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AMAR e PARTIR

 
As notícias são pouco animadoras. De hora a hora, se vai falando que as famílias com rapazes maiores de dezoito anos ou pouco mais, terão de apresentar os seus filhos nos quartéis militares mais próximos das áreas de residência, para que recolham os seus nomes e prepararem-se para o pior. Tudo leva a crer que terão de estar prontos, para entrar em combate, para ajudarem os militares portuguêses, em terras do Ultramar.

Portugal tinha acabado recentemente de cortar relações diplomáticas com os países de língua de expressão portuguesa e a guerra instalou-se um pouco por toda a parte, nos continentes africanos. Muito em breve e logo que os jovens tenham tempo para se refazerem da recruta e estejam prontos, seguirão com guia de marcha por via marítima aos vários destinos de Moçambique e costa da Guiné.

Quando olhei para o meu pai, rapidamente percebi, que as coisas não estavam a correr nada bem para a nossa família, sobretudo para o meu irmão mais velho o Daniel. O meu irmão ligava pouco às notícias. Não sabia tão pouco o que a sua sorte lhe reservaria nos meses mais próximos.
Conheço bem o meu pai, só pela sua cara. É uma pessoa sempre muito bem-disposta e alegre, mostrando muito raramente qualquer ar de preocupado.

Naquele dia, algo de muito grave se teria passado com o Sr. Silva, para andar impacientemente por toda a casa cabisbaixo. A Minha mãe Graciete, tentava confortá-lo, dirigindo-lhe algumas palavras de alento, mas o Sr. Silva, sabia bem que nem ele ou mesmo a própria mulher,pouco poderiam fazer, para alterar ou mesmo evitar, que o seu filho Daniel, tivesse de se apresentar no Quartel para deixar o conforto do lar e seguir rumo á Guiné. Ouvia frequentemente os amigos lá de a taberna comentar, que a maioria dos rapazes que deixavam as suas casas para combater no Ultramar, tarde ou cedo, nunca iriam regressar. Eram muito poucos ou senão nenhuns, os que davam notícias aos seus familiares, sobre o seu verdadeiro paradeiro enquanto permaneciam em batalha.

Em 1963, a grande maioria dos militares, acabou por desaparecer sem deixar rasto, não tendo mesmo os familiares ou amigos, chegado a saber dos seus paradeiros ou até mesmo recuperado os seus corpos. Os que voltaram, poucas alegrias puderam dar aos seus amigos ou familiares. A guerra roubara até alguns dos seus mais preciosos membros e o seu estado de saúde era tão débil e frágil, que ainda hoje após todos estes longos anos passados ainda continuam com profundas marcas.

Nesse tempo,vivia-se dias difíceis e eramos governados por fascistas, onde as pessoas eram constantemente perseguidas pela ditadura e pouca informação era dada às famílias dos jovens militares. Tudo era cautelosamente tratado, ou mantido em segredo, para que até a própria família não fosse alvo de tortura. Os jornais desse tempo, não podiam sequer retratar a informação com a celeridade e verdade, pois os seus colaboradores,eram constantemente alvo de investigação e tortura.

Meu irmão Daniel, era muito chegado á família. Tinha abandonado muito cedo a escola para poder ajudar os pais, que nessa altura passavam por muitas dificuldades. Eram tempos muito difíceis e Daniel conseguira arranjar um emprego numa padaria de alguma dimensão em Setúbal. Trabalhava de noite e descansava de dia. Sempre que podia, gostava imenso de brincar connosco,refiro-me ao meu irmão mais novo, o Miguel, que ainda era muito pequeno e não tinha noção de que o rodeava á sua volta.

Daniel namorava uma rapariguinha muito bonita que morava perto da nossa casa.Chamava-se Ângela! Dificilmente me esqueço da sua cara. Era uma rapariga muito alta, bem constituída e com os cabelos muito fartos, olhos castanhos-claros, sempre muito bem-disposta e alegre, quase sempre não dando muito nas vistas, mas procurando quase sempre pelo seu apaixonado com alguma frequência para não falar em insistência, esquecendo-se por vezes por completo, que o pobre Daniel, trabalhava muito durante a noite e nem sempre estava acordado de dia para lhe fazer companhia.

Quando chegou o dia da partida, Daniel apresentou-se fardado junto de nós. Apesar de tudo, aquela farda assentava-lhe muito bem. Nada faria prever, que aquele rapaz com ar inocente não iria ter um futuro nada promissor.

Haviam escassas ou poucas possibilidades do Daniel regressar a casa, num dos meses seguintes ou na pior das hipóteses, nunca. A tristeza apoderou-se de mim completamente. Um homem não chora, eram as palavras que meu pai e até o meu próprio irmão Daniel me ensinaram já a algum tempo a esta parte, mas nessa altura eu era ainda uma criança e as lágrimas, soltaram-se dos meus olhos acabando por cair da minha cara.
Vocês não imaginam como é difícil e doloroso, termos de nos despedir de um irmão naquela situação. Ficámos ainda mais aflitos, quando acabámos por ouvir dois batimentos vindos da nossa porta da rua. Pareciam ser de alguém muito aflito.

Afinal a pessoa que batia á porta, era muito conhecida cá da casa e ao mesmo tempo muito importante para o meu irmão Daniel.

Tratava-se de Ângela a sua namorada!

Ângela apesar de estar a passar por momentos complicados, tinha-se arranjado e estava muito bonita para se despedir do seu namorado. Era normal para uma rapariga da sua idade apresentar-se arranjada daquela maneira. Trazia os olhos completamente borrados por não conseguir conter as suas lágrimas. Afinal,também ela estava desolada, por o governo da altura, a ter obrigado á sua separação com Daniel.

Não era coisa pouca. Tratava-se da pessoa que mais gostava.
Depois das trocas de palavras e recomendações dos meus pais, tudo foi muito rápido. Daniel de repente, já não se encontrava em casa. O autocarro na garre da cidade, não esperava por ninguém e não podia ficar mais tempo.
Á medida que os primeiros dias se passaram, todos nós sentimos a falta de alguém cá em casa.

Olhávamos constantemente uns para os outros e o relógio de pêndulo que estava na sala era o mais visto. O tempo castigava tudo e todos aqui em casa, porque levava uma eternidade a passar. Meus pais acabaram por ficar doentes e cansaram-se facilmente quando as saudades começaram a apertar. Sempre que podiam, faziam marcação serrada ao carteiro aqui do Bairro.

Mas nada.

Nem uma única carta ou palavra, chegava vinda de África aquela humilde morada, nem que fosse para confortar a pessoa que mais orgulho sentia no momento, por ter o seu filho a combater no Exército.

Com tanta ausência e o passar do primeiro semestre, ambos aqui em casa, estávamos confusos e sem saber o que mais poderíamos fazer, para ter noticias do meu irmão ou tê-lo de volta. Que se teria a passar com Daniel?
Porque razão, não teria dado ainda qualquer notícia durante todo este tempo? Os governantes, responsáveis pela sua partida, assim como todos aqueles que viajaram com ele e que de uma ou outra forma contactaram as suas famílias,não tinham respostas para justificar todo aquele tempo.Estavam destacados noutra frente de combate.

Foi por sinal num dia cinzento e chuvoso difícil de esquecer que a pior das notícias acabou por chegar a nossa casa sem que qualquer um de nós estivesse preparado para a receber.
Honório o carteiro, entregou nas mãos de meu pai, algo que o deixou desconfiado e apreensivo, com pouca vontade para o aceitar. Era um telegrama do Exército.

Finalmente eram as tão desejadas notícias do meu irmão.Seriam as respostas para acalmar toda aquela dor e ansiedade, pensava eu. Mas não! O desgosto da nossa família estava patente nos gritos de minha mãe. Daniel ao que parece, após chegar á Guiné, fora integrado numa Companhia de Comandos e todo o seu pelotão caíra numa emboscada do inimigo e não mais fora visto ou dado qualquer notícia sobre a situação dos jovens militares envolvidos naquela operação.

A Cruz Vermelha Portuguesa, tinha registado e testemunhado, que não havia mais nada a fazer sobre a terrível emboscada que ocorrera naquele fatídico dia.Não houvera qualquer sobrevivente. Não queria sequer imaginar ou acreditar que o meu irmão Daniel pudesse estar morto. Parecia-me ter sido tudo tão rápido e tão estranho, escrito apenas num pedaço de papel timbrado.

Mas infelizmente, a notícia era verdadeira. Mais famílias portuguesas naquele mesmo dia, receberam alguns telegramas a dar conta sobre o sucedido aos seus familiares e amigos. As notícias que saíram nos jornais no dia seguinte,deram uma vez mais pormenorizadamente, mais detalhes sobre uma das muitas tragédias que se abateram sobre os já frágeis corações das famílias Portuguesas. Assim, acabo aqui mais uma das minhas histórias, pretendendo com ela de certa forma homenagear todos aqueles que ainda muito jovens poderiam ter tido um futuro promissor, mas que tombaram em combate no Ultramar ainda virgens e inocentes, sem que para isso tivessem tido qualquer oportunidade de liberdade ou escolha.

GABRIEL REIS

 
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reisgabriel
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/09/2011 19:34  Atualizado: 22/09/2011 19:34
 Re: AMAR e PARTIR
UM ÓTIMO TRABALHO