Prosas Poéticas : 

A FAMÍLIA 33 (parte 4)

 
, sentou-se outra vez engasgado dos baques sonoros de tossidas truculentas da baldada experimental, quase achou que iria morrer sufocado em sua primeira incursão mas já tinha aprendido que não se podia deixar levar pela fraqueza, a melhor cura pra tal dor era outro bola que curasse o trauma. Estavam na praia num fim de semana em que os avós de Lauro deixaram o casarão desocupado. A presença de Renato por ali não agradava em nada à mãe de Lauro, apesar da distância que ela estava deles. Talvez pressentisse solicitamente que algo iria acontecer ali e não seria o desengano duma juventude vadia demais.
Além de Renato haviam mais dois amigos, tirando a Aline. Lucas e Rodrigo também estavam descobrindo os desafios do balde como cachimbo fatal e Lauro passava um café bem forte que iria acalmar, bem entre aspas, acalmar os nervos da trupe que não tardaria estaria sentindo os efeitos daquele que não tinha sido o doce mais puro que eles já tinham conseguido encontrar.
Teria sido um dia banal, relativamente claro, caso Lauro não tivesse insistido veementemente que queria ver o mar no auge do efeito. A tarde chumbada ameaçava uma tempestade e ventos frios, úmidos e potentes açoitavam a vizinhança.
‘Porra, velho! Tão com medo de que? Eu nunca vi o mar louco de doce e num vou perder essa chance!’
Depois de gargalharem descontroladamente, babando por uns quinze minutos desesperadores, agora que o café voltava com tudo reanimando os nervos de todos, mais uma vez recusaram o convite de Lauro. Ele se levantou e saiu da casa. Poucos metros no passeio Renato veio-lhe à cola, com um olhar humilde de quem também tinha coragem praquilo. Mas uns cinqüenta metros antes da entrada do areial o vento apertou e uma fina garoa começou a soprar, o que o fez após muita relutância e alguns comentários sarcásticos de Lauro, voltar atrás.
Quando mais Lauro se aproximava do oceano, mais ele rugia, parecendo reclamar todas as forças do rapaz. Ele não tinha medo mas o peso do estímulo que suportava era grande, queria conseguir ouvir o mar em seu momento mais alucinado, mas a intensidade da brisa era tamanha que apenas ouvia um infindo rugido, vociferar materno oblongando suas faces.
Retornou pouco tempo depois mas havia apreendido entre a balbúrdia fonética algo como uma canção que talvez viesse do outro lado do oceano. Lauro dançara o trance de alguma barcelona trazido em carona intercontinental pelo vendaval. O pessoal pitava delicadamente na varanda, Aline sozinha deitada na rede e os outros três jogados em volta passando descompromissadamente um porro bojudinho. Finalmente Lauro se lembrou de que havia um antigo aparelho de toca-discos encostado desde a última pequena reforma da sala e decidiram explorar a discoteca familiar.
Pra muita sorte de todos, havia uma grande caixa que se destacava, uma série dos principais nomes da música popular brasileira de meados de sessenta e setenta. Até um zeppelin encontraram. Dançaram muito, suaram, quase se machucaram rodopiando ferozmente em ciranda, até caírem duros de exaustão quase duas horas depois reciclando os álbuns. A vida podia ser tão doce por um preço tão irrisório.
‘Às vezes... às vezes tudo realmente parece a coisa mais perfeita que podia ser...’
Aline suspirou quando reparou o céu estrelado em anis se desnudava frente sua surpresa. Levantou-se num pulo e todos entenderam o que passava. Conseguiram acender uma fogueira na praia apesar da lenha molhada e foram madrugada adentro cantando e dando risada, Aline como uma espécie de rainha sempre dando os veredictos finais dos assuntos, como um rosa que definisse toda concórdia do ambiente.
