resto.






 
Autor
Carlos Ricardo
 
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