Poemas, frases e mensagens de pedrocavalcante

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de pedrocavalcante

Visão Periférica

 
E ela olhava, e olhava, e olhava... Obstinadamente. Quem sabe jogasse um solitário jogo, buscando vencer a distração e o cansaço... Tinha nesse instante uma expressão nublada, talvez apática, da qual seus olhos pesados sobressaltavam por um lacrimejo excessivo. Perturbava-lhe a balbúrdia em sua visão periférica, enquanto o pensamento, imaterial e genioso, escapulia, subvertia, evaporava... Multiplicava o mundo em outras possibilidades, coroando e destronando intensos reis: o amor, a arte, o visceral, o sensual. E então ela não tinha limites, ela não tinha medo afora de si mesma, pois absorta em anomia a moça adiava a míngua do gozo, a urgência pelo significado que se desprendera nas passagens: da vontade para o toque, do pensamento para a linguagem, do sentimento para a atitude...

Pois foi que, de repente, naquele olhar, alguma revolução de sentidos estourou na cara dela, e desde então desvaneceu, murchou, e já não é tão bela quanto ontem, tão simples como outrora. Uma vida roubada. Seus olhos avermelharam, correu em disparada com as mãos premidas no cordão do tempo, sujou-se de poeira cósmica, dançou em giros, cruzou paredes; caiu diante de mim. Fiquei demente, catatônico, e bem quis tocá-la, mas não soube como.

O que sei é que entre o sonho e a realidade existe apenas um cinismo...

E que grande cinismo.
 
Visão Periférica

Espiral

 
Não amo você
amava a Outra
aquela
a que escorreu da minha cama
adiantada
antes do fim das velas.

Num continuum
persigo a besta do futuro
em curvas espirais
me dobrando
matava a Outra
não vi
não tive olhos
só perscrutava a bailarina em seu hall de espelhos
ainda menina
cadáver de sapatilhas
pisando nas vértebras
que foram
minhas
quando eu era...

Mas se removo a pele morta
das horas
se cria nova crosta
em pouco espaço
nada vejo
apenas você que emerge
abreviando
abreviada
exclamando interrogações
me enchendo de vírgulas
e me comendo
nas pausas.
 
Espiral

Silêncio

 
Eu vejo a estação
Minh'alma se reparte entre os vagões
A Poesia me leva
E me lava
Você, apenas lá
Existe implícita
Seu olhar me apanha
Nesse lugar onde o tempo
Não passa
Não há nada, não há ninguém
Apenas você que me encontra
Que me salva do silêncio
Que, na madrugada sem chuva, espera
Próxima ao meu destino
O trem da vida
Quando nós, à beira dos trilhos,
Fundimos os desejos
E inclinamos as cabeças, juntos,
Na exata direção
Do infinito.
 
Silêncio

A Oboísta do Villa

 
A tarde é suave naquele beco do centro, pois mais parece que todo o desespero ao redor se intimida e murcha frente à música transbordante nas janelas do Villa. Lembro-me que era intervalo entre as aulas de sax, e eu, jogado num banco, contava as bolas pretas do chão emborrachado. Mas o ócio por lá não deixa impune ao seu praticante, dito que, mesmo sem notar, a gente mergulha cada vez mais a fundo nos sons, a gente vai tomando aquela cacofonia instrumental como uma parte importante de si. É uma experiência intensa e, o que mais importa, é ímpar. Alguns sons despertam frescos e ingênuos, dos quais fui cúmplice nas fracassadas investidas ao sax tenor, enquanto outros, de tão maduros se tornam constrangedores ao sujeito que ainda pouco ou nada sabe de música.