Quando já era quase manhã conversaram muito sobre desistir e retornar, mas o céu límpido do negrume mortiço prenunciava uma alvorada sem preço. Lucas tinha dormido quase uma hora no meio da noite e se prontificou a buscar panos e ou uma manta e alguma coisa que mordiscassem pra agüentarem o espetáculo ao fim. Se a realidade não fosse tão banal quanto sua mais esperançosa descrição, literal ou literária, tudo isto seria apenas excentricidade em desperdício de energia, de foco. Mas eram batismos cruciais, era a rebeldia permitida ao intelecto em sua mais fervorosa repúdia, destruindo todos templos arcaicos das mentalidades caducas que carregavam. Os atavismos iam ao chão, ao centro do mundo, com o suor por suas costas e seus rebolados.
O nascer do sol explodiu o inimaginável contexto. Correram de olhos fechados gritando pela praia. Rodrigo tropeçou, comeu alguma areia e voltou a correr rindo. Enfim mergulharam com roupas íntimas no seio de iemanjá, que ia morninha pra todos àquela altura. Era o parto de mais uma egrégora reconfortante, holocausto transfugidio da delícia mundana.
O revés posterior era apenas a sagaz revelação de tudo aquilo só seria tão bom se fosse tão raro, tão pouco freqüente quanto possível em sua vida. Um dia aprenderia ainda que todo prazer era algo assim, tinha de ser como uma exceção pra não enjoar, pra não amargurar a brevidade que nos circunda. Mas carregariam lições incríveis, de bondade, partilha e mistérios, carregariam sonhos destroçados e novos mananciais incontíveis da nova mitologia que se lhes impunha aos espíritos. De tantos ensinamentos singelos o que Lauro mais apreciou foi o de devidamente beber água, quando ao chapadão cristalino do Goiás. Sua escrita se voltaria quase obsessivamente a isso, por vezes, mas ele sempre terminava por perdoar-se, quando o gozo do urinar o fazia compreender o impossível.
Agora Lauro era bandido do tempo, perdido e destemido caboclando insolências nas mais castas pistas de dança. Breakbeats podia ser seu nome do meio. Gruve seria o nome da mãe. Renato e Aline cada vez se viam mais, e proporcionalmente Thomas e Lauro. Era uma geração bem direcionada. Mães postiças e originais podando as ervas daninhas de relações passadas do ponto. Lançou seu primeiro livro no mesmo festival, na edição seguinte. Era um apanhado de monólogos meio desbocados em torno do que chamava de pirações com seu tchã de ligeiramente esquizofrênicas. Texto com bastante alma poderia-se dizer. E um bate estaca fino marcando o versado.
A entorpecência também pouco a pouco se amainava, pequenas experiências em tóxicos desaconselhados e outras desventuras e perigos e a razão dominava terreno. A droga agora era outra, era a sintonia, era tocar, tocar, mas os vizinhos protestavam. Os dias corriam. Muitas noites eles dançavam, e depois Renato começou a trabalhar na balada mais legal da capital e Lauro virou figurinha tarimbada e controversa no pico. Era uma onda bem pra frentex, tirava-se os sapatos pra entrar. Música de negros, majoritariamente, assim por dizer. A droga agora era dançar, era explodir e implodir em cada relance de infinito de cada compasso estraçalhante.
Depois de alguns meses ameaçaram barrar Lauro, ele ia longe demais em rodopios, tomava conta do pequeno espaço do dancefloor sobre esteiras de palha com ousadia demais. Aquilo ali também era um lugar pra se relaxar. E ele aprendeu a ser um pouco mais pianinho, agora dançava mais discretamente e sem vergonha vou desenvolvendo técnicas em massagens rudimentares em pés e ademais de fadas e por vezes seus adendos. Dias vãos, diriam uns. Muitos momentos, diriam outros.
O desprendimento gerou o ócio e sua mais delicada criatividade, o sustento agora era a malhação, era o balé elemental. A arte suprema só podia florescer do isolamento fecundo, e lagarta comeu e comeu. E entrou em seu casulo.








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alikafinotti
 
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Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 19/03/2010 12:39  Atualizado: 19/03/2010 12:39
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 Re: A FAMÍLIA 33 (parte 4)
Um conto magnifico,
parabéns

beijo