Poemas : 

Nômade de Fumaça

 
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Hoje pensei em não levantar.
Fiquei deitado ouvindo o tique do relógio,
vendo o teto repetir a mesma mancha.
A vontade era de me dissolver ali: lento, sem alarde.

Levantei porque a fome tem voz de comando.
Acendi o primeiro cigarro como se acendesse uma desculpa.
Fumaça sobe, curva, some — e eu fico olhando
como se ela levasse um pedaço do meu peso.

Tem dias que meu corpo é uma cidade vazia.
Ando pelas ruas com rosto de quem perdeu o mapa.
As pessoas passam — luzes, passos, som —
e eu me pergunto quando foi que deixei de me reconhecer.

Há feridas que não sangram, só doem por dentro.
A depressão é isso: um cômodo que tranca você
e insiste em aumentar a escuridão aos poucos.
Fico ali, contando as coisas que não têm importância,
inventando pequenas brigas com a parede.

Mas também tenho coragem.
A coragem de continuar mesmo sem rumo,
de escrever quando a mão treme,
de sair de casa sabendo que talvez eu volte inteiro, talvez não.
É uma coragem suja, feita de teimosia e de restos de noite.

Já me afastei de quase tudo que poderia me salvar.
Fui buscando coragem em copos e em pó,
achando que a dor poderia ser domada por um silêncio químico.
Não abriu portas — só fechou janelas.
Aprendi doer em novos idiomas e sentir falta de mim.

Escrever virou um gesto de sobrevivência.
Coloco palavras no papel como quem estanca um corte.
Não espero aplauso, não quero mármore — só quero que a linha diga:
“ele passou por aqui”.
Se alguém encontra esse rastro e entende, tudo compensa.

Há dias em que rio alto por nada —
o riso é remédio que não pede receita.
Às vezes a alegria entra assim, sem aviso,
um soco de luz no peito que te lembra que ainda respira.
Esses instantes me salvam como moedas jogadas numa máquina velha.

Tenho medo de ser invisível.
Medo de que minhas coisas se dissolvam em rotina,
de que as palavras que escrevo desapareçam num fim de semana qualquer.
Por isso deixo rastros: frases curtas, bilhetes no bolso, um papel amassado.
É meu jeito de gritar sem barulho.

Às vezes penso em me acabar de vez.
Sento e penso — e o pensamento vem como tempo cruzado:
é culpa, é medo, é preguiça de explicar.
Mas sempre encontro um motivo barato para ficar:
um verso que não acabou, o cheiro do café, a luz da rua que entra pela fresta.

Hoje escrevo para dizer o que não contei:
que sou frágil, que gosto de coisas simples,
que preciso de alguém que diga “tá aqui” sem muito alarde.
Não quero que salvem minha história — quero que a leiam.
Quero que saibam que eu tentei, e continuo tentando.

Sou nômade por dentro: mudo sem sair do lugar.
Sou fumaça porque me espalho e quase não fico.
Mas tenho madrugada, tenho fósforo, tenho palavra.
Enquanto houver um fósforo, acendo; enquanto houver palavra, escrevo.

Se eu sumir, que sobre o preciso:
um pedaço de papel com uma frase minha,
um cheiro no casaco, um rastro de fumaça.
Que não me esqueçam por completo — não peço muito.

Termino esta página com a mesma mão que tremia no começo.
Fecho o caderno sabendo que amanhã a dor provavelmente volta,
mas também sabendo que ainda existe algo que me puxa pra frente:
a teimosia de quem insiste em ser testemunho de si mesmo.

Sou chama curta.
Sou resistência miúda.
Sou um nômade com atlas de fumaça e vontade de ficar.


Kaique Nascimento


 
Autor
KaiiqueNascimentto
 
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