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«« O homem da minha vida ««

 


O barulho ensurdecedor oprime-lhe os sentidos, mesmo assim o pensamento fluí para um tempo distante, uma fase da sua vida em que nada importava além do seu bem-estar interior, tudo e todos eram apêndices do seu crer. Pouco ou nada importava para além do seu olhar, as suas dores de cabeça eram sempre maiores que as dos outros, as suas necessidades mais exigentes, até o ar que respirava era mais puro do que o de qualquer outro mortal.
O barulho continua mas deixou de o ouvir, aos seus ouvidos chega agora a sua voz doce que lhe sussurra ´´serás sempre o homem da minha vida´´ deixou de ter frio, fome ou calor, passou a alimentar-se da voz cristalina, quantas vezes a ignorou, quantas vezes lhe virou as costas deixando-a a falar sozinha, outras tantas duvidou quando lhe dizia ´´serás sempre o homem da minha vida.´´
Aos poucos o corpo adormece, incapaz de mover um músculo recorda a dona da voz, a calma que ela lhe transmitia amiúde, as brigas por tudo e por nada, as vezes que lhe virou as costas. Virava-lhe as costas sempre que ela se queixava da vida que tinha a seu lado, como se o facto de o ter a seu lado não fosse suficiente, como se as horas que lhe dispensava não satisfizessem qualquer mulher por mais exigente que fosse, afinal acordava a pensar nela e deitava-se a pensar nela, mesmo que a seu lado dormisse uma outra qualquer, quem era ela afinal sem ele, ninguém, portanto que se desse por feliz e nada de queixumes. As mulheres falam sempre demais e ela abusava.
Surpreendentemente hoje sente que ela falava muito pouco, mesmo agora quando lhe disse ´´amo-te, amei-te assim que te vi´´ porque não grita ela como nas alturas em que não suportando a sua falta de tacto lhe dizia ´´desaparece da minha frente´´ os seus olhos traiam as palavras, imploravam que ficasse, mas ele sempre ou quase sempre os ignorou, pegava na deixa e desaparecia a sete pés, e agora ala acabou de lhe dizer ´´amo-te´´ e ele sabe que ela não mente, aliás sempre o soube mesmo quando lhe chamava mentirosa, ou quando ela lhe dizia ´´estou farta desta vida´´ e ele repetia´´ também eu, mas um dia terei outra vida.´´
Uma vida sem ela, claro está, um homem do seu calibre tem que ter uma mulher à sua altura, socialmente falando, o seu sangue é mais vermelho que o de qualquer outro, portanto o sangue que correr nas veias da mulher que merecer passar o resto da vida com ele tem que ter o sangue de igual tom, vermelho escuro, da cor da lógica, porque a mania que ela tem de viver sem lógica, tira do sério qualquer homem que meça a vida e a felicidade pelo volume da conta bancária, e da vassalagem que os restantes mortais lhe prestam. Como pode uma mulher dizer que em tendo o suficiente para viver condignamente lhe basta, como pode uma mulher sentir-se feliz por conduzir uma casca de noz se a vida tem mais sabor ao volante de um Ferrari.
´´Amo-te´´ repetiu ela quase sem voz, hei-de amar-te até ao último dos meus dias, e é por te amar tanto que sei ver os teus e os meus defeitos.´´
Mas que defeitos, os dela que está cheia deles, ele é um ser imaculado, como consegue ser tão petulante e repetir continuamente que ele tem defeitos.
´´Amei-te e tu sabes, até ao último dos meus dias´´ mas qual foi o último dos seus dias, se um dia lhe virou as costas deixando-a a falar sozinha para não mais voltar. Recorda o seu corpo franzino em tempos cheio de vida, o seu franco sorriso que aos poucos esmoreceu, as lágrimas silenciosas que lhe inundavam o rosto enrugado pelo sofrimento, recorda que lhe virou as costas naquele dia.
O barulho recomeçou, como podem as folhas mortas fazer tanto barulho no Outono, o jardim está deserto, nunca a levou a passear pelo jardim, de mãos dadas como os namorados, foi sempre um homem muito ocupado, mas hoje ela teve tempo de o acompanhar no passeio matinal, faz tantos anos que lhe virou costas, mas hoje ela esteve ali e disse-lhe que o amou até ao fim dos seus dias.
Afinal quando foi o último dos seus dias, ele nunca o soube, durante muito tempo acordou e dormiu a pensar nela mas ela morreu sozinha num quarto de hospital, dizendo o seu nome através da última lágrima que verteu, enquanto ele pensava nela e se aconchegava no calor de outra.
Ele tinha o sangue vermelho escuro e o dela era vermelho claro, o azeite na água, um vem sempre ao de cima, igual á verdade e á força dos sentimentos.
Levantou-se arrastando os pés através das folhas mortas, as únicas que ainda não o abandonaram, e regressou a casa vazia de vida e de sentimento, o seu sangue vermelho escuro valeu-lhe todo o amor que enjeitou, num dia não muito distante até as folhas o deixarão, nesse dia ela vai lá estar de mãos estendidas, pedir-lhe-á um abraço e repetirá através dos tempos ´´ apesar da cegueira serás sempre o homem da minha vida.´´

Antonia Ruivo
http://escritarubra.blogspot.com/



Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado.

Duas caras da mesma moeda:

Poetamaldito e seu apêndice ´´Zulmira´´
Julia_Soares u...

 
Autor
Antónia Ruivo
 
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Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 12/03/2012 12:54  Atualizado: 12/03/2012 12:54
Usuário desde: 22/08/2009
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Mensagens: 3357
 Re: «« O homem da minha vida ««
Obrigada Antónia por esta partilha excelente

beijo