RUPTURA
É quando olho no olho
não nos vemos
inteiramente;
quando face a face,
também,
não se diz o que se sente;
é quando o jogo surdo se instala
e sem entender direito,
sem quê nem porquê
a gente cala.
OLHOS D'ÁGUA
Derrama teu olhar sobre mim,
que aos poucos transbordarei
e, sendo enxurrada completa,
não vou parar de jorrar
feito fonte, feito rio,
feito o que me fizeste.
Torrencialmente,
derrama, sobre mim, esse teu olhar
para que eu possa chover sobre a cidade;
lavar ruas, poste, casas, limpeza na atmosfera,
me entrega essas esferas, derrama esse teu olhar.
BOEMIA
Silenciosa como uma sombra
essa dor se instala em mim
e queima, e arde.
E nesse "pique",
nesse ritmo,
nessa lei,
me entrego à cidade
em que me apaixonei.
Andar compete aos pés
e à cabeça;
às vezes fere,
é uma tortura.
Nada dói tanto
como esse vai e vem
pelos bares da city
a tua procura.
PÁSSAROS / POEMAS
Bom saber dos teus pássaros...
desses que, em revoada,
saem dos poetas;
que plainam, colibrís, fazendo festas,
como bem-te-vis sobre as cabeças.
É bom, vê-los, plainando pelos ares...
seus ovos de paz e de alegria...
que tingem o céu num arrebol e,
quase sem saber,
fazem nascer um novo sol...
fazem surgir um novo dia.
É bom saber dos teus poemas...
esses que anunciam a alvorada...
que traçam um novo caminhar,
uma nova estrada
e, dizem que "a vida, sempre vale a pena".
É bom saber dos teus poemas.
TRANSCENDÊNCIA
Para além da linguagem
há o que sinto e o
que sequer pressinto;
há o que penso e o
que nem alcanço.
Para além da linguagem;
a vivência, o coração, a fé,
a aceitação e o silêncio... até.
NÉCTAR
Me encantam os detalhes,
jogos de luzes,
sombras,
contrastes;
tudo em você chamando
ao amor e à arte.
E aquilo que mais escondes
e à outro velas,
fascinado,
é o que mais percebo:
tua beleza,
teu riso,
teu gozo, que desnuda,
sussurando, me revelas.
ANDANDO NA CHUVA
Como a vida,
a cidade é toda feita de esquinas,
e tudo é escolha;
opções que se impõem.
Plural, seletiva, a memória passeia
atravessando ruas, toldos, fronteiras.
Pés ligeiros, entre os pingos,
cabeça nem pensa,
rente ao chão, ave, gato, serpente,
poça d'água à frente,
um salto adiante, de repente.
E flamíngeo,
o coração se estende leve
pela tarde imensa:
brota o sol por entre a chuva,
agridoce feito uva.
VOZES CONVERGENTES
perto é o crachá
a catraca
a máquina, a produção
no peito, alma imersa em banho
espaço em branco
súplicas de novas cores
tons, sabores...
a rudeza do operário clama poesia
gueixa dos sonhos
como quem dança um triste acorde
somente há insaciáveis fomes
intangíveis amores e cidades invisíveis
a dureza do operário quer ser poeta
longo é o apito, seria urbana
ecos de outras eras
ressonâncias que nos travam ao chão
redundam
poetas e operários sonham
IN: "Desordem" - 1992
GUTURAL
Ah...esse grito em mim
É mais que urgência de vida
ou poesia);
é a falta que faz a tua companhia.
VIA DEL CUORE - não é aquele motel na beira da estrada.
Por maior que seja o estranhamento,
minha casa é onde minha alma dança;
mítico lugar que, incerto, me aninho;
onde, mesmo intranqüilo, repouso a fé
e, pés descalços, faço e refaço
esse meu único caminho.
Minha casa
é onde os corações descansam
e, onde sem se darem conta,
quase indo sós,
nossos passos ávidos, na busca
desfazendo os nós,
insondáveis,
se alcançam com carinho.
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Minha casa é onde mais te vejo
e por maior que seja o encantamento
ou que tenha contramão,
é sempre doce a entrega
nas trilhas do coração.