Poemas, frases e mensagens de Durande

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Durande

o som sai da boca para quem toca

 
o som sai da boca
para quem toca
as cordas do violão
a voz que é tanta
arranha a garganta
e é bom que arranhe
assim a veia salta
assim o som pulsa
a voz entra mais alta
no coro dos corações
as notas são muitas
são perguntas à noite
são respostas à lua
gritos de surpresa
dados entre dentes
as cordas são presas
para quem vê de fora
as notas de uma canção
as notas são presas
para a aranha que mora
na boca do violão
 
o som sai da boca para quem toca

silêncio

 
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no dia em que você fizer silêncio
pense no silêncio, pense-o
pense no silêncio por extenso de uma morte natural
pense como todo mundo morre num momento morte tal
pense no silêncio e pese-o
ou você fica mudo ou te tapam a boca
pense no silêncio
e no dia em que algum maluco te disser
que o silêncio não é música
pense no silêncio que quiser
eu penso quando me calo com um beijo
seja da mulher amada ou o velho beijo na bochecha
que me dou todos os dias quando digo que a amo
 
silêncio

chegada a nova era glacial

 
chegada a nova era glacial

não leve a mal
nem pisque

pegue a garrafa de uísque
e deixe gelar no quintal
 
chegada a nova era glacial

insônia

 
quero que você me morra na base da angústia
da unha na carne mesmo
mas que antes me mate de falta

essa presença é um bicho que alimento
e depois chuto pelos cantos

vai, tira minha vida assim, um dia depois do outro
que nem buraco de bala
até que sobrem os que eu acordei sem você

só o sonho que é bom, toda vez um rosto diferente
olhando pra mim
sonhar com você é uma roleta russa
sempre morro no seu sorriso

agora deixa eu levantar e fazer a barba
pra tirar essa insônia da cara
- de noite a gente conversa
 
insônia

soneto ao pôr-do-sol

 
colho uma gota de alegria e bebo-a
como quem bebe as lágrimas dos santos.
todas as cores vibram pelos cantos
conforme cresce o éden sob a língua.

termina a tarde, imita o fim da vida,
também se acaba o efeito paraíso.
resta o olhar derramado na bebida,
restos de dor a desmanchar meu riso.

deixo-me entrar de volta em meu casulo
onde me encolho, me aperto e me anulo
até nascer de novo o que não dói;

meus pés pisam o mundo pelas bordas,
me movo pra pegar todas as cordas
e enforco o pôr-do-sol sob os lençóis.
 
soneto ao pôr-do-sol

a cada passo

 
dizer que
penso a
cada passo
é excesso

digo
que penso
enquanto ando

o espaço
do passo
é curto

vai que,
pensando,
eu tropeço?
 
a cada passo

em tempo de vaca magra

 
em tempo de vaca magra
bom negócio é leite
e viagra
 
em tempo de vaca magra

porque ontem éramos dois

 
porque ontem éramos dois
porque hoje não há ninguém

porque tudo que veio depois
não me faz mais mal nem bem

porque não tem mais lua
porque tudo escureceu

porque todo mundo na rua
parece viver mais que eu
 
porque ontem éramos dois

soneto aos anjos

 
já não recordo os teus olhos estranhos,
que em rascunhos fiz com que fossem meus.
terra de margens, caminhos castanhos
que um dia eu vi me levarem a deus.

o meu corpo já esqueceu dos pecados,
mas ainda me cortam as cicatrizes.
trago nas costas fardos mais pesados
e os pés saem do chão como fossem raízes.

continuo os passos, ainda que perdido,
acho em teus olhos dois anjos de vidro
que ao partir deixaram restos e cacos.

me sobra o tempo, que oferece paz,
porque teus olhos não existem mais
e em lugar de anjos, vejo dois buracos.
 
soneto aos anjos

me encontro entre dois camaradas

 
me encontro entre dois camaradas: medo de mim e medo do mundo. um me oferece um copo; o outro, um prato. os conteúdos são como que o mesmo veneno. o medo do mundo ignora minha abstinência. o medo de mim esquece meu jejum.
 
