"Tem pão velho?"
Amanhece o dia,
Galo canta,
Os pombos se debatem na calha,
Ela, ao meu lado, com preguiça,
Não levanta.
Passa das nove.
Como se preparado,
O interfone toca,
da cama me toca,
e questiona “tem pão velho?”
Não há como ignorar. Velho?
Enfrento o frio, o medo de abrir o portão.
E lá, menino descalço, mal trajado,
Pobre, pele cinza de vento sul,
Molhado da neblina que não cessa há cinco dias.
Sem sol: sem sorriso, sem sombra, sem samba,
Não há jogo de bola, correria, colorido, nada.
Apenas cinza, casacos, jaquetas,
Carros falhando, aeroporto fechado,
mas não tem pão velho.
Fabiano Reis
A renúncia do que quero, a renúncia do que sou
É como se fosse um daqueles diques,
como um contentor para a água do rio não transbordar.
Não sei. Há tempos não vejo um desses.
Mas é assim que vivo. Sempre a conter.
Conter a mim mesmo.
O querer, aquela, pois só vejo ela.
Sinto, eu aqui, a renunciar.
Não deixo um dia sequer passar:
de chuva, calor, colorido ou cinza.
O que faço é isso. Renuncio.
Pela ordem social, pela culpa, pelo medo,
pelo dia nublado, por amor também, não faço o obvio.
Então, mato um pouco de mim,
mato um pouco a esperança,
Não tenho mais para onde voltar.
Os dias chegam, prometem mais,
como sabem, desisto deles.
Espero alguém ou algo, fazer o que não faço.
Renuncio de novo,
renuncio o sonho,
desisto de mim,
morro mais um pouco.
Todo dia.
Quando morre a esperança
Por mais que eu queira
e ainda sonhe.
E possa nem lembrar da noite
por esperar amanhecer e vê-la.
Minha sede em nada é liberdade.
Meu querer, inalcançável.
Está certo. Eu sei.
Lembro quando nasceu isso.
Resisti, mas algo lançava para aquilo.
Esperei acontecimentos.
Muito surgiu.
Nada suficiente.
Amor que sei, ausente,
amor silencioso.
Não há esperança em mim.
A que tinha, morreu em fotografias.
Sufoca a imagem, a palavra escrita;
Parte de mim quer insistir,
acredita, apesar da dor causada.
A outra, a que escreve agora,
silencia e esconde o rosto.
Escadaria da escola
Na descida do prédio,
Os olhos em suas paredes de tijolos vermelhos,
O piso escorregadio e corrimão preto.
No lance de escada do segundo andar
Uma janela enorme,
De lá eu via o mundo,
Eu via a praça da outra rua,
O calor do sol que entrava pela vidraça.
Ouvia as meninas, os outros garotos,
Era sempre antes das 9h30.
Para poder descer sozinho,
Imaginar o que poderia ser
Sem ninguém ou quase ninguém.
É assim que lembro.
Faz quase vinte anos que sai de lá,
Mas ainda desço os lances de escada,
Ao final deles ainda vejo a moça loira
Esperando por mim na arquibancada.
O nome? Claro, ainda sei.
Chuva no Pantanal
Fecha o laço
Lança galope,
O chapéu cai, camisa estufa,
Pisoteia, contorna e corre,
Aperta a cela neste estufador de camisas.
Bezerro que não mais berra, rastro de onça.
A chuva desaba, mistura com o rio e enxurrada,
Tem central de cerca caído,
O gado corre, o corixão derrama,
o Sol atenta, o tereré anima.
Peão acode, a boiada corre,
Terra molhada, fazenda alagada,
Anoitece, descansa o dia no Pantanal.
Gente que foi embora, gente que não venceu
Sobre a mesa empoeirada,
Sem arrumação há dias,
O quadro de moldura nova:
Reprovado.
As fotografias em papel:
Envelhecidas.
O caminho não mostra o tempo,
As escolhas não determinam ninguém,
neste processo de coisas,
Nada importa se não brilha,
Não funciona se não vence.
Aquilo que ignoro e sou
Apenas deixo de lado no tempo,
Ainda assim não esqueço.
Pois se me perco em linha reta
É porque sou eu capaz de me redefinir.
Deixo de lado também, ainda que por agora,
Aquilo que erro, mente ou levar a enganar.
Pois já nem doem mais os joelhos de tanto sangrar.
Sou aquele que se engana e convive com a consistência de cada erro.
Devo também ignorar o reverso de cada verso ou frase,
Pois se aquilo e isto que penso e escrevo define quem sou,
Melhor ainda fala por mim o que pensei e calei.
De sua maneira, resguarda cada trecho do caminho que refaço.
Sozinha
Nada mudava sua forma de ver,
Mesmo entre tantos, sozinha.
De fato, já se acostumara,
No que se é e o que se parece,
Às vezes, nem sabia,
Mas um se mistura no outro,
E já não se sabia o que era verdade.
Pensa em aceitar, ser, de fato, sozinha...
Mas precisa da aparência,
Ou ainda, já não se lembra como era,
Não se imagina sem a mentira.
Fora dos campos
Desenganos sopram do fim da tarde em grandes
Campos de vacaria, carros que passam, em teu horror.
Trânsito insuspeito, travados, reles, deselegante.
Descuidado, estância de ressacada de rio, raio de temor.
Acaba com um sentir, desprevenido, solto,
Fala de fins soprados em sol penetrou vermelho
Derrota flagrante, loucos de vinho morto.
Seus olhos disseram não, acenava casaco negro.
Com vento, balança, na boca, canta, o fogo, o corpo.
Deságua rio, pois diz eterno, ainda que não vida.
Voa com direção, mas baila sem chegar ao porto.
Andavas, tropeçavas na lentidão da avenida.
Era normal, suas subidas, raras ruas, paradas de sinal.
Os jornais, bancas, bancos das praças, o fim da tarde.
Lutam, ladeiras, preces perdidas, caminho tão leal.
Já não chora, não leva de volta, às 13 horas em parte.
Fabiano Reis
Atormentar a dor
Apesar dos perigos,
Apesar do medo,
Ao passar do tempo,
Ao ler o já lido,
Acertar a testa,
Aceitar o carinho,
Atormentar a dor.