Crónicas : 

Não sei escrever sobre o amor,

 
Não sei escrever senão sobre o amor, lamechas, confidente, pensado e louco, violento na sua amargura, perfeitamente doce e simétrico nas horas das mãos dadas e das palavras caladas que tudo dizem. Remeto-me ao inconsciente das palavras que procuro e percebo como é mais forte a ausência do amor.
Há uma continuidade no sofrimento do explicável, a sensação do vazio de quem não tem, a angustiante e agonizante revolta do que vemos e não temos, a revolta de não querermos daqueles que nos gostam e de querermos sempre de quem não nos gosta.
O Amor tem um Q maiúsculo agarrado, um Q de querer, de posse, como um alfinete de dama, pronto a não se deixar cair, nem a ventos nem a borrascas. O amor transforma-nos em fidalgos abastados, possuidores.
O nosso amor tem muitas vezes a figura dos rendeiros, que nos enchem e nos alimentam, e ao qual nada mais damos senão o coração para que o cultivem e reguem e façam brotar o trigo e o centeio verde, que logo se faz louro e pão e vida.
Por vezes detesto o Amor, de tão rigoroso e missionário, de tão verdadeiro. Como por vezes seria melhor apenas o sexo, apenas a carcaça que se usa ou se evita, apenas a vontade irresistível de despir e vestir quem por nós passa. O Amor assassina os voláteis e cobra à paixão, anos de escravidão, chama-lhe puta e vaca e não a deixa passar da porta. A paixão dorme no celeiro, com o cheiro das bestas, e o odor das saias de roda ainda quentes que se baixam quando o barulho de quem chega, surpreende e descobre.
O Amor é demasiado sério, é feito de carne e sangue e cheira aos neurónios afogados em entendimento e compreensão, em visões que mais ninguém percebe, em sons que nunca ninguém escutou.
De repente há palavras que passam, que me pressentem e viram os narizes apenas para dizer que passam. Vão para o colóquio no sítio mais fino da cidade das letras, levam com elas os textos sérios e importantes sobre o resto da vida. Comigo, bebendo um copo, acachapados nessas cadeiras de verga, sobre uma mesa de metal velha e enferrujada, ficam os versos lamechas, lavados na sabonária dos instintos, mal pensados, sem dormir, que me enchem esta vida, onde nunca consigo falar de Amor.


Jorge

 
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JB
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Enviado por Tópico
vandapaz
Publicado: 13/10/2008 18:20  Atualizado: 13/10/2008 18:20
Membro de honra
Usuário desde: 22/11/2006
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Mensagens: 576
 Re: Não sei escrever sobre o amor,
Lamecha

Este foi de uma vez só?

Beijos

Enviado por Tópico
20dizer-isso
Publicado: 13/10/2008 18:27  Atualizado: 13/10/2008 18:27
Muito Participativo
Usuário desde: 12/10/2008
Localidade: Aracaju-SE
Mensagens: 76
 Re: Não sei escrever sobre o amor,
d+++

Enviado por Tópico
Amora
Publicado: 13/10/2008 21:18  Atualizado: 13/10/2008 21:18
Colaborador
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Localidade: Brasil
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 Re: Não sei escrever sobre o amor,


"De repente há palavras que passam, que me pressentem e viram os narizes apenas para dizer que passam."

Não digo incrível o teu texto porque acredito que podes escrever maravilhosamente bem sobre qualquer coisa.

E eu escrevo-te um beijo.

Amora

Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 13/10/2008 23:14  Atualizado: 13/10/2008 23:14
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Não sei escrever sobre o amor,
Haveria muitas frases a sublinhar por aqui, mas escolhi estas, que muito gostei:

"Por vezes detesto o Amor, de tão rigoroso e missionário, de tão verdadeiro. Como por vezes seria melhor apenas o sexo, apenas a carcaça que se usa ou se evita, apenas a vontade irresistível de despir e vestir quem por nós passa. O Amor assassina os voláteis e cobra à paixão, anos de escravidão, chama-lhe puta e vaca e não a deixa passar da porta. A paixão dorme no celeiro, com o cheiro das bestas, e o odor das saias de roda ainda quentes que se baixam quando o barulho de quem chega, surpreende e descobre."

Excelente JB! Excelente!

Beijinhos