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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 14

 
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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 14

Aterrizaram no mal-afamado aeroporto de Entebbe, às margens do Lago Victória, em 12 de outubro. Embora distantes os dias de Idi Amin Dada, aquele lugar ficara estigmatizado como terra amigável ao terrorismo islâmico. O país tinha certa diversidade religiosa e maioria cristã, mas os muçulmanos já foram poderosos ali, no período do conhecido ditador. Sem embargo, nada que se compare ao Sudão e sua radical observância da xaria.

Eram, conforme planejado, vinte brasileiros entre missionários, profissionais de saúde e funcionários da igreja, como Tereza. Júlia liderava o grupo, uma vez que Carlos Vinícius preferira se encontrar com eles em Moyo, já nas instalações adquiridas por ele na viagem anterior, vinte dias antes. A missão, que tinha status de ajuda humanitária com credenciais para actuar junto à fronteira com o Sudão do Sul, obtivera vistos de permanência de 12 meses prorrogáveis em até mais 6 meses para cada participante. Para tanto, com passagens de volta já agendadas e pagas, o período em território ugandês seria monitorado com visitas regulares a autoridades e proibições de toda ordem aos indivíduos da missão. Não poderiam, por exemplo, viajar senão em grupo com autorizações prévias para justificar o deslocamento. Tampouco poderiam adquirir propriedades senão aquelas vinculadas ao trabalho humanitário e jamais contrariar determinações do governo. Incidentes eram constantes entre missões humanitárias e as autoridades n'um país que recebera apenas nos últimos dois anos 1,4 milhão de refugiados, entre sul-sudaneses, congoleses e burundianos... Os distritos do norte de Uganda estavam apinhados de gente vinda sobretudo da Equatória Central, no Sudão do Sul. Eram cidades pequenas como Moyo, cuja população não chegava a vinte mil habitantes, que recebiam, do dia para noite, milhares de deslocados pela Guera Civil Sul-sudanesa doentes, famintos e, muitas vezes, feridos. Comparada à escassez que deixavam, Moyo tinha hospital e energia elétrica, além das muitas igrejas cristãs que havia Carlos Vinícius entusiasmado Carlos Vinícius em sua primeira viagem. A propósito, havia telefonia celular!

A viagem em si já era uma epopeia: Voo noturno pela South African Airways saindo de Guarulhos com escala em Joanesburgo chegando em Entebbe no meio da tarde do dia seguinte... Podia ser pior, pensavam. Mas, já em Kampala, a África se revelava com toda a sua força e contradição: O fim da estação chuvosa se aproximava deixando lamaçais por toda parte e uma humidade sufocante no ambiente. -- "Enquanto, pela altitude, Kampala tinha um clima algo mais ameno, em Moyo" -- adiantava-lhes o Pr. Carlos Vinícius -- "o clima parecia o de Manaus sem a floresta..." A grande dificuldade era o caminho até Moyo, ou seja, quase quinhentos quilômetros de estradas com toda sorte de pavimentos. Por via aérea, a situação era esquizofrênica... Para aquela região, só havia voos regulares para Juba, capital do Sudão do Sul a cerca de 150km de Kejo Keji e mais 50km até Moyo... Quer dizer, entrariam em território sul-sudanês para poderem chegar ao norte de Uganda, o que poderia até ser útil para reconhecimento da zona onde actuaria o braço religioso da missão não fosse o facto de que, historicamente, a estrada de Juba para Kajo Keji fosse simplesmente intransitável, sobretudo no fim do período chuvoso. Sem falar no estado de insegurança generalizado que a Equatória Central atravessara ao longo de todo ano de 2018. Após contratar seguranças ugandenses e discutir com eles o itinerário, optaram por viajar de Kampala para Moyo n'um comboio de carros, caminhonetes e vans. Júlia resgatou parte dos recursos enviados pela igreja do Brasil -- aos recursos europeus apenas Carlos Vinícius tinha acesso -- e adquiriu, como propriedade da missão, duas caminhonetes toyota seminovas e um sedan usado.

O trânsito em Kampala era caótico, com uma infinidade de ciclistas, motos de pequena cilindrada e pedestres competindo por espaço nas ruas com os automóveis e vans. Praticamente não havia transportes colectivos tal como se conhece no Brasil, sim uma multidão ruidosa de moto-táxis -- as ruidosas boda-bodas... Havia, entretanto, uma espécie de caminhão-ônibus que chamou muito a atenção dos membros da missão. Muito poucos frente ao mar de vans e motocicletas que abarrotavam as ruas, avenidas e largos, estes últimos, verdadeiros estacionamentos em espaço público!

