Crónicas : 

Mar adentro, principio e fim.

 
Sentou-se na pedra ancestral na Praia das Vacas, onde pescara tantos robalos pernas de moça, olhando as pernas das moças na praia distante. As suas, cansadas reencontraram o exato lugar onde arremessava sua linha e perdia-se nos pensamentos de jovem pescador de peixes e sonhos. Não fora o destino que o trouxera neste lugar sagrado para sua longa vida, estava cumprindo seu ultimo ritual, escrevendo ali o seu destino. De um ultimo amor mal sucedido, herdara esta amargura no olhar, dos filhos que se foram levando seus destinos para longe dele herdara esta humildade jamais sentida, da perda total dos bens materiais a calça jeans desbotada as sandálias de pescador que usava agora e uma vaga lembrança do que usufruíra da vida quando perseguia dinheiro, dos seus sonhos um pequeno e quase imperceptível brilho em seus olhos baços, de todas as mulheres que amara e pelas poucas que fora amado, o carinho com que acariciava a pedra onde sentava. A sua frente á baia de Santos e a pequena saída para o mar infinito, aonde decidira viver sua morte ou sua ultima vida. Olhou com carinho o pequeno livro cuidadosamente embalado em varias camadas de plástico e por ultimo num “neoprene” que o vendedor lhe assegurara vida eterna sob as aguas. E assim decidiria sua vida, ele, não o destino. Não via sentido em continuar carregando aquele fardo que o incomodava e sendo carregado como um fardo incomodo em sua velhice. Parentes poucos, amigos quase nenhum, sabia que levariam dias, semanas, talvez meses para darem pela falta do velho eremita urbano que se transformara. Isto o fazia sorrir encantado por se haver encantado e quase desaparecido da vida ... em vida. Estava feliz naquele encontro que ele marcara com seu fim, orgulhoso, nunca se sentira tão dono do seu destino, agora ele mandava em sua vida não o acaso.
Olhou a cavidade escavada na pedra pelas ondas há milênios sabia que ali podia aninhar o seu corpo franzino. Como um útero a pedra o receberia e lhe daria um ultimo aconchego. Consultou o relógio faltavam 15 minutos para a maré subir, encobrir a pedra e deixar aquela cavidade dois metros abaixo d’agua. Olhou o mar, abriu caixa de comprimidos soníferos que trouxera, encheu sua mão deles e os engoliu em porções de quatro com a agua de uma garrafa que lamentavelmente iria poluir o mar que tanto amava.
O mar... sua brisa, seu aconchego, o mar seu cheiro, seu som, seu romantismo, o mar principio e fim da vida, dele viemos e para lá iria em sua ultima e solitária viagem ... mar adentro. Seu nascimento de um útero humano para o útero da terra, o mar, era esta sua viagem principio e fim. Dirigiu-se a fenda já sentindo um leve torpor de sono, deitou-se, colocou as mãos sobre o peito segurando seu velho livro comprado quarenta anos atrás com Elza na feira de livros do Largo do Machado no Rio de Janeiro, “O velho e o mar” de Hemingway não que fosse seu preferido era sim o mais querido, e o que mais tinha a ver com seu ato. Nele a dedicatória fugidia em seus quarenta anos de existência de Elza seu primeiro amor, sua primeira mulher...”Não permita que os tubarões devorem seus sonhos com amor, Elza julho de 1968.”
Seu ultimo contato com a vida ainda em vigília foram os respingos das ondas batendo em suas pernas magras, em seu rosto macilento, em seu peito cavado, sentindo os cabelos brancos molhados... havia permitido que os tubarões devorassem seus sonhos... a esperança é que algum peregrino de praia, homem, mulher, menino encontra-se o livro e quem sabe não permitisse aos tubarões lhe devorarem os sonhos e os tornassem realidade...Mar Adentro.

Carlos Said
Verão 2010
*Mar adentro, foi o motivo da crônica um filme que jamais esqueci...



 
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Carlos Said
 
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