me encontro entre dois camaradas

não há nada além de mim dentro em meu corpo

 
não há nada além de mim dentro em meu corpo. nada sinto que não seja físico, palpável ou provável pela ciência. não permito que a fé me habite, que a alma faça de mim um abrigo ou que qualquer divindade seja guia de meus passos. abstenho-me de soluços milagrosos, crises epifânicas para além das nuvens ou objetos-símbolo de qualquer adoração. o que existe é a pele. o que existe é a carne. o que existe é o suor e o sangue e as mãos. a mão que pega no torno é a mesma mão calejada que, com suavidade, acaricia os contornos da forma feminina. a mão que dá vida à terra é a mesma mão que recebe a vida do ventre de uma mulher.

os braços de um estivador, embrutecidos pelo trabalho, à noite sentem repousar sobre eles uma cabeça que nem de longe pesaria tanto quanto as sacas, mas que traz consigo todo o peso do firmamento. não se pode negar o amor de um casal, por mais penúrias que passe, quando os dois se abraçam. um a proteger dos perigos, outro, a dar razão para se ter medo da morte. e é uma das imagens mais lindas que já pude perceber. é o máximo que pude enxergar de divino. além disso, para mim, não há nada.

o que pensar quando se ama, que não querer ser perfeição? o que dizer quando se erra e, errando, se machuca o ser amado? como agir sem desespero, tendo pelo resto da vida a idéia de vazio sem a presença de um firmamento para segurar? que diria atlas, se acaso lhe tirassem um dia o peso das costas? sentir-se-ia aliviado? sentir-se-ia saudoso a ponto de ir todos os dias ao lugar em que, ajoelhado, tinha os céus nas mãos?

perdem-se os céus das mãos e perde-se o chão dos pés. o sentido perde-se, o caminho perde-se, as idéias perdem-se, o bêbado perde-se, a memória perde-se. resta a insônia, a fome, a sede, a busca nunca realizada. perde-se do corpo a alma nunca antes sentida. perde-se a fé. perde-se a esperança. perde-se qualquer força de vontade pois a única vontade é ter o firmamento nas costas de novo. perde-se toda a sorte de sonhos, como peixes que retornam ao rio dos mortos.

perde-se o futuro. o passado vira anzol preso nos lábios, a lembrança vira linha, a esperança vira vara e nós, pescadores de sonhos. e nós somos a isca para pescá-los. e nossos corpos, boiando no rio dos mortos, envelhecem. mas não sentimos nada. o pescador não se apieda da isca. o sonho, se ainda houver algum a ser pescado, morrerá logo que pouse na terra.
 
não há nada além de mim dentro em meu corpo

o poeta é uma galinha

 
o poeta é uma galinha
o poema é um ovo
logo, a poesia
deve ser clara
 
o poeta é uma galinha

gabinetto

 
sento
levanto
um momento

cigarro e café

a vida é
um livro e tanto
 
gabinetto

pasta de lado

 
pasta de lado
no pasto
paletó e pétalas
em postas
o executivo
feliz da vida
num campo
de margaridas
 
pasta de lado

estou sozinho

 
.........................
.........................
.........................
.........................

estou sozinho
é tanta pena
que ainda viro
passarinho
 
estou sozinho

tiroteio narrado

 
tiroteio narrado
ao som do piano
nasce no meio
uma flor por engano
 
tiroteio narrado

soneto à tua árvore

 
sou feito de sangue e lágrima:
eis-me água, através dos furos
que o tempo engendra ao futuro,
quando me és mármore ou magma.

vícios, barcos, ventos fracos,
a sina de um sacrifício:
eu sou a flecha firme do arco
que mira num precipício.

nas ondas do teu vestido,
quantos navios detidos
não me valeram de nada...

e quem mais morderia o fruto
se a vida é o único tributo
da tua árvore envenenada?
 
soneto à tua árvore

das mil e uma razões

 
a despensa tá oca
a comida é pouca
e ruim

ela tem umas curvas que ai meu deus
e come tudo de mim

o dia é festa
a noite uma ressaca
vivo em maré de azar
minha vida é que nem o chão
só o pó e pontas de cigarro

essa mamãe não pediu
e ainda pergunta "porque se casou?"

ah, mamãe, que que eu posso fazer?
ela é a cara da marilyn monroe
 
das mil e uma razões

soneto às mãos de deus

 
as mãos de deus são facas, são punhais
que ferem de silêncio a vida humana.
o corte é feito a seco; seus sinais,
rastros no vento, pés