Voltando, então, ao intervalo, o fato que houve ali foi nada espantoso para o ambiente em que se encerra: a vez quando vi e ouvi, quase sem direito à repetição, as aulas-ensaio da oboísta, cujo nome ou quaisquer outras informações eu nunca pude saber. Só sei que a moça, somada ao seu instrumento, compunha uma obra de rara beleza, e ambas as partes se abortariam no vago da outra. Eu a contemplava... Era pictoricamente linda, não nego, lembrava algo pintado por Vermeer num instante de inspiração maior, coisa que, se me jurassem verdadeira, eu jamais arrogaria duvidar. Porém não só desta beleza sobrevive a arte, e sim de uma outra mais viva, triste-sincera, trágico-profunda, em que a oboísta parecia investida da cabeça aos pés. Era um estímulo inequívoco à audição e à visão, e digo até obsceno, pois os sentidos são cúmplices em suas escolhas, e não havia como proibir o tato, o olfato e o paladar de reclamarem seu quinhão em algo tão sublime. Confesso que a realidade das minhas lembranças é duvidosa, já que desfila fantasias com que os poetas cobrem a vida concreta. Mas quem pode falar com razão em realidade além do sonho? A mim parece mesmo que a existência, nua de qualquer adorno, é somente o vácuo da biologia, lugar onde este texto não tem graça ou nexo algum. Por isso eu peço “licença poética” às idealizações.

Por fim, me lembro que vi aquela instrumentista mais algumas vezes, embora não muitas. E mais algumas vezes deleitei sua música como um voyeur, um hedonista diante de um prazer proibitivo e desconhecido. E justo aí sobressalta o paradoxo das contemplações: eu jamais saberei se, no caso de conhecê-la e trazê-la para a imundice do material, de humanizá-la, se a sua imagem seria igualmente perturbadora e atraente, e se os poucos minutos das poucas vezes em que a vi tocar seriam, assim mesmo, tão magnéticos. Porque há vezes em que o mistério é o que move e choca, e, não sendo tudo, é pelo menos o maior pedaço. Antes que me apontem, eu digo que não, que nunca tive uma paixão pela oboísta, ao menos como chamam por aí em seu sentido mais pleno de preconceitos e distorções... Ao menos não por ela enquanto ser específico. Ela era apenas uma parte de algumas tardes, e talvez eu quisesse mesmo me apaixonar por tudo o que pudesse, por cada pequena expressão da alma manifesta, por cada tentativa de conhecer um pouco mais o amor e seus ícones, e as pessoas que pelo mundo passam. Acho que eu quis desesperadamente tê-la com seu oboé, e dela saber tudo, e cercá-la o quanto eu pudesse. Mas não há tempo para todas as contemplações, descobertas e paixões, e o que realmente me intriga é a semântica deste verbo “ter”, do qual ainda não pude decifrar a forma, mesmo que com ele eu insistentemente me depare. É, eu sei: a única verdade é que não posso procurar verdades nos olhos e nos ensaios da oboísta...
 
A Oboísta do Villa

Clara

 
Quando Clara chegou eu já estava lá. E é como melhor posso dizer da sensação que tive ao ver as leituras e expressões menores invadidas e saqueadas por ela. Há tempos imemoriais eu era o mesmo todo, complexo e conciso, determinado e determinista, e, sobretudo, vasto. Percebo agora que Clara foi, desde a manhã na qual se fez concreta, como a presença da morte a me tocar sem pedir licença, desordenando os elementos que, coesos, me desenhavam os sonhos diante dos olhos e a vida diante das mãos. Nada restou de matéria minha que não ruísse aos seus trancos, seu dom de interromper o que antes era fato, fazer das horas metáforas, e reviver Platão.

Eis que num Dezembro, quando beijamo-nos enfim, perdi naquele beijo a chave da arca em que escondera intensos medos, imensas fantasias com que brincava em carnavais remotos. Perdi os olhos castos em que Clara nunca pôde olhar, porque, ao chegar, a ingenuidade repousava nua e envergonhada. Naquela cena a conheci profunda, porém muda. Creio não se saber o outro mais com frases do que com silêncios, e talvez aí mesmo, na ausência da voz, estejam causa e prova de minha loucura. E mais que o gênio de Clara parecesse transtornar o tempo e as aras, debrucei perplexo ao calendário de Dezembro, e Dezembro se esticava, e ainda Dezembro...

