Poemas : 

vácuo: uma história de amor

 
hoje apago a poesia

antes já tinha desaparecido
com o dia e a noite
com o firmamento e
as águas
com todos os seres e
com a mão que me ofereceu
a primeira bofetada

é este o momento de admitir que
desesperadamente cri
eis o princípio da infância
o princípio do pecado

porque houve um tempo em que
as palavras chegavam
fogo pelas várzeas
enquanto eu hesitava entre
o sopro e o cuspo

a balbuciar
qual a melhor altura
para começar a sofrer

eu que sempre escrevi dentro
de quem usa chuço na morrinha
com o cinto sobre a camisa
uma criança
com medo da pica

fui o crime
de um cabo elétrico
traçado
que tem em si
absurdamente o amor
a dor e a inútil
idade

assim a estrofe que me resta
recua
letra a letra
para o vazio

já falta apagar pouco
descanse o
"pregador das verdades dele"

falta o silêncio

o silêncio

a rainha triste
despida em musa coxa
apalpada por versinhos
de pé quebrado

onde estás
onde estás que amanhã serás minha?

 
Autor
benjamin
Autor
 
Texto
Data
Leituras
827
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
14 pontos
2
2
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 11/01/2022 09:14  Atualizado: 12/01/2022 09:43
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1932
 Re: vácuo: uma história de amor
A chegada ao vazio é uma procura, ou um estado que é contrário à poesia, e já agora, ao amor.
A não-vida.

O primeiro verso é hilário.
O sujeito poético começa o poema (levando-nos a crer que o escreve, uma vez que haverão mais versos que a mancha gráfica comprova) dizendo que "Hoje apago a poesia...". Não sabemos se a que escreveu ou se a que leu, embora deduzamos o primeiro caso. Além disso, a POESIA, a sensação do poético, pode ser ao que se refere.

Antes de apagar a poesia, faz desaparecer "...o dia e a noite...", acabando com as referências mais básicas do tempo, "...com o firmamento..." referência máxima de espaço.
Gosto da expressão "...já tinha desaparecido com..."
A segunda estrofe acaba com menção a uma figura paterna por definir. Não há adultícia pior que aquela a que chegamos e em que matamos os pais dentro de nós, os deixamos de deificar, os tornamos nossos pares.

A terceira estrofe é a confissão do sujeito poético ao direito à infância perdida, e enuncia "...uma verdade dele...": "...cri...". O credo é uma inquestionável prova de juventude, que vai esmaecendo.
E do "...pecado...". Tem tantas e tantas formas, sob tantos parâmetros e filosofias...

As estrofes seguintes (4,5 e 6) são a continuação do elogio, cheias de formas e versos com uma linguagem bem estruturada e provocadora.

Há qualquer coisa de delicioso na
"...inútil
idade..."
pois é ela que nos tira a infância, "...o fogo pelas várzeas..."
traz conhecimento, a auto-confiança\segurança que nos falta antes,..
Mas a inutilidade, que a quebra de verso permite, é mais um momento de génio.

E assim que o "...silêncio..." chega ao papel, aparece a forma mais pura de vácuo, disponível a quem respira.
Que é anunciado como rainha, musa, e o sujeito poético continua apagando o que pode vir a ser o início de mais uma história de "...amor...".


Tens vindo a escrever poemas magníficos, mas com muitas camadas, belas figuras de estilo, que não são fáceis de comentar como eu gosto. Além da minha absurda falta de inspiração.
Obrigado pela leitura