Crónicas : 

A força da terra

 

A FORÇA DA TERRA



As pessoas às vezes surpreendem-nos, de onde ser arriscado guiarmo-nos pelas aparências. Cipriano é, sempre o foi desde os tempos de escola um tipo macambúzio, sombrio, de olhos no chão como se impressos neste os seus horizontes. Mas verdade é que essa obscuridade se desvanecia quando confrontado com assunto do seu interesse e em que ele nunca deixava de ser sofrivelmente entendido. Aí ele chegava a levantar os olhos e a percorrer com eles nervosamente a linha do horizonte das pessoas «normais». Sim, Cipriano conseguia sair de si mesmo e vibrar quando o assunto lhe interessava. Mas verdade é que do seu semblante de quase todas as horas o que prevalecia era o obscuro, e não sei bem porquê, o odor de uma certa insensibilidade. Mas para mim que fui seu companheiro de escola e a quem não passava totalmente despercebido o carácter de Cipriano, direi que lhe dava uma nota positiva se tivesse de o julgar pela maneira de ser, mas não sem uma ponta de reserva no que toca a sensibilidade.
Cipriano regressou de Joannesburgo há pouco tempo, depois de uma longa estadia de quarenta anos . Fiquei feliz por encontrá-lo recentemente nas ruas da nossa cidade. Apressou-se a anunciar-me o seu aniversário para o sábado seguinte exigindo a minha presença. Como nada obstasse da minha parte e a família dele estivesse ausente o aniversário foi comemorado a dois. Graças a isso a oportunidade de auscultar o sentir deste meu velho amigo de escola e rectificar alguma reserva que subsistisse em mim desse tempo. Quando Cipriano se preparava para levar o primeiro trago de Casal Garcia à boca , suspendeu o gesto e olhou para mim numa atitude de homem aberto e em que parece não residir já resquícios do macambúzio de outros tempos. Vi que ele ia dizer algo e fiquei uns instantes na expectativa .«Lúcio» - diz-me ele com palavras pausadas – quando fui para Africa tinha dezassete anos feitos . Ao aproximarem-se os dezoito anos pensei em como comemorá-los. Não tinha ainda quem me merecesse essa honra, pelo que sozinho e pacificado com a minha solidão, me dirigi a um na altura conceituado restaurante de Joannesburgo. Já na mesa colocou-se-me a questão de como realçar esse significativo encontro comigo mesmo. De pronto admiti que um bom vinho da nossa terra seria forma aceitável. Pedi a lista de vinhos e o que me saltou à vista foi Casal Garcia . Crê no que te digo. Antes de o levar aos lábios tive um instante de reflexão que ficou para a minha vida e ainda hoje tem significado para mim. Pensei que a terra de onde aquele precioso néctar brotara, ali nas margens do nosso Douro, era a mesma que, ao fim e ao cabo, estruturou a minha pessoa. Nessa altura senti os olhos húmidos. E nesta hora por um mundo de razões que fazem a vida e recuando no tempo volto a sentir húmidos os meus olhos - .A sensibilidade, penso eu agora de forma amadurecida, é coisa que emerge onde menos a julgamos.
 
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luciusantonius
 
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