No dobrar do tempo
Já me esqueci
Das cantigas de embalar
Das histórias de encantar
Na hora de adormecer
Já me esqueci
Do nome dessa boneca
Feita e de trapo coberta
Que me ajudou a crescer
Já me esqueci
Do primeiro livro que li
Ou da carta que escrevi
Manifestando o meu querer
Mas não esqueci
O carinho e os abraços
Envoltos em fortes laços
Criados logo ao nascer
Nem quero pensar
Que o tempo possa apagar
A prata desse luar
Que alimenta este meu ser !
A Alma do Fado
Na velha viela fria quase deserta
Ouvem-se os passos de quem lá pereceu
São almas perdidas há muito esquecidas
Histórias de vida que ninguém escreveu
Portas fechadas postigos sem luz
Vidraças partidas que abrigam pardais
Sombras espalhadas em sóbrios recantos
Ervas que vingam por entre os beirais
E quem à noite por ali passar
Vai poder ouvir choros e gemidos
Vindos de tabernas gravadas no tempo
É alguém que sofre e chora a cantar
As desilusões de amores já perdidos
E a guitarra geme ao som do lamento
Dedicação
Quando se ama de alma e coração
O pensamento não é livre de voar
Tomando sempre a mesma direcção
Não encontra outro motivo p´ra pensar
Tenta lembrar-se de tudo o que passou
Revivendo os bons momentos com saudade
Lembra também os momentos que chorou
Quando a ausência se transforma em ansiedade
Se soubesses meu amor o quanto tempo
Te dedico dia a dia o meu pensar
Sentirias no teu peito esse lamento
De alguém que apenas vive só p´ra te amar
Perfume
Abro a janela e sinto o perfume
Das flores de mil cores que se entrelaçam
Da sua graça sinto ciúme
Dessa ternura com que se abraçam
São frágeis e puras paletas de cores
São promessa de sonhos a quem vai nascer
São cânticos que falam de eternos amores
São escravas das mãos que as irão colher
Quem me dera ter tamanha beleza
E que pudesses ler no meu triste olhar
A sede da vida que me atormenta
Sentirias bem a minha incerteza
De no teu peito eu desabrochar
Numa primavera de que estou sedenta
Quem sou eu
Quem és tu afinal assim pergunto
À imagem no espelho reflectida
Que um sopro de luz desconhecida
Ofusca os traços que redesenho e junto
Na esperança de ali eu encontrar
No silêncio da alma adormecida
Envolta em rara seda de amor tecida
O génio que a impede de acordar
E o tempo esgota em tão longa espera
Pela resposta que tarda em chegar
Ao espelho de mistério emoldurado
Serei eu sombra ou luz duma quimera?
Pássaro ferido que insiste no voar?
Ou ninguém,como se fosse passado… ?
Murmúrio
Maré que vai e vem sem descansar
Fase da lua que a guia e lhe dá vida
O seu murmúrio não me canso de escutar
Fala de amor e de esperança em vão perdida
Fala de sonhos de espuma já desfeitos
De tesouros que teima em guardar
Fala do vento que a impele e seus efeitos
Lamenta o mal que daí possa causar
Maré que vai e vem sem descansar
O seu múrmurio não me canso de escutar
Procuro
Procuro meu pensamento
No tempo que não vivi
Na razão do que escrevi
Meu livro que nunca li
Filho de um breve momento
Que o vento esfarrapou
E no vazio espalhou
Só esta mágoa deixou
Num triste e farto lamento
Contra o meu peito dorido
Pela raiva do castigo
Da dor que trago comigo
Que me retira o alento
E por remorso ou por pena
O presente me condena
Ao ritmo que o mundo ordena
Este meu caminhar lento
Jamais eu quero pensar
O fim da estrada alcançar
Sem nunca me encontrar
Com meu próprio pensamento
É madrugada
É madrugada
Soam os passos lá fora
Mas que importa
Quem caminha a esta hora
Se a minha esperança está morta
Do sonho não resta nada
É madrugada
Lembra o relógio da torre
Num canto de Ave-Marias
P´ra quem nasce e p´ra quem morre
Rezando todos os dias
Como freira enclausurada
Adormeço
Vencida pelo cansaço
Das madrugadas vazias
Um filho teu no regaço
Fruto de mil fantasias
É tudo quanto mereço