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Histórias de Camacupa e outras paragens da vida (1º Episódio)

 
Vai longe e frio o tempo em que do meu jardim brotavam flores. Não fora a tempestade que levou essa pomba branca para outras paragens e seria ainda Verão no parapeito da minha janela.
Era criança, brincava à chuva, mas guardo esse sonho. Assim como guardo aqueles em que a minha cama resolvia voar a meio da noite até ao alto de um prédio muito alto. Ficava furioso quando acordava antes dela bater no chão.
Fica acordado cinco ou dez minutos (pareciam!) e depois tentava retomar outra vez o sonho. Em vão…
Houve tempos em que a minha janela se abria para uma imensa savana africana e cheirava a catinga e a capim.
E estava aquela pomba pousada, quieta no ar, pregando paz.
Ora o calor, ora a trovoada dos trópicos, pintava o céu da mesma cor de um ovo de porcelana que havia lá em casa.
Era nesses dias que a minha mãe resolvia evocar lembranças e passávamos tardes a ver fotografias da metrópole. Dos avós e dos tios e dos primos que conhecia mas não me lembrava.
E se o meu pai saía a cortar picadas pela selva… Ah…. Então, lá íamos nós (eu e o meu irmão) dormir na caminha dos pais.
E ouvíamos histórias de adormecer e de medo. Quietinhos adormecíamos à espera que o meu pai chegasse no outro dia com uma prendinha.
Tomara que amanhã fosse um dia límpido. Assim podia sair pelo eucaliptal e ver os serradores de madeira e cheirar a madeira e o ar. E podia afagar a Laica, uma cadela pastor-alemão, sofrida depois de um ataque de um enxame de abelhas. Pobre.
Houve um dia em que fui ao cinema. Não lembro o filme. Sei que era um daqueles filmes de cowboys em que no fim ele morre e ela casa com o cavalo! Seria?
Sei apenas que o Josué, vizinho, nos levou, a mim e ao meu irmão e para não variar fomos à bulha o caminho todo. Sofreu um pouquito. Era o mais novo.
Lembro também quando o Josué, me disse que o buraco pequenino, negro, que havia a meio do pano do cinema de Camacupa tinha sido fruto de um tiro de um cowboy num filme que passara quando ele era miúdo.
Acreditei e esse foi o meu mal.
Esta história começa a uma segunda-feira, algures por 1973 ou 1974, quando fiquei em casa doente. Negava-me a sair de casa e a ir à Escola (aliás Pré-Primária), depois de ter visto no Sábado anterior o meu segundo filme: um filme sobre a Guerra do Vietname. Confesso que nem sei bem se foi um filme ou um daqueles documentários que passavam antes do filme da sessão (a preto e branco).
Fiquei traumatizado… (continua)
 
Autor
Raul Cordeiro
 
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Enviado por Tópico
profeta
Publicado: 17/12/2008 11:32  Atualizado: 17/12/2008 11:32
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 Re: Histórias de Camacupa e outras paragens da vida
Raul,só quem viveu em África pode perceber os tambores ao longe dessas memórias tão perto...
Estudei nos maristas de Silva Porto,enamorei-me de Benguela,e convivi com esses sabores de Camacupa...Talvêz por isso entenda bem os sonhos hoje da criança que brincava à chuva d'um tempo longínquo e frio onde brotavam flores de savanas bordadas a catinga e a capim...
Uma viagem de sonho por entre os "camacouves"das nossas savanas de solidão...nos trilhos deste escrito primoroso!
Espero que vivas sempre Raul com esse menino que continua a brincar à chuva da tua alma...