Dezembro jamais acabou, em mim.
 
Clara

Paragens

 
Vida
Estaleiro de sonhos
Fábrica de passados
Onde vão se apertando absurdos
Com chave inglesa
Escudos de metal pesado escodem
Os pulmões obtusos
Por cigarros
Entre as paragens do meu corpo
Demoram quaisquer certezas
E a cerveja que se bebe, sem gosto,
É hesitante
O futuro que se espera sem remédio... Hesitante
E toda a mecânica das pernas
Caminhantes sós, e só
Pela metade
Porque triste mesmo é este canteiro de obras
É claro, inacabadas
Onde se cobra trabalho inútil
Onde se arrasta uma alma-jato
Bem maior
Do que sua fuselagem.
 
Paragens

Sem Saída

 
Solidão: solilóquio satírico
Sobrevida sórdida
Cinismo cíclico
Na seara do sutil
Já não me sinto mais
Somente suponho
Surreais certezas
Que, aos solavancos,
Seguro comigo

E seccionado de si
Insípido sigo
Sequestrado e seco
Do suporte seu
Solapado num sopro
De sono e silêncio
Na soberba insanidade
De sanar essa sede
Que soçobra o sentido
Do sujeito
Eu

Situação insolúvel
Sentimento sombrio
Substância que sobra
Saudade suprema
Que salta em segredo
E eu saio do sério
E submerjo no sonho

Simplesmente sozinho
Terei de soerguer
Com severa sobriedade
O sobrepeso de ser

A sina
Será sofrível
Mas ainda que eu sucumba
Suado
E sem saída
Simularei sentimentos
Solares e serenos
No semblante

(E sabores súbitos
E adstringentes
Na saliva...)
 
Sem Saída

Terra Arrasada

 
Não sei de que crime
me acusa o inimigo.
Julga-me pelas costas!
E a pena que inflige?
Terra arrasada:
sem comida, sem abrigo,
o solo esturricado
e a água envenenada.
Não entendo o veredito...
Faltei a esta guerra?
Avanço na estrada,
o medo vem comigo.
Do meu algoz, nem palpite.
Vai sem rumo o meu revide,
mas, mesmo assim,
revido.
 
Terra Arrasada

Teu Leite

 
Corpos inseguros
Estranhas ilhas
Na epiderme da terra
Onde somos imensos
Pequenos lapsos intensos
Revelam
Meu corpo árido
Estranho
Ilha insegura
Fruto de guerras
E te(n)sões
Tua boca ávida
Chupa
E semeia
Num gesto perfeito
Nosso cotinente-ilha
Inteiro
Revelo teu corpo ártico
Incontinente bebo
Teu leite
Lavo teus olhos
Friezas ásperas
Me arrastam
Pelas águas atlânticas
Nossas ilhas se chocam
E submergem
Sonâmbulas

Para além do eldorado
Terras em transe
E em transe(a) perfeito(a)
Eu te traço
Curvas
Nas águas turvas
Nossa ilha revela
Escombros de nós
Vícios de guerra
E espólios
Do chão de mundo
Em que planto
Teu leite
E onde nascem meus olhos
Nesse continente-ilha
Meu corpo úmido
E cálido
Submerge
Entre crônicas ácidas
História incerta
Nossas ilhas se afastam
Gélidas
E catatônicas
Teu doce dissolve
Em minha boca
Aberta
 
Teu Leite

Danúbio

 
Minha inclinação ao platonismo fora descoberta,
e, quando me vi, em frente ao templo de eros,
fugi...
No tempo de voar
eu fui morar nos seus olhos morenos.

já os conhecia, é certo, das ruas da memória
ou das vielas de Budapeste, onde eu te procurava
com ávido instinto de sobrevivência.
(No tempo de transgredir a prisão da realidade).