Após três dias em hotel, pegaram a estrada rumo ao norte. Na saída de Kampala, a longa sucessão de bairros pobres e mal urbanizados lembrava muito algumas cidades brasileiras... Em comparação com o Sudão, entretanto, Uganda era um país mais próspero e, sobretudo, acessível por causa da universalidade da língua inglesa e pela tolerância entre cristãos e muçulmanos. Seguiam lentamente o carro guia do missão, dirigido pelos seguranças ugandenses contratados pelo Pr. Carlos Vinícius. Antiga colônia britânica, Uganda seguia a mão inglesa, mas -- graças a Deus! -- não o sistema de medidas imperial. Tirando a estrada principal, as ruas dos bairros periféricos eram quase todas sem pavimentação. A rodovia, aliás, era cerca de um metro mais estreita que as brasileiras, tornando a direcção dos autos
bem mais tensa. Junto aos acostamentos, sem qualquer sinalização, apareciam valas fundas e compridas para drenagem pluvial... Observava-se que, ao contrário dos bairros periféricos brasileiros, os ugandenses não viviam espremidos entre becos e barracos verticalizados. Quase todas as casas, mesmo as mais humildes, eram térreas -- cobertas com os típicos telhados metálicos oxidados das cidades africanas -- e tinham jardins ou quintais! Havia exceções, obviamente, que lembravam mais as áreas de ocupação urbana e conflito de invasão no Brasil: Barracos de tijolos assentados com barro cobertos por telhas quase sem caimento em meia-água, mas, ao menos nos arredores de Kampala, eram mais raros do que em São Paulo ou Belo Horizonte, por exemplo. Era muito comum se topar com igrejas cristãs das mais diversas denominações anexas a casas de família, assim como vendas de víveres ou lojas de miudezas de toda espécies. De quando em quando, terrenos às margens da estrada eram ocupados por grandes sacos de carvão empilhados, visto que os ugandenses pobres não cozinhassem com gás de cozinha, como no Brasil; ou em fogões elétricos, como na Europa.

Assim, pelas janelas dos autos, o país era percebido em suas semelhanças e diferenças sob os olhos atentos do corpo missionário. A pastora Júlia que, viajava n'uma das vans, junto com outros membros, se sentia pressionada pelos atrasos e contratempos de toda espécie que enfrentavam desde que chegaram ao país, afinal, tudo era sempre mais caro e difícil do que planejado. A viagem até Moyo estava prevista para dois dias, mas no primeiro só conseguiram avançar duzentos quilômetros até Kigumba... Trânsito muito lento na saída de Kampala, sucessivos pneus furados e motores superaquecidos foram a ordem do dia. Após confirmar com o carro guia a impossibilidade de trafegar mais do que aquilo, cancelou as reservas feitas para o pernoite em Gulu e, também por telefone, tratou de buscar hospedagem na localidade próxima. Fizeram pousada n'um hotel muito dos modestos, contando com o grande luxo de ventiladores e água corrente. A medida que se afastavam da capital, o país se tornava cada vez mais precário em sua estrutura urbana e Kigumba era pouco mais que um entrocamento rodoviário superpopuloso. Ao fim do dia, sentadas na loja d'um posto de gasolina de beira de estrada, Júlia sentou-se com Tereza e lhe entregou todos os recibos dos gastos enquanto procuravam refazer o planejamento da viagem para o dia seguinte. Ligou para Carlos Vinícius e fez o relato d'aquele dia na estrada e das últimas horas em Kampala. Haviam gasto muito com a aquisição d'aquela frota empoeirada que já dava sinais de fragilidade desde os primeiros quilômetros na estrada de Kampala a Gulu...

Júlia demonstrava preocupação enquanto Carlos Vinícius era só optimismo. De qualquer forma, Júlia precisava chegar ao extremo norte de Uganda com aquele povo todo atravessando um país que se tornava mais e mais agreste. Conversava com os seguranças ugandenses, procurando lhes sondar qualquer obstáculo ou dificuldade n'aquele itinerário que escolheram. Júlia, obviamente, confiava muito pouco n'eles. Tereza, ao contrário, estava mais animada com o transcorrer de tudo e procurava animar Júlia com o sucesso obtido até o momento. Sair d'aquele formigueiro em Kampala e organizar o comboio parecia-lhe um grande feito, mesmo ao custo que fora. As duas se comportavam com total discrição à vista dos outros, sequer viajando na mesma van. Aquelas reuniões contábeis ao fim do dia eram os raros momentos que passavam juntas, dividindo tarefas para o dia seguinte e trocando observações sobre o ânimo dos demais. Tereza tornara-se um apoio inestimável àquele corpo missionário, transitando entre as pessoas com uma liberdade e agilidade que Júlia não poderia se permitir. Era amiga de todos, inclusive dos seguranças ugandenses, procurando aprender o máximo sobre o pais e seus costumes. Embora conhecesse bem os missionários da igreja, em geral era mais reservada com eles que com os profissionais de saúde agregados ao corpo. Júlia e Tereza consultavam mapas e faziam ligações para autoridades ou colaboradores n'aquela base de operações improvisada enquanto a tarde caia bastante abafada.

Dia seguinte, partiram cedo para Gulu, a cerca de 130km ao norte contornando reservas ambientais. Ali, definitivamente, sentiam-se na África. Atravessavam vastas extensões de savanas entre ajuntamentos urbanos cada vez mais rarefeitos e distantes entre si. Após algumas horas dde viagem, chegaram à ponte de Karuma, onde o rio Nilo é chamado de "Nilo Victória" por se tratar d'um trecho do grande rio entre o Lago Victória e o Lago Alberto. Embora Karuma fosse cercada de grandes mineradoras, aquele trecho encachoeirado atraía turistas e aventureiros para uma das paisagens mais conhecidas do país. A travessia pela ponte, contudo, fora meio decepcionante, com uma parada rápida à beira da estrada mesmo, sem explorar os arredores. Após lago Alberto, sempre seguindo para o norte, o rio é chamado de "Nilo Alberto" até chegar em Nimile, na divisa entre Uganda e o Sudão do Sul. Aproximando-se de Moyo, seguindo o curso planejado, o comboio cruzaria novamente o Nilo por balsa em Laropi.

Os guardas ugandenses contaram a Tereza que aquela região havia sido palco d'uma estranha política pública nos anos noventa na qual aldeões e povos nativos foram obrigados a viver em campos mantidos pelo governo. Curiosa a política, porque não se tratava de refugiados, sim cidadãos ugandenses. O norte de Uganda sempre fora a região menos desenvolvida do país, desde os tempos coloniais. O poder central sempre temeu levantes separatistas na região e, de facto, havia mais tensão e silêncio nas paradas que faziam nos postos de gasolina e nos vilarejos que atravessavam. A despeito d'isso, a viagem transcorreu tranquila, chegando a Gulu sem mais problemas por volta do almoço. Embora fosse uma cidade grande e relativamente confortável, Júlia decidira continuar a viagem até Atiak durante a tarde, percorrendo mais 150Km. Os seguranças ugandenses se opunham... Atiak era um lugarejo muito modesto, ainda mais pobre que tudo que já haviam visto pelo caminho e, sobretudo, fora o centro de eventos que envolviam grupos separatistas e uma escalada de violência que por muito pouco não redundou na guerra entre sudaneses e ugandenses, em meados dos anos noventa. Lá tivera lugar um massacre que redundou na morte de cerca de trezentos civis bem como no aliciamento de meninos forçados a acompanhar os rebeldes como combatentes e ainda no sequestro de meninas transformadas em escravas sexuais. Era um povo de feridas profundas atemorizado por ex-guerrilheiros cujo bandismo ainda tornava a região insegura. Deviam atravessá-la de manhã e pernoitar já Moyo para não terem problemas maiores. Mesmo assim, a partir de Gulu, os seguranças preferiam viajar armados nas carrocerias da duas picapes enquanto um dos membros da missão dirigiria o carro guia.

Júlia ouviu os argumentos e concordou. Não podia correr riscos desnecessários e concordava com a dificuldade de permanecer em Atiak n'aquela noite, pois, o plano original previa exactamente pernoitar em Gulu e chegar Moyo no início da noite. Entre Atiak e Laropi, eram cerca de 67Km de estrada de chão e ainda o tempo de espera da balsa com que cruzariam o Nilo Alberto. Já do outro lado do rio, ainda teriam mais 25Km comendo poeira até Moyo. Atrasariam a chegada à base da acção humanitária em um dia, mas chegariam sem sustos. Hospedaram-se em Gulu n'aquela tarde e actualizaram Carlos Vinícius da decisão. Este insistiu para que se adiantassem e contra-argumentou que a realidade em Moyo e em todo o norte só não era mais estável por causa dos refugiados sul-sudaneses em deslocamento pela região, mas Júlia se inclinou pelo posicionamento de seus seguranças. Foram conflitos e tensões como aqueles de Atiak que a fizeram preferir o Sudão em sua primeira viagem à região.

Tomada a decisão de permanecer em Gulu, hospedaram-se no hotel que haviam reservado para a noite anterior e tiveram todos uma tarde livre. Todos, menos Júlia e Tereza que repetiram a rotina de se reunirem com a papelada da missão, notebooks e celulares em qualquer mesa que estivesse disponível para planejar o último trecho da viagem. Decidiram se revezar as duas na direcção do carro guia pelo itinerário de 185km que restava a percorrer. Na retaguarda e no meio do comboio, as picapes com os seguranças armados fariam a segurança das vans, logo, o carro mais exposto seria o d'elas...

-- "Se morrermos, morreremos juntas." -- brincou Tereza. Júlia só olhou.

... e continua ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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