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22ª foto – A crendice

 
A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas até se esgotar o sangue e o reflexo. O asfalto da rua principal estava ensopado e, além da ignorância, não havia nada que explicasse aquilo.
A lua, na noite anterior, tinha desaparecido do céu e as gentes tinham deixado fugir a razoabilidade, refugiando-se nas palavras alucinadas de um ancião eremita que se escondia com os lobos, longe da população... vá-se lá saber porquê, só aceitava como iguais os animais.
Naquela noite, o velho, aparecera na taberna da Rosa e tinha emborcado uns tintos... alguns a mais do que a conta. Soltou a língua de uma forma que assustou os presentes e alvitrou que o mundo ia acabar. A premonição tinha contornos de real, o homem foi eloquente e deixou margem para a imaginação popular. Gritou, para cima das mesas que se deveriam sacrificar os não pensantes, que os céus exigiam sangue e que o iam conseguir de qualquer forma.
As pessoas, que sempre, por natureza, foram impressionáveis e acreditavam nas vozes grandes, não duvidaram de tal orador e reuniram-se de barriga encostada ao balcão... medo! Estavam todos apavorados e crédulos no desejo anunciado dos céus. Durante aturada discussão, surgiu um "Se tem que se sacrificar algum bicho, que se matem as galinhas".
Trôpego, o arauto, deixou a taberna envolta em murmúrios e seguiu para a sua clausura. Desapareceu ao fundo da rua e, nesse momento, iniciou-se um eclipse. A lua diluiu-se na noite e do medo da mol fez-se pânico. Gritos, orações, choros, desmaios espasmáticos, promessas, almas desalmadamente abertas... pânico verdadeiro.
A lua voltou já perto da madrugada.
A população excitada correu para os galinheiros de faca em punho, de olhos esbugalhados e com os cantos da boca húmidos de branco pastoso.
O cacarejar estridente e aflitivo dos animais nasceu com o dia.
Começou-se a sentir o odor enjoado do sangue. A crendice molhou a aldeia de vermelho vivo. Havia um mar de galinhas degoladas a correr desvairadas. Uma a uma lá foram tombando esvaídas.
O amanhecer abriu de olhos limpos mesmo por cima da aldeia.
As gentes, extenuadas, arrastaram-se para as portadas das suas casas, entre lamentos velados. A rua pricipal da aldeia espreguiçou-se pejada de aves mortas. Começavam a aparecer as moscas.
A população desapareceu dentro das suas casas. Silêncio absoluto. Nem vento. Tudo dormia.
No limiar da aldeia surgiu o eremita. Sorria. Aproximou-se desenrolando um saco enorme e começou a enchê-lo com os cadáveres. Encheu-o de tal forma que mal o conseguia arrastar.
Amarrecado e em esforço mas satisfeito, o velho afastou-se e juntou-se à sua matilha de lobos. Em silêncio, partiram, enquanto a gentalha dormia cansada e iludida.
Em silêncio, partiram sem olhar para trás. Lá para a frente, noutro ponto da idade, haveria outro medo qualquer para agarrar.

Valdevinoxis



A boa convivência não é uma questão de tolerância.


 
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Valdevinoxis
 
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Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 16/05/2008 23:48  Atualizado: 16/05/2008 23:48
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Mensagens: 1801
 Re: 22ª foto – A crendice
Valdevinovix,

comecei a ler e, do princípio ao fim, apesar da densidade das imagens, foi crescendo a minha atenção e o meu interesse pela narrativa, que permite extrair pelo menos uma "moral da história", mas que, com ou sem moral, é esplêndida.
Parabéns!
Abraço.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/05/2008 00:48  Atualizado: 17/05/2008 00:49
 Re: 22ª foto – A crendice
Manuel, belíssimo texto, e digo-te porquê.
Misturaste de forma mágica os ingredientes, os planos, fizeste o leitor repensar.
A moral, a crendice.
Espelhaste de forma limpa na narrativa e com contornos sublimes de generosisade, a ténue fronteira entre o real e o sonho, o pensado e o acreditado.
E acredita que os teus lobos se alimentam de carne, talvez de caldos de galinha...
Gostei imenso Manel. Imenso.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/05/2008 00:56  Atualizado: 17/05/2008 00:57
 Re: 22ª foto – A crendice
Se tiveres a quem alimentar, caso sejas um eremita, arranjes bastante ouro, ou invente uma boa estória para o povo acreditar.
Coisa que o poeta muito bem sabe, pois com essa tua estória "doida" me fizeste aqui parar.
Parabéns Val, meu abraço amigo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/05/2008 07:59  Atualizado: 17/05/2008 07:59
 Re: 22ª foto – A crendice
Texto com muito fôlego e estofo que me faz pensar num sofá de pele da Rússia que havia numa academia que frequentei e que soprava quando alguém se sentava. Mas também me trás à memória Sartre e Camus, por ideias destintas.O texto é esplêndido, criativo. Mas atenção: o pior da crendice não está nas aldeias, no mundo rural, nem nas pessoas simples. Está nas grandes metrópoles, na web ( que amanhã faz anos)e, nos intelectuais, e, sobretudo nos centros de poder que desgovernam o munso.Abraço

Enviado por Tópico
isabel santos
Publicado: 17/05/2008 16:53  Atualizado: 17/05/2008 16:53
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 Re: 22ª foto – A crendice
Narrativa espectacular...