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Uso-te

 
Uso-te,
e o faço por sair-me barato usar-te,
mais barato que uma prostituta,
mesmo que reles,
mais barato uma droga qualquer,
mesmo que vinho rasca bebido na tasca,
não tenho amor nenhum por ti,
não vales nada,
gostaria de nunca mais precisar de ti,
mas não consigo,
és meu vício,
descarrego em ti minhas tensões,
equilibras-me sem precisar de remédios prescritos por psiquiatras ou sessões de psicologia,
mas na verdade preferia não precisar de ti,
atirar-te para fora da minha vida,
para todo e sempre,
queimar-te como queimavam-se as bruxas,
pelo mesmo motivo que queimavam as bruxas,
não és bela mesmo quando falas de beleza,
pois demonstras quando através de ti falo de beleza que sou incapaz de apreciar a beleza,
és a demonstração clara da minha inépcia na arte de viver,
afinal preciso de ti para sentir-me vivo,
as vezes cuspo-te,
as vezes escarro-te,
as vezes enfeito-te,
as vezes emolduro-te,
as vezes és ódio,
as vezes és raiva,
as vezes indiferença,
as vezes amizade e outras amor,
és tudo que eu sou mas não consigo ser de outra forma,
és o órgão que me falta,
a palavra não dita,
és a prova clara e inequívoca que não deverias existir para que eu fosse alguém mais próximo de ser completo,
és meu bode expiatório,
por ti amo, mas não era por ti que deveria amar,
por ti dou-me, mais não era por ti que eu deveria me dar,
és meu palco, quando não deveria ter palco,
através de ti ganho palmas que os outros acham que são modos de me elogiar e na verdade são castigos por eu não ter competência suficiente para de outra maneira ser, Sou um covarde que esconde suas facetas em mascaras colocadas em personagens,
tu és o meu lixo, mas chamo-te de meu lixo apenas para sentir-me mais virtuoso cada vez que sais de mim,
imagino-te,
faço-te,
solto-te,
vagueias por mim e…
abandono-te nos cinzeiros dos cafés,
nas noites de bebedeiras,
nos ouvidos de quem me ouve,
nos olhos de quem me vê,
respiro-te,
bebo-te,
como-te,
amo-te,
odeio-te e…
enfarto-me de ti até vomitar-te,
canso-me contigo até desfalecer,
ou as rodas e rodas sinto-me no centro de um tornado que não deixa-me dormir,
estás na cadeira verde musgo que nunca vi mas que existe apenas por mero capricho,
és minha companheira,
és meu amigo,
minha mãe,
meu pai,
és o soco que eu levei no estômago sem que o meu estômago tenha sido tocado,
és minha atenção e minha distracção,
és minha fuga e minha realidade,
és minha fome e meu alimento,
és tudo que eu poderia ser se não existisses e por isso necessito que existas para desculpar a mim mesmo por não ser nada daquilo que eu poderia ser,
nasces de mim,
por mim,
sou teu pai e tua mãe,
carrego-te no ventre depois de ter sido inseminada por milhares de combinações de genes e sempre que te paro vejo uma aberração que não deixa de ser parte do que sou, fico atónito quando te acarinham,
não entendo como é possível gostar daquilo que para mim não passa de fertilizante, porquê no fundo só quero ver-me livre e limpo de ti, largar-te no terreno baldio que sou, meu sujo e desarrumado quintal,
permanentemente em obras,
numa indecisão constante sobre o lugar das flores,
das arvores,
das ferramentas,
e tu em nada me ajudas,
pássaros passeiam por cá,
deixam sementes que brotam nessa terra demasiadamente fertilizada por ti,
mas não consigo livrar-me de ti,
estas em todos os lados que olho,
estas na beleza e no que meus olhos dizem que não é belo,
fujo de ti,
bebo noutras fontes,
provo outros sabores,
traio-te e não procuro-te,
mas sempre voltas a mim,
gostava mesmo é de matar-te,
mas matar-te seria matar tudo aquilo que não sou e sou por poder ser através de ti.

 
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Trilho-do-Pensamento
 
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Enviado por Tópico
Branca
Publicado: 23/02/2011 17:49  Atualizado: 23/02/2011 17:49
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Mensagens: 3024
 Re: Uso-te
Caro Poeta,
Gostei do texto, a mim pareceu-me aquela história de um casal que vive uma droga de vida por anos, mas se acostumaram tanto um ao outro que não podem se separar. E assim vão vivendo mal, se arrastando, mas indiscutivelmente ligados.
Se odeia, se matam, mas não se largam.
Bem, gostaria de deixar meu comentário, pois o texto me chamou atenção.
Beijo.