Poemas -> Dedicatória : 

A VOZ DE... ALVARO DE CAMPOS

 
Vem!
Vem de lá do fundo do eterno!
Dos abismos mais profundos dos suicidados
Onde a glória consiste no espezinhar de uma formiga,
Atirá-la, depois de esmagada, por uma ravina
E esperar que o vento a projecte contra um rochedo!

Vem!
Vem vingar a ausência de sorte que nos deram por vida!
Os pensamentos recônditos que a ti mesmo recusaste!
Os gritos que não deste! Os choros que não tiveste!
Nem quando a lâmina do ódio ou da indiferença
Retalhava de gemidos a tua carne e te forçava a confessar
O que só a ironia da gargalhada sustenta como verdade!

Vem!
Vem! Oh alma penada! Ectoplasma virulento e tímido!
Vem do externo da tua extrema bondade acutilante
Dizer aos homens que é possível serem livres!
Vem gritar todas as coisas que a morte te ensinou!

Vem!
Penetra-me na alegria como o pénis erecto numa vagina!
Emprenha-me o cérebro com as tuas ideias vândalas!
Os teus ideais encontrados num livro junto ao lixo social
Quando ainda mordias a línguas e rasgavas a boca
De tanto ser e nada ser, sendo!
Arrasta-me até ti pederasta do meu corpo, se não vieres!
Prostitui-me nos grandes navios, nos mastros, nos conveses
Onde imploraste que te prostituíssem
Até que sinta o teu gelo algemar-me à vida!

Vem!
Minha vida é uma ilha perdida num mar sem naco de terra!
O meu paraíso é todo o sitio onde me socorro sozinho!
Vem acompanhar o único habitante do meu mundo!

Só eu sei de mim e mais ninguém!
Só eu, para além de ti, que sabes de todos e não sabes quem são…
Que miséria ser forçado a viver num mundo que nem é o meu!
Aqui, cada pessoa é um barco naufragado junto à muralha
Implorando a misericórdia de um rochedo vão e inútil
Num dia de vendaval teórico e obsceno!

Oh meu irmão em espírito! Meu cão sem trela nem dono!
Quero luz! Esta luz não me pertence nem eu sou dela!
Esta luz de encantos e seduções frustradas!
A mesma luz que usavas quando sorrias, ou não sorrias,
Ou mentias fingindo que mentias para que fosse verdade
Depois das longas horas de merda às voltas com um jornal!

Vem!
Vem ao encontro dos mesmos limites de amor e ódio
Que se revezavam pela tua inocência ou pela tua revolta
Quando ainda acreditavas que o amor era possível!
Ou não…

António Casado
Luso Poemas




 
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antóniocasado
 
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Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 08/03/2010 20:36  Atualizado: 08/03/2010 20:36
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
Localidade: Penafiel
Mensagens: 1801
 Re: A VOZ DE... ALVARO DE CAMPOS
Uma forte e empolgante encenação de argumentos desesperados e arrepiantes, com que se pode compaginar a poesia genial de Álvaro de Campos e escutar-lhe repercussões maiores.


Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 08/03/2010 20:49  Atualizado: 08/03/2010 20:49
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7066
 Re: A VOZ DE... ALVARO DE CAMPOS
Que dizer? o nosso ilustre poeta Carlos Ricardo já disse tudo e eu,fiquei sem palavars. Sim, posso dizer que há ainda alguns pelos que estão a se herissar no meu corpo

Obrigado António Casado por este excelente momento

Aquele abraço

A. da fonseca


Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 08/03/2010 21:25  Atualizado: 08/03/2010 21:25
Usuário desde: 28/07/2009
Localidade:
Mensagens: 10439
 Re: A VOZ DE... ALVARO DE CAMPOS
Um poema empolgante, que nos prende à leitura até
final.

abraço
rosa