Crónicas : 

UMA PEQUENA NOTÁVEL

 
Ontem, contrariando todas as previsões meteorológicas, houve uma bela noite, sem chuva. O céu pipocado de estrelas contrariava todo o noticiário recente. Eu ia pela rua deserta a passos moderados, sentindo o sopro da brisa a beijar-me o rosto. Ouvia ora as conversas e os risos dentro das casas enfeitadas por centenas de luzinhas piscantes nas fachadas, ora o estouro longínquo de algum fogo de artifício. Caminhava mecanicamente. Na verdade preferiria ter ficado às voltas com as fogueiras nazistas onde os livros e tralhas judias eram incinerados em alguma praça de Munique. Foi difícil ter que entrar no banho deixando a companhia de uma excelente leitura para trás. De bom mesmo agora, só a brisa contrária à minha trajetória. Quando o portão da casa de minha prima fechou atrás de mim, iluminaram-se alguns sorrisos na varanda e tornaram-se ainda mais reluzentes após o meu: _ Boa noite! Feliz natal a todos. Dentro da casa, depois dos costumeiros cumprimentos, revezava-me entre conversas, petiscos e uma boa cerveja gelada, enquanto Ed Motta cantava um antigo sucesso do Tim no telão montado num canto da ampla sala de visitas. Quando se aproximou a meia-noite, alguém pediu para que fizemos um círculo e nos déssemos as mãos afim de fazermos uma oração. O Pai-nosso foi saindo forte num coro de vozes
sentidas. Soava diferente dos outros “pai-nossos” do ano todo. Terminado, Senhor Marcos tomou a palavra e nos presenteou com um pouco da sua experiência de vida falando sobre o perdão e a importância dessa atitude no nosso dia-a-dia. Quando todos, após as palmas, já começavam a dispersar, uma voz soou forte iniciando um belo canto que falava da importância daquela noite. A noite de nascimento do menino Jesus. O canto vinha de uma pequena senhora que pouco se fizera notar por sua discrição e timidez. Era uma voz maviosa e de uma poderosa extensão melódica. Fechei os olhos e pude sentir as notas retumbando pelas paredes da sala, descendo as escadas até o andar inferior, rodopiando pelo pequeno jardim lateral até ganhar a rua e passear por sobre os paralelepípedos, subir sobre as árvores e adentrar as casas vizinhas. Pude senti-lo retroceder no tempo até outros natais na casa da minha saudosa avó Petrina, passear pelos lamacentos campos de futebol aonde eu adolescente corria desembestado atrás da bola, arfando felicidade. Depois o canto retrocedeu mais ainda pelo tempo, rasgou a história toda até descansar manso naquela velha gruta onde algumas pessoas presenciavam a chegada daquele que, até os dias de hoje, continua a ser a chama da nossa esperança. A pequena senhora interpretava a canção com toda sensibilidade possível e eu viajava através desse canto. O silêncio simultâneo a esse cantar era sepulcral. As almas todas ali estavam sobre a forte influência daquela linda melodia que a todas elas envolvia. Após o canto todos aplaudiram e voltaram ao desenrolar da festa natalina agora sob a voz de Barry Gibb do Bee Gees e as imagens da famosa dança de John Travolta nos “Embalos de sábado à noite”. Não pude deixar de ir ao encontro da pequena senhora e abraçá-la dizendo-lhe da beleza de sua voz que me fizera lembrar a “divina” Elizeth Cardoso, que tanta falta faz à música popular brasileira. Ela me agradeceu dizendo que era mesmo fã de Elizeth e que se inspirava nela quando cantava. Foi uma ótima noite. Tivemos uma ceia farta regada por bons vinhos e acompanhada de saborosas sobremesas, mas nada, nada mesmo havia sido como aquele canto. Todos nos fartamos com os deliciosos pratos da natalina ceia. Mas o alimento maior naquela noite foi um alimento espiritual contido nas notas da melodia entoada por aquela pequena notável.


Frederico Salvo.


Que no ano vindouro possamos acolher aqui, com generosidade, todas as mensagens que nos enriqueçam a alma. Todas elas. Especialmente as daqueles que pequeninos chegam por cá trazendo alento e beleza aos nossos corações.


Direitos efetivos sobre a obra.
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FredericoSalvo
 
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