Poeta eu sou... Não vou me contentar
em apenas reler o conto do desejo.
Quero despir a máquina dos seus sentidos;
quero verbalizar esse corpo de mulher:
em húngaro, em tcheco, em polonês,
em outras tantas línguas que inventarei quando nenhuma
puder sustentar o meu texto incorrigível,
o meu canto atrevido, insistente,
neologista.

Permaneço ginógrafo em potencial,
secando a virgindade deste seu suporte
de simbologia intensa, indecifrável,
amante de sátiros e ninfas vibrantes
caminhantes em conluios de cordões semânticos
de línguas alheias, línguas vernáculas,
impulsos que me levam a um Danúbio incendiado
onde eu vou passear os meus dedos no fogo
e molho, ansioso, a sua língua na minha,
e gravo com saliva o papel do seu corpo.

O meu conto, repetido, se inflama,
se inclina na forma de um jogo em suspense,
de um film noir,
os meus planos, montados sem nenhum caminho,
seguem no déjà vu de consumir seu vinho
não aos goles, não aos copos,
mas aos galões.

Iconoclasta eu fui quando temi a sua imagética
presença atemporal, que me despiu das horas
e instaurou no universo a nova lei do tempo:
que todo tempo será tempo de te descobrir.

Pupilas dilatadas, mãos ansiosas,
corri, entrei no templo, apaguei as luzes,
já era a hora de sorver seus fluidos suplicantes
e me imbuir do seu cheiro, com fome, com calma,
com febre que arde e aumenta em silêncio,
com o sonho de esculpir a forma original:
em crônicas, discursos, cartas, roteiros;
responder à atração dos seus olhos-espelhos
com a violência libertária dos meus olhos sequestrados.

E agora, a delirar, imagino
que escrevi sobre o seu corpo em todos os sentidos
que toquei o papel, explorei os espaços,
desatinei em seus seios, suas coxas, seus braços
cada meandro a me sugar a criatividade
e a me manter embebido, aceso, provocado,
arrepiado a contrapelo, me empurrando ao contrário
na antítese de tudo o que almeja explicar
a gênese perdida dos anseios meus,
mito que eu não pretendo... Não quero entender,
só quero reviver a cena extraviada
que na ironia estranha de algum não-desejo
jamais aconteceu.
 
Danúbio

Noite Ávida

 
Solidão muita
Escuridão a dentro
Escuridão há
Lá dentro
Nessa terça asséptica
Que me pesca
Eu mordo o anzol do silêncio

Por decisão urgente
Hoje
Eu preciso
Me embriagar de saliva
Na fonte
E bater nas curvas

Nas mãos há luvas
Cirúrgicas
Acadêmicas
Me isolando
Que rasgo e atiro
Lá fora
Contra a janela
Onde espero
Esfolar
Meus pelos
E abrir
Meus poros

Nessa terça estúpida
Plasmada de tesão
Sem uso
Que me implora a chupar seus seios
Até formigar a boca
Fazendo o corpo ser
Deixando marcas
Criando luas
Cálidas
Crescentes
Expostas

Além do vazio
No quarto
A vida inteira
Nua
Eu quero
Quero anular o que me impede
De ser inteiro
Com ela
E avivar a natureza morta
Excitando o concreto
No chão

Quero gozar nos prédios
Nos muros
Na cara dela
Chocar os paralelepípedos
Despir as ruas
Lamber os carros
Ungir suas coxas com porra
Fincar os dedos
Na noite
Nas ancas
E dominá-la
E comê-la sem mastigar
Com o pau com os olhos com as mãos
Com os versos
Arrastando a madrugada
Pelos fios dos postes
E dos cabelos
Emaranhados à noite
Arrepiada
E ávida
De suor
E sexo
 
Noite Ávida