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Terça-feira, noite e a primeira de 1994

 
Terça-feira, noite a primeira de 94
Chove desde as primeiras horas do dia, acordei simbolicamente as três para urinar e cair na madorna, sonhar algo futurístico numa São Luis futura – hordas de maltrapilhos e desesperados em busca de alimentos, descem alucinadamente alcoolizados e drogados arrastando as pessoas e tomando-lhe tudo que eles tiverem.
- A horda já passou? – é um tema de um romance que um dia desenvolverei, assim como “Além das Nevoas Azuis” – talvez semana que vem estarei desocupado do atelier e poderei ter tempo para trabalhar em cima desse projeto. Muitos poucos conseguiram alcançar o seu real lugar. Sinto nas minhas entranhas que a literatura, a prosa latejam no meu intimo desde a minha adolescência na Casa 503 – um trabalho que tenho que preparar e mostrar ao mundo, a vida familiar de secolo XX numa cidade como São Luise por ai adiante – ontem na Loja de Van iniciei a segunda parte de “Além das..” mas a preocupação com a preparação da encomenda do padre, a ameaça de seu emissário contra Karl que encontrava-se silenciosamente preparando a peça a ser soldada no carro de mão de seu Black White, um negão de olhos esbugalhados, malicioso, peixeiro do Mercado Central, velho conhecido dos meus manos que me contaram um detalhe importantíssimo da vida conjugal dele, a chegada em casa empunhando uma peixeira de 14 polegadas a e xuxando no vazio da cama e de outros utensílios em busca de um ai para identificar um ‘ricardão’ e poder empana-lo de faca, só desconfiando de pé de pano.
- Isso já é uma molecagem, quatro meses e nada. Nunca mais dou trabalho para vocês. Vocês amolam e atrasam-me todo. Quatro meses – reclamou Pau Mole, o emissário do Padre da Igreja do Carmo.
Tio Berilio ainda foi chamar-me na Honoria.
- Seu mano tem um homem que quer falar contigo lá na oficina. – Apressei os passos e ele acompanhou-me mas devagar. Tentei adivinhar quem era, deliciei-me com a ideia de que poderia ser o Master Ialdo, que seria bem-vindo. Mas o meu lado astucioso avisou-me: - Vai devagar – acautelei-me até visualizar o enigmático visitante que tanto desejava ter uma audiência e ao definir a imagem de costa de Seu Paulo Pau-Mole em pé na porta, com as mãos nos quadris, percebi que a minha presença em nada serviria. Tratei de bater em retirada, dando uma volta sobre o eixo e fazendo sinal para Tio Berilçio:
- Diz que não encontrou-me – e apressei-me o mais rápido possível, até contornar o canto do Motel Santo Onofre e sentir-me segura no bar de Dona Honoria. Disfarçando meu medo, o mesmo que corroem as minhas vísceras numa noite nervosa e angustiada – são coisas que não merecem transcrição nessa noite fria. Dona Alexandra na sala de visita, a sua irmãzinha na de som, eu na de jantar e Van e Dudu deitados ambos nas suas respectivas cama e berço. Os pingos ecoam ao baterem nas folhas do pequeno jardim da frente. O vazamento chato do aparelho sanitário. A hesitação entre enrolar ‘unzinho’ ou não, preparar uma merenda ou não? – A temática principal continu a busca certa das palavras. Cheguei a confirmação solene e pessoal ao dizer para Karl que a literatura estava na minha alma desde a inocente idade dos meus doze anos, quando contei a mamãe que escrevia uma novela, e ela falou para o Papai que retransmitiu ao seu colega e vizinho, o também comerciante Alonso rabelo, que incentivou-me a escrever e se não me engano cheguei até gaguejar uns garranchos que havia escrito num talão de notas fiscais terceira via. Tudo começou dai e assim veio Dostoievski e Dickens no belicismo “As Aventuras do Sr. Pickwick – a viagem a Pirapemas onde escrevi a minha primeira peça de teatro “Um erro jornalístico” – o trama passa-se numa redação de um jornal, onde todos funcionários, resolvem tirar um sarro da cara do editor chefe dizendo que não havia notícia de espécie nenhuma, o homem acabou acreditando e morreu de um ataque cardíaco e por ai vai..
Num certo intervalo preparei um delicioso sanduba de legumes naturais – ervilhas, cebola, ovos cozidos fatiados em rodelas.. o segundo é preparado com os mesmos ingredientes, só não mostarda. É bem deglutindo, sinto a pança estufar-se. Vou dormir, um cansaço bem lento açoita-me com preocupações vis e sem nexos, tal como não entregar o serviço do Padre e outras asneiras, o pensamento concentra-se na luta dualística, polarizada entre o bem e o mal, apertas ou não apertas? É um martelamento louco de desejo como um vulcão estivesse pronto a entrar em erupção, finalmente a amalgama da minha existência materializa-se em forma de contos que contam a vida dessas pessoas simples que conheço e das bebidas aos desnaturados mentais – Tio Berilio é um deles.
Aperto o segundo, tranquilo agachado debaixo do pé de coqueiro, os pingos amortecidos nas folhas não atingem o meio do meu pé. Enquanto deliciava-me solitariamente, embevecido com a ideia obsessiva de que tenho que construir o meu estúdio, onde poderei dar vasão aos meus projetos literários. Mas o desanimo vem novamente. Os pingos engrossam e as paredes externas porejam - leio Bohumil Hrabel e seu irrequieto garçom tcheco em “Eu servir o rei da Inglaterra” .
O dia nebuloso, mas muito bom financeiramente, ganhei meu primeiro cruzeiro real que abriu uma serie de cruzeiros reais. Tomei um bom banho de chuva de manhã bem cedinho e parti num ônibus para o centro e os pingos intensificam-se.


 
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efemero25
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