Poemas : 

circo a duas mãos

 
castas aos círculos nos areais
serpentes mudas em forma de deus
fogem às chamas diretas ao cais
de onde partem os teus sonhos e os meus

prestes a sentir febres animais
fartos de julietas e romeus
vamos rastejando p'los matagais
no primeiro encontro há o primeiro adeus

se pudemos viver de possessivos
adiante seremos reféns do nada
é mais fácil fingir que estamos vivos

que avistar ao longe a curva da estrada
e os chacais que fomos estão cativos
seguindo sem destino co'a manada

 
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benjamin
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Enviado por Tópico
ZeSilveiraDoBrasil
Publicado: 19/02/2022 13:50  Atualizado: 19/02/2022 13:50
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 Re: circo a duas mãos
"se pudemos viver de possessivos
adiante seremos reféns do nada
é mais fácil fingir que estamos vivos"


Ao meu sentir, daria como concluso o poema na estrofe acima, mas não; há muito mais de implícito à poesia verdadeira no bojo do soneto ora abstraído do meu pequeno olhar! Obrigado!
Um abraço caRIOca!


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 20/02/2022 06:20  Atualizado: 17/06/2023 05:32
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: circo a duas mãos
Este caçula está com uma maioridade difícil, e prazeirosa, de acompanhar.
Antes de começar no poema e no texto, quero que os leitores se lembrem ou, pelo menos, reparem a data em que foi publicado.

O dia de São Valentim tem muito que se lhe diga, e o sujeito poético deste poema coloca-nos na difícil posição de desconhecermos, sem sombra de dúvida, o que ele acha da data e do que se comemora.

O autor não tem o hábito de nos dar sonetos a ler.
Formalmente, parece uma incongruência, mas um antigo utilizador do site ensinou-me que o soneto tem raiz etimológica igual a sono. Será que o tema dá-lhe sono?

Ao ler o título, começamos logo por entrar num universo amargo e irónico. O circo é um local de entretenimento centenário.
Tem palhaços, pobres e ricos. Tem malabaristas (eu com 3 bolas ainda faço umas gracinhas, com mais é uma palhaçada), trapezistas (há uns, os sem rede, que devem conhecer os hospitais do país bastante bem), feras cheias de drogas, para não comerem os tratadores\donos; contorcionistas (sou um pouco, no trabalho tenho muita flexibilidade), etc...
A expressão “tu gostas é de ver o circo a arder” é usada enquanto noção de caos, ou confusão extrema. Quando o Circo é escrito a maiúsculas, quando o autor não liga muito a rigor e adora intenção, tem muito que se lhe diga.
É, pelo menos, um circo para o grande, penso.

No dia dos namorados, vemos as duas mãos pelo menos de duas maneiras: ou são dois, e cada um dá (ou não) a mão a outro. Ou é, apenas, um\uma.
Tem de ser o leitor a escolher, e isso eu não posso fazer por ninguém, a não ser por mim.
Se forem duas pessoas, há duas mão em falta para fechar o circulo que um par faz.

Imageticamente, um frente a outro, mãos nas mãos, faz uma espécie de círculo.

Deixando o circo entregue ao apresentador, começamos com a primeira estrofe.

No primeiro verso: “castas aos círculos nos areais...” reparo que o círculo, que também é a forma e a raiz de circo, é uma expressão de movimento.
O circular, é não sair do lugar. Fazer o mesmo circuito (também terá a ver?) na areia, é um caminho muito instável. As areias movediças, por exemplo, engolem pessoas.
A areia também é consequência da erosão de minerais maiores.
Como piso, deveria ser um nome coletivo, tão enorme é o seu número de grãos num areal, comparável ao de estrelas no céu.
Assim, para mim, o areal é também um símbolo de infinito bastante original.
A castidade, que a primeira palavra indica, misturada com o circo que está no título, parece de imediato uma antítese.

Há uma ironia latente, que rebenta no segundo verso.
“...serpentes mudas em forma de deus...”
Protagonista-mor do pecado original da Tora, a castidade é atribuída às "...serpentes...".
E o caldo que já parecia ferver, entornou, e ainda estamos na primeira palavra do segundo verso.
Há uma doce ambiguidade nas “...mudas...”. É de conhecimento geral, que as serpentes mudam de pele sazonalmente e, sobretudo, quando estão em crescimento.
Como diria Camões, num dos seus mais belos sonetos, “ ...mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...” e como tão bem esmiuçou Ovídio nas "metamorfoses", até de um dia para o outro (ou do dia para a noite), nada permanece.
A ambiguidade é no emudecer. A alusão ao silêncio imposto é muito violenta. Entre o verbo emudecer e mudar, já andei a brincar um pouco, saiu poema fraquinho que dificilmente publicarei aqui. O silêncio no mutismo, não é uma escolha.
Há uma insinuação de falta de escolhas que parece pouco visível.
O forma de Deus pertence ao Homem. Então, que serpentes são estas?
As serpentes têm muitas formas e raças. As formas mais perigosas são as venenosas e as constritoras. Gosto mais das segundas, embora não adore jibóias.

Mas, apesar de elas estarem aos círculos, no terceiro verso “...fogem às chamas diretas ao cais...”.
O fogo do inferno, e do pecado, regressa e embora tenha vários amigos lá, eu não acredito sequer que exista.
O "...cais..." é mais uma partida do sujeito poético, pois é uma conhecida imagem de abrigo, mas também é do verbo cair, na segunda pessoa do singular, presente do indicativo. Para efeitos de narrativa, vou escolher o primeiro.
Depois do supracitado “...areal...”, haver um “...cais...” cada vez mais parece haver uma praia (estranho, porque é uma conjugação paradisíaca). A indicação “...ao cais...” parece também ser algum específico. Podia ter escrito “...fogem às chamas diretas a um cais” que teria um sentido mais lato.

Comportamentos muitos suspeitos, para “... serpentes...”...

A segunda estrofe perde um pouco de fulgor, mas não era fácil manter a toada.
Agora, terá ganho algo?

O primeiro verso é uma clara alusão ao cio.
No segundo, o sujeito poético pega em Shakespeare e estradalhaça o amorzinho fofinho e enjoadinho que sabe tão bem, com um poderoso “...fartos de julietas e romeus...”.
Reparem que, no verso, os nomes próprios do conhecido poema estão escritos em letra pequena.
Há algo de sórdido nisso. Há uma desvaloração das personagens. Desse tipo de amor, que nunca chega à cama.
A crítica à corte, e à sedução, parece mais clara agora.
O terceiro verso, faz uma ligeira alteração do sujeito poético.
Ao optar pela primeira pessoal do plural, há uma forte moral associada. Um mea culpa.
Com mestria, somos levados ao chão e a comportarmo-nos como as cobras, e para os “...matagais...”, um local conhecido nos meios rurais (e não só) para o pecado de comer a maçã de Eva.
E sim, como tudo na vida, a segunda quadra acaba, com um aforismo quase brilhante.
Certo como o destino : “... no primeiro encontro há o primeiro adeus...”, é só ler.

Acabámos a parte do soneto das duas quadras, em rima cruzada em ais e eus.
Curioso, certo? Os ais, são gemidos, os eus é o esforço egoísta (de procurar, por exemplo, o orgasmo).
A métrica, ao decassílabo, mostra o rigor de sonetista, que este autor mostra, agora, também ter.


No primeiro terceto, o tom passa a ser assumidamente sério. Quase de aviso.
A crítica é começada, e procura um jogo temporal presente-passado muito agressiva, mas, como a serpente, com algum veneno:

“...se pudemos viver de possessivos
adiante seremos reféns do nada...”

Isto é, as relações patriarcais sempre foram marcadas por disfuncionalidades, como o ciúme, como a paixão, como a violência doméstica, entre outras em que a posse do outro é um elemento chave. Um tipo de escravatura, em papéis assinados em casamentos, consentido, é certo, mas nem sempre sabemos ao que vamos.
Mas sabemos que, duma forma geral, tudo o que temos é passageiro.
Só sobrará o pó.
Que usufruto fará um faraó morto das riquezas que tem numa pirâmide?
Interessante a inclusão de reféns no segundo verso, que determina estarmos na posse de alguém...
A personificação da posse quase aparece...
O terceiro verso parece a despropósito, mas ele é a ponte para a estrofe final.

E sim, concordo.
Mais vale "...fingirmos que estamos vivos...", apesar de estamos vencidos pela monotonia, do que aceitarmos a certa morte, o cabal fim.

Os últimos dois versos, determinam também isso. Que quando se perde a novidade, dificilmente se volta a ganhar, por isso,
“...e os chacais que fomos estão cativos
seguindo sem destino co'a manada...”

No sentido em que não há heróis, apenas a sua ilusão, que temos o dever e o direito de fabricar...

Muito obrigado por mais uma leitura que me deixou perto do êxtase...