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Diário de Teresa (06/10/24)

 
Baia das Gaivotas, 06/10/24

“Foi bonito
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera."
(…)

Leio nesta tarde já Outono o poema de Miguel (amigo de tantas tardes, que me desculpe a intimidade…).
Leio e recordo Quintana, quando nos diz que um bom poema é aquele que nos lê a nós … E, no friso destes poemas, e nos dilemas da vida, recordo uma história antiga, vinda de uma outra vida … e uma lágrima perdida desliza p’la minha face lívida…Aninho-me melhor na cadeira, deixo o livro tombar … deixo o Sonho/sono chegar…

"O homem: Um deus, quando sonha, e apenas um mendigo, quando pensa." Holderlin in Hiperíon

**
É quase madrugada… Olho a Lua ali espraiada no alcantilado leito calmo da Baia … espraiada em estendais rosáceos, maresia e espuma ... são castelos de vagas, avançando, rolados contra a areia ...
Olhei agora, agorinha, e quase que consigo descortinar que a Lua, me viu e sorrio. E quase que consigo sentir que o mar, está também a chorar… no seu imenso marulhar, no rebentar contra a muralha. E daqui, desta casa inscrita na matriz dos tempos, nesta Península, tal um dedo apenso noutra maior, sinto o seu gemido sofrido, que me envolve a Alma, me circunda por todos os lados e me deixa apenas um fino Istmo, como que para ligar o meu destino com os demais que se me cruzam no negrume do caminho.
Choveu o dia inteiro, neste dia primeiro do resto da minha Vida. Choveu uma chuva estranha imprecisa, ora vertical ora obliqua, quando não as duas a um só tempo, na confusão de mil nuvens cruzadas em contra vento!
Choveu, choveu todo o tempo. E uma neblina tão fina, inundou daqui às dunas, não deixando que o Sol, brilhasse um só momento. Apenas, a espaços, um Sol gelado, tal os de entardecer de Inverno, mais parecido com o Luar, se atreveu a brilhar, pontilhando as densas nuvens..
Mas sem que saiba porquê, e numa estranha maneira, a chuva tombou-me na mente, assentando a poeira, fazendo no pensamento um estranho lago, mais parecido com um lençol d’agua, banhado numa luz, ela mesma, laminada ...
E ao alongo de todo o dia, nas tarefas rotineiras, encontrei sempre maneira de tecer alquimia, e numa mistela de estilos que povoam os meus passos – entre panelas e tachos, entre arranjos de flores, entre correr a salvar a roupa ali do estendal, para que se não enfole no Vento -, foi o vento, ele mesmo, varrendo deste meu corpo a matinal agonia e, a Alma mais calma, convidou-te para ficar.
E, desta estranha maneira, te levei a passear … fomos juntos até à Papoa, aqui mesmo à minha beira, aqui a um só passo.
Fomos, unidos nas Almas! Movidos ao som de um Piano, Waltz in A flat Major,Op.34 e Op. 64 de Frédéric Chopin pelos dedos de Alexander Brailowsky… e sem que ninguém nos visse, dançamos sobre escarpadas rochas, dançámos horas e horas, no compasso do destino ... em todas as nossas Vias ... … e, sentados sobre aguçadas escarpa, ombro a ombro, no enlevo, trocámos beijos por beijos, trocamos afagos por mimos, na pureza dos meninos … abrimos o nosso lanche. O que levei em cesta de vime … e o que trazias na mochila … eram rosas de Maio eram cravos, flores de Abril … e na cesta as romãs e, claro que adivinhas, as minhas Broinhas de Mel …
Frutos abertos ao meios, entre afagos e beijos, depositamos esperanças em bicos de andorinhas e no regurgitar alimentos … esquecendo os desalentos … e as dores desta espera… e foi de novo Primavera!!!
***
Está uma tarde fria, quase a tombar o fim do dia … Permaneço sentada na cadeira, oiço os gatos da vizinha, mais de trinta, a bichanar… e vejo-os, bichanos tontos, loucos a brincar sem parar … e um em poiso, quedado, sem sequer se alvoraçar … apenas um…
Estranho bicho, estranho olhar … até parece que a minha Alma, tenta na candura de um miar, tenta, diria … ao de longe, alcançar … a minha Alma de Lua, Lua Negra de Luar …
Semicerro o olhar, entrecerro as pálpebras ... tal cortinas, deixo a Alma navegar … coloco de novo os fones. Toca agora um Tango em rodopio, nesta tarde quase Inverno, um Tango, tão sensual e de nós ...secreto …"Tango Scent of a Woman” … (Astor Piazzola & Carlos Gardel) …
Olho sem tino o estranho animal, que me olha e me aninha… ali... a um toque apenas de mim ...
E que no brilho do olhar, me hipnotiza e me fascina … Cerro o olhar … Adormeço…
Um sonho denso e estranho, me acode ao pensamento …
É o cansaço a comandar…
E sem que dele me aperceba, sou uma doce donzela, tu (o gato que me espreita, sobre a telha da vizinha) ...o meu amante, o meu cavaleiro andante!
E sem que nada me contenha, coloco na boca a escarlate rosa, visto um vestido vermelho e num passo acertado, aprendido, longo e comprido, entrelaças o meu corpo, cingindo-o ao vestido …
Tu o gato, ali distendido …
E, nesta dança ousada, tomba a noite e me encontra, dormitando no alpendre, telheiro deste Jardim… (que de louca, me invado assim...)

Está frio, sinto a penumbra do anoitecer a enrodilhar-me as pernas.
Estou aqui há tantas horas, neste recanto da casa, charneira entre dálias, rosas e buganvílias, alpendorado a Ocidente … e, Deus meu … de cansaço, creio até que adormeci …
Cerro o Livro, Cesário Verde … Na mente, inda efervescente, as palavras deslizam tal um rio, que correndo, vai secando, sem deixar um só fio, é só mistério, é só tristeza … saudade … Levanto-me de mansinho, e de mansinho vagueio no Vale de Eterna Saudade …
Aconchego o Xaile, o Xaile Lã de merino, abro a porta, cerro o Livro, fecho a porta, abro o livro, outra história, outra vida …
Lá do fundo, da Sala chega o murmúrio …
O chamamento à Vida… está já a luz acesa, é a noite que se anima …
Hoje, meu amor, nem chegaste a sair … talvez porque eu acredito que não existem ....Deuses desleais ...

(…)
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
dos deuses desleais.

”Miguel Torga"


Diário de Teresa, in "Baia das Gaivotas"
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Autor
Mel de Carvalho
 
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