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Vagabundos na noite

 
Caminhava só! Só caminhava e cuspia no chão.
Cuspia todos os dias como se fossem dolorosas penas a quererem sair do corpo.
Caminhava e sabia onde iria parar a sua identidade.
Subia morros e galgava os tejadilhos dos carros amontoados naquele ferro velho maldito.
Cuspia de novo, em cima da terra ainda húmida do xixi dos gatos.
Digo xixi, para não dizer outra palavra maldita mas tão querida no meio dos ursos.
Mijar no chão é coisa pouca, porque quem tem retretes ou os nomes que lhe queiram chamar agora, sabem que do pouco se faz muito, sempre que chegam esperançados dum banho quente para aconchegar o corpo e matar a sede aos olhos.
Mas ele caminhava, e fazia deslizar os farrapos ainda a bafejar da última sopa que lhe deram a comer na rua dos cheiros vários, onde se pode comer e vomitar as tripas.
Era ele ou a fome, ou a fome e ele a quererem saber onde podiam aliviar-se, ou então, sintetizar-se numa queda de água que estava prestes a soltar-se por entre as pernas.
Mas ele não queria molhar as calças.
Podia pelo menos lembrar-se que tinha um qualquer muro ou parede, a precisar que lavassem as almas que por ali se colaram durante a noite.
Os grafitis sucumbiram perante tamanha dor. Havia de tudo um pouco, e até os mais novos, ainda pintados na última noite, se amantizavam agora com estes maltrapilhos andantes. Fantasmas da noite. Seriam estes os nomes a dar, a estas figuras carismáticas que fazem da noite um túmulo ainda em fase de preparação.
Sabiam-se todos juntos; uns a cuspir no chão, outros a mijar nas ruas, e outros ainda quererem sair dos muros.
Todos juntos seriam mais felizes, mas a vagabundagem já não é o que era. Sabiam-se assim, e, vagabundos na noite, defloraram-na até à última gota do seu rosto.
Agora é a noite sem rosto e o dia com um novo posto para quem já comeu o pão que o diabo amassou.
Sobraram os farrapos, as mãos esqueléticas, os corpos esquecidos num beco qualquer da cidade. Esperam ainda pela última ceia. A ceia que virá das mãos de Cristo.
Os grafitis são agora arte no escuro, aos olhos de qualquer vagabundo que vive e dorme na última esteira estendida ao relento.

Março 2013



Maria Al-Mar
Enquanto Mulher


- Ilusorium
- Mira(douros)
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- Uivam os Lobos
- Mulheres de Areia

 
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Dakini
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 13/05/2013 13:41  Atualizado: 13/05/2013 13:41
 Re: Vagabundos na noite
Um poema para ler e reler, refletindo o nosso próprio ser


Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 13/05/2013 14:35  Atualizado: 13/05/2013 14:35
Colaborador
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Mensagens: 4812
 Re: Vagabundos na noite
...uma descrição da noite que mudou, que vai mudando, noites cada vez mais escuras...tocante descrição de uma nova realidade (e há quem a não queira ver, para não sentir o cheiro...)

ab.


Enviado por Tópico
Clarisse
Publicado: 13/05/2013 16:25  Atualizado: 13/05/2013 16:25
Da casa!
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Localidade: aqui
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 Re: Vagabundos na noite
Olá Dakini,

[Foi preciso colocar a mão por cima dos olhos, fazendo uma espécie de pala, para conseguir terminar esta leitura - parecia que, de repente, uma nuvem negra tinha estacionado acima da minha cabeça.] lool

No meio de todos estes farrapos, cheiros e gestos desagradáveis - tão negros que estão - jamais acreditarão que essa ceia virá.


Bjs,
Clarisse Silva