Contos : 

Factotum (III)

 
 
A mentira tornava-se uma segunda natureza , ainda mais se premida pela necessidade . O filho acedeu de cara feia ; o lugar do pai era ali e não morando sozinho ou na pior variante da solidão : a casa do tio Giba , novo rico e pernóstico .
Uma visita noturna á repartição , na segunda-feira . Tudo mais fácil do que imaginara , a
escada de corda aprovada em mais um teste . Na recepção apenumbrada , um único vigia de plantão , no mais profundo e burocrático dos sonos ,a cadeira escorada na parede , repousando sobre as pernas traseiras ,braços cruzados sobre o peito indolente..
Acessou com facilidade o antigo depósito, em muda alegria fez a velha chave descerrar a porta . Entrou ,ligou a lanterna ,pegou o que precisava de caixas diferentes , colocou numa caixa de papelão , que ataria a uma corda , içando –a sobre o muro , após a escalada final . Atingiu a calçada suavemente , caminhou pela rua silenciosa e mal iluminada , as costas vergadas sob o peso da caixa , bagagem extra no velho Passat do filho . Na volta , passou em frente á entrada , com a sensação de estar quites com aquele mundo que se findara e seguiu em frente , as costas ainda latejando em dolorida satisfação ,dirigindo ao longo do fétido canal que cortava a rua.
Corridos quarenta dias , a tragédia e seus desdobramentos ,resvalaram para a vala comum das desgraças intensas, anônimas e fugazes ; quando muito , uma nota minúscula na seção de fatos urbanos de um e outro jornal , um rápido comentário ma TV , diluído no tédio cansado dos jantares em família , durante o noticiário local. .
Numa manhã de sexta-feira , ressurgiu a Rua das Acácias para os noticiários ; chegava um grupo de três carros oficiais , um deles transportando um gomalinado prefeito , os outros dois , com funcionários graduados do banco público que financiara a construção do prédio e um oficial de Justiça . Á curta distância , duas escavadeiras adaptadas para demolições , as grandes pás erguidas e sujas de barro, escoltadas por cinco carros da polícia com luzes acesas e sirenes desligadas, fechando o cortejo . Em seguida , carros com logotipos das principais canais de TV e jornais da cidade , estacionavam ruidosos .
A vizinhança deixava suas casas para assistir á passagem dos carros , as câmeras da TV esquadrinhavam a rua , um repórter abordou uma dona de casa em seu jardim ; “como a senhora vê tudo isso ?”Daqui mesmo do meu jardim, meu filho ,que que é isso tudo , hem?”. Riscos da transmissão em tempo real ; agradeceu no sorriso midiático e bem alvejado , seguiu em frente ;na sua esteira , um câmera em plena crise de riso .A Praça da Bandeira regurgitando gente, dez minutos depois . A fita amarela foi retirada , as autoridades enfrentaram á pé, a distancia até o estacionamento do prédio, ante-sala do caos a caminho da remissão oficial .Fotos , poses , mais flashes , óculos escuros camuflando olhares cansados , assessores de celular em punho esbravejando contra o céu , a polícia formando um cordão de isolamento entre as autoridades e a multidão contida lá na praça , a cavalaria a postos , a cem metros de distância ; um fotogênico secretário de segurança pública esclarecia uma jovem repórter sobre o “ caráter puramente rotineiro daquelas medidas de segurança , visando apenas a integridade dos pacíficos moradores em caso de eventuais exaltações de ânimo , da parte de elementos beligerantes ,a exemplo do tumulto ocorrido na última reunião com os moradores do Conjunto Residencial Acácias” . Em frente ao mar de entulho , o oficial de justiça leu a sentença judicial ordenando a imediata demolição do “remanescente da construção , visando a prevenção de novas catástrofes “ . O prefeito fez um curto pronunciamento, lembrando a todos da “ quitação naquele momento , da dívida assumida de aliviar , no menor tempo possível, as angústias do ex moradores , agradecendo ao poder judiciário e ao banco pela atuação pronta e eficaz na resolução do problema “. Um breve aceno com a cabeça em direção da praça e acenou para o avanço das máquinas , que avançaram , reduzindo os muros a duas fileiras de entulho , posicionando-se nas laterais do edifício .
Desde o início da manhã , Reginaldo observava a rua , da cobertura do prédio .Deitado,barriga contra o chão a contemplar a rotina do dia, até a sua interrupção. A coluna reclamava em altos brados ,mas era ali , o melhor local para visualizar toda a rua.. Assistiu á chegada de toda aquela gente , viu a praça repleta de vizinhos ansiosos pela aparição no noticiário , desinteressados pelos acontecimentos daquela manhã e muito menos no que fariam os sobreviventes ao desabamento .
Festa no bairro , transmissão ao vivo e a imprensa era a notícia ; o prefeito e sua turma , meros figurantes naquela história arrastada ,contada pela montanha de tralha pousada ali durante mais de seis meses, agora sob o sol mortiço de uma fria manhã ; fotografada e filmada , um entulho espetáculo, quem diria ; a demolição criaria uma grande e única montanha , que seria removida pelos caminhões caçamba e pela voragem do esquecimento coletivo.Apego. Uma palavra oca , ás vezes puxando lá de dentro , um sentimento ridículo tal aqueles velhos de carro importado , assediando as meninas á saída do colégio.
Apego era nada , quando não um estrupício a bambolear no juízo demente , até cansar e arriar no chão , deitado ali , de barriga na laje , escutando o palavrório. Rolou o tronco para a direita, levantou-se furtivamente , caminhando até a escadaria , por onde desceria até o seu apartamento , acompanhando pela TV o restante do evento , até o instante em encerraria o espetáculo , dando – lhe o final que deveria ter ; o seu final e não o da mídia, que daria aquilo tudo pouco mais de dois minutos , espremidos entre flashes de algum terremoto no Japão ou do campeonato de surfe em alguma praia australiana. .Diante das imagens , recapitulava os preparativos concluídos e o arremate final do seu trabalho .
Um prefeito simpático e risonho em dentes perfeitos , acenou para as máquinas , que iniciaram a sua parte no evento .Uma delas, a poucos metros de sua janela , a pá metálica erguida e aproximando-se , na lentidão paquidérmica das grandes escavadeiras.
Sentado na cadeira, comprimiu o detonador das trinta cargas de dinamite instaladas no que restara da estrutura do edifício ; viu- se jovem e feliz , na paisagem árida do sertão , sob um sol escaldante incrustado no céu sem nuvens ; o azul de limpidez sobrenatural , talvez pintado e pregado no horizonte , assistindo ao seu trabalho paciente de perfurar rochas na instalação de explosivos , sob o olhar apreensivo e cúmplice do engenheiro chefe , que lhe ensinara um ofício e o caminho de redenção de sua longeva agonia , expirada agora no ribombar esplendoroso , invocando as potestades do inferno , levando o que restara do Acácias , sepultando todo o grupo de autoridades e repórteres , revirando as escavadeiras , estilhaçando as vidraças da vizinhança ; a multidão urrando na surpresa indecisa entre o aplauso e o terror pânico . Afinal de contas, nem sempre chovia concreto na Rua das Acácias .


andrealbuquerque

 
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andrealbuquerque
 
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