Poemas : 

Era de madrugada quando ma deste

 
Há muito
muito
deste-me a Saudade.

De pessoas,
das rochas quando fui vaga,
da chuva quando fui deserto,
de beijos…

De tudo quanto fui perdendo
no caminho.

Lembro-lhes o gosto,
a sombra,
o gesto,
o grito,
de o ter sentido na pele,
e de que não me esqueço, e com a qual
me aqueço.

Era de madrugada quando ma deste,
a saudade,
coroa
da melancolia.

E desde então,
ainda que ela vigie todos os meus passos,
me guarde no seu peito,
procuro-a,

persigo a sua voz.



Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

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Por regra, não respondo.

 
Autor
Rogério Beça
 
Texto
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/05/2019 13:46  Atualizado: 09/05/2019 13:46
 Re: Era de madrugada quando ma deste
Gosto da palavra saudade. Gosto de sentir saudade. “De tudo quanto fui perdendo no caminho”. Direi também“ganhando”. Perdi tanto. E ganhei tanto. Sobram pedras. Sobra a chuva. Sobra o mel. Sobra a dor e o calor. E a necessidade de encontrar um refúgio, um aconchego. Reinvento o presente, recrio o real. Aglutino nomes antigos. Para que as palavras não envelheçam.
Gosto muito deste teu poema. E é por isso que estou aqui. Obrigada.

Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 10/05/2019 12:18  Atualizado: 10/05/2019 12:26
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
Localidade: Penafiel
Mensagens: 1801
 Re: Era de madrugada quando ma deste
É um poema carregado do enigma da saudade ser casada com a tristeza do mesmo modo que a vida é casada com a morte, numa relação alegre porque erótica, triste, porque de combustão inexorável de impossíveis que não nos deixam em paz.
A expressão matar saudades não é menos difícil de entender mas, como tudo o que é vivo, as saudades morrem e, com toda a impunidade, pode-se matá-las. Já matei muitas saudades, sem querer.

Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 27/05/2020 09:20  Atualizado: 27/05/2020 09:20
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: Era de madrugada quando ma deste
Gosto particularmente do ritmo-embalo deste poema: um ritmo que flui e que vai trazendo as memórias-saudades como vagas, sendo que as próprias estrofes se assemelham a essas vagas pelo seu grafismo curto e variado e, também, pelo que contam.
Destaco este trecho:
“das rochas quando fui vaga,
da chuva quando fui deserto,”

que sobressai pelas imagens poéticas que provoca.
Como vaga, embatemos nas rochas e essas rochas fazem-nos vibrar de um modo diferente porque nos contrariam o movimento inicial, porque nos amortecem. Também as pessoas com que lidamos nos levam a alterar o nosso próprio ritmo, a cedermos parte da nossa Natureza ou, até, a obrigar-nos a uma (nova) forma de afirmação, como um rebentar de uma onda.
Já a imagem do deserto é mais expectável mas, ainda assim, bela. Desejamos a chuva quando a água nos falta, quando nos sentimos ressequidos, quando a fluidez e continuidade das coisas dá lugar a uma aparente pasmaceira desértica, onde tudo se mantém mais ou menos igual. Porque é no fluir que nos alteramos, e porque é no fluir que a vida se tece de fase em fase. A estagnação está mais próxima da morte do que da vida.

Gosto, também, desta sequência variada (e do seu vaga-ritmo):
“Lembro-lhes o gosto,
a sombra,
o gesto,
o grito,”

Bjs