Contos : 

Tocas-me Piano (II)

 
Acordei e olhei o tecto branco.
_Ela acordou! Ela acordou!
E logo um homem todo vestido de branco se apressou a auscultar-me, o prognóstico não era nada mau, mais uns dias e ficava como nova, overdose de extase, alcool a mais, loucura, isto era tudo o que sobrava de mim.
Questionavam-me diariamente mas eu não falava, para quê falar se ninguém vai conseguir ouvir? Ninguém ouve com o coração! Já ninguém se preocupa com isso! Só querem impingir-nos meia dúzia de medicamentos fortes e fazer de conta que tudo está bem. Apagar da nossa memória os acontecimentos negativos usando medicamentos mais negativos ainda. Engulo em seco todas as palavras que nunca lhes direi mas sei que um dia terei de falar, quanto mais não seja no dia em que sair daqui.
Estou aqui há uma semana e não sou capaz de encontrar nada que me cheire a vida. Dizem que salvaram a minha vida, eu não dei conta de nada, estava inconsciente. No fundo, na boca deles, sou apenas uma jovem problemática com tendências suícidas. Na minha boca sempre serei mais do que isso, talvez uma boneca de porcelana dançando numa caixa de música, uma princesa presa na sua torre à espera que alguém a salve.
Recuperei tão rapidamente, estou lúcida mas sei que eles pensam que estou louca porque não consegui proferir uma só palavra desde que aqui estou. O médico que me viu no dia em que despertei voltou hoje cá para ver como eu estava, segurou-me a mão e falou-me um monte de coisas lindas, coisas que eu julgava que nunca ninguém me contaria. Sem querer chamou-me boneca de porcelana e deixou rolar pela sua face uma lágrima antes de me contar a vontade que sentia de fazer algo mais por mim. Pela primeira vez desde que cá estou apeteceu-me gritar-lhe o meu nome mas não fui capaz. Sou uma cobarde!
Corri descalça e de pijama pelo meio da rua. Assaltei uma loja de roupa. Cheguei a casa tarde, no dia seguinte voltei para o meu mundo. De mini-saia e top deixei que o alcool envolve-se o meu corpo de novo, só o alcool aquecia a minha alma despertando em mim o desejo de permanecer sempre neste lugar ouvindo o zum zum zum desesperado de uma música que me conhece melhor do que eu própria, é a música dos corpos que se dançam, é a música do tempo que se balança, é a musicalidade da vida numa noite que ainda nem vai a meio. Ao longe parado a um canto, agarrado a um copo de vodka estava o homem que me recebeu no hospital, médico vagabundo desses que não faz jus à profissão, desiludido ou desencantado, olhar triste e passageiro preso nos feitios de um tecto que eu nunca tinha olhado. Cambaleando caminhei até ele para lhe dizer olá, na verdade um olhar bastava-me, só agora entendia que as saudades já me atormentavam e logo eu que nunca fui dada a qualquer tipo de sentimentos que ultrapassassem a curte de uma noite. Nem foi preciso alcançá-lo, de repente senti a sua mão em volta da minha cintura, os seus passos eram os meus, eu torta de cansaço e sei lá mais do quê deixei-me ir como quem vai rumo ao desconhecido que tanto amo.
Quando acordei uma manta vermelha envolvia-me o corpo, deitada num sofá qualquer inventei movimentos preguiçosos enquanto sem saber onde estava tentava descobrir naquela sala enorme alguma coisa familiar. Sacudi os meus longos cabelos para trás e levantei-me devagar, respirei o cheiro a morango que ocupava o espaço, olhei cada detalhe desta sala desconhecida como se fosse a última coisa que faria ainda em vida. Debrucei-me sobre o grande aquário e segui meia dúzia de peixes coloridos até que ao longe comecei a ouvir uma doce melodia.



. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
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