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O ciclo fecha-se sempre

 
Eram quatro mulheres, todas de vestes pretas, as que toldavam a vida aldeã. Juntavam-se umas às outras, tais siamesas e faziam os oito braços dançar em movimento ondulante a apontar para as nuvens. Urravam, gemiam, ululavam e atiravam um sem número de sons feridos para o ar.
Dos aldeãos, o estarrecimento. O medo embruxado caía doido sobre casas, ruas e gente.
Eram quatro as mulheres que auguravam desgraça e destino. Não tinham nome, só aquele que, os cordeiros, lhes davam em surdina no meio dos afazeres desconfiados. Eram quatro mulheres inomináveis que sabiam voar no pensamento.
Na azáfama diária, com as pilhas de cortiça, vinha sempre o peso das picadelas das vespas. As vespas faziam-se maldição e, por certo, eram enviadas pelas quatro malfazejas. Cruz em que sangrava o dia por muitos cravos espetados. O rebanho curvado continuava, ainda em duas pernas. Os joelhos esfolados ainda resistiam ao peso e ao chão.
Eram quatro mulheres elegantes e formosas, travestidas de maldição e de dentadas de cão.
Das gentes, em certo dia sem nuvens, em dia de adormecimento do chicote, levantou-se alguém que, por resquícios de vontade, cantou. Cantou de forma sonora e com melodia. Cantou como se, desde sempre, fosse canoro. Cantou e outros ouviram e outros cantaram num coro violento que soava poderoso. Cantaram todos a encher o peito num jeito quase habitual e feliz.
Eram quatro mulheres e ficaram em silêncio, guardadas na concha mais fechada. As aldeãs gentes acabariam por se cansar afinal eram fracas e desorganizadas. Eram quatro mulheres unidas e, assim que o povaréu se calasse, voltariam a sobrepor-se.
Continuavam a cantar.
Continuavam a aguardar.
Continuavam a cantar sem que ninguém se calasse.
Continuavam a aguardar, sabendo que se iriam calar.
Calaram-se alguns. Outros, sem dor na voz, continuaram.Trabalhavam sem sentir as ferroadas. Alguns voltaram a cantar e os outros alguns calaram-se.
Sem rigor mas intuitivamente foram-se revesando, como que num assomo de necessidade.
Eram quatro, as mulheres que fugiram com a fome de medo e subjugação, insaciada.
As gentes continuaram a cantar mesmo depois de livres. Mais tarde, daquela liberdade, outras quatro mulheres nasceriam ainda inocentes.
No fim, esqueceram-se do inicio e lá voltou tudo.

MJMS


A boa convivência não é uma questão de tolerância.


 
Autor
Valdevinoxis
 
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Enviado por Tópico
Antónia Ruivo
Publicado: 05/06/2009 22:35  Atualizado: 05/06/2009 22:35
Membro de honra
Usuário desde: 08/12/2008
Localidade: Vila Viçosa
Mensagens: 3855
 Re: O ciclo fecha-se sempre
Faz parte, fecha-se um ciclo recomeça outro, beijinhos

Enviado por Tópico
salomé
Publicado: 05/06/2009 22:42  Atualizado: 05/06/2009 22:42
Da casa!
Usuário desde: 25/01/2008
Localidade:
Mensagens: 409
 Re: O ciclo fecha-se sempre
É assim mesmo, uns se calam, outros dão largas à voz, é como o ciclo da vida uns se vão e outros ficam e de novo tudo começa.

Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 05/06/2009 23:10  Atualizado: 05/06/2009 23:10
Colaborador
Usuário desde: 19/04/2009
Localidade:
Mensagens: 4812
 Re: O ciclo fecha-se sempre
Eis um belo texto sob a forma de parábola.

Abraço.

arfemo

Enviado por Tópico
mim
Publicado: 06/06/2009 00:16  Atualizado: 06/06/2009 00:16
Colaborador
Usuário desde: 14/08/2008
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Mensagens: 2857
 Re: O ciclo fecha-se sempre
E lá voltou tudo...
Que belo texto e muito real sobre o amnésico!

Beijos doces

Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 06/06/2009 08:13  Atualizado: 06/06/2009 08:13
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
Localidade: Lagos
Mensagens: 2214
 Re: O ciclo fecha-se sempre
Ler este texto foi como assistir a um filme. Escrita directa e muito gráfica, que "prende". Gostei especialmente deste "quadro", ricamente escrito:

«As vespas faziam-se maldição e, por certo, eram enviadas pelas quatro malfazejas. Cruz em que sangrava o dia por muitos cravos espetados. O rebanho curvado continuava, ainda em duas pernas. Os joelhos esfolados ainda resistiam ao peso e ao chão.»

Parabéns!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/06/2009 09:42  Atualizado: 06/06/2009 10:32
 Re: O ciclo fecha-se sempre
Caro Valdevinoxis,
primeiro deixe-me dizer-lhe que gostei muito do texto, redigido com mestria, e se me permite, à Gabriel G. Marquez.
Foi o primeiro pensamento que me surgiu, aquelas histórias cheias de personagens fantásticas, terras místicas e atingíveis somente na nossa mente.

Também neste site existem personagens e criadores fantásticos e místicos.

E também neste site se cantou, por diversas vezes, algumas delas em coro.

E também neste site se esqueceram do início...e do seu Princípio.


Foi uma das leituras possíveis.


Cumprimentos
ridenow

Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 06/06/2009 17:50  Atualizado: 06/06/2009 17:50
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
Localidade: Penafiel
Mensagens: 1801
 Re: O ciclo fecha-se sempre
Valdevinoxis,

A riqueza deste texto, que é também muito bem escrito e muito agradável de ler, está patente e é um efeito do seu carácter literário em grau muito elevado. Oferece-se às mais diversas leituras sem desligar o leitor de um conjunto de referências incontornáveis de forte pendor simbólico, que lhe conferem unidade, agregando os diversos elementos. Algumas peças de teatro vão-se desenvolvendo numa dinâmica com algumas semelhanças, povoando para sempre o nosso imaginário de situações e de personagens e de ambientes impressivos.
Parabéns!
Abraço.