Crónicas : 

Tortura ... nunca mais.

 
Porque lhe veio a cabeça esse fragmento de musica na voz de Chico Buarque, como um gosto que volta a boca ?.”Afasta de mim este cálice”, como um som que viesse das janelas abertas, suburbanas de sua infância. Talvez a musica lhe soasse como fundo de alguma conversa de bar acontecido anos atrás, antes da ditadura, antes de suas viagens ao Rio de Janeiro, antes que seus ideais se esgotassem nos esgotos sujos de sangue sugados das celas infames criados pelos donos do poder e sendo ditadura da verdade. Crua, nua da indecência, abominável dos ladrões da liberdade, já não lembrava o nome dos companheiros, suas dores de alma eram menores que suas dores físicas, ainda ouvia a voz do coronel gritando em seu ouvido. ”Só os comunistas nos interessam seu porra, veadinho, estudante de merda, agora fala os seus contatos seu fdp, antes que a gente te desove com um monte de merda no meio do nada...fala...”
Falar? Com que boca, com que língua ? Sua língua esta como uma batata inchada, esburacada por suas próprias mordidas quando seus maxilares dançavam ao ritmo dos choques elétricos, e não grite da profundeza de seu medo, porque no fundo nos olhos deles você vê o que significam as palavras que profere. Você deu todos os nomes que eles sabiam nomes que ricocheteavam na torpe expressão dos subalternos ou no sorriso aparentemente plácido do oficial.
Mas então, porque, para que esta sanha assassina? Você se pergunta apenas por perguntar, dentro de um rito que só eles dominam e tem em seu corpo a eucaristia. Não, não eletricidade não. Doem seus braços de tanto que você se defendeu das pancadas, de tanto que protegeu essa cabeça desorientada sobre a qual se fecham os punhos deles, protegidos por anéis de ferro. Ainda sente a mordida dos ”plugs “ elétricos como bocas de pequenos crocodilos sendo presos em seus testículos antes que seu cérebro se desvencilhasse de seu corpo numa viagem talvez sem volta para o sonho do seu mundo livre.

Carlos Said
Inverno 2011
Homenagem a Manuel Vazques Montalban

 
Autor
Carlos Said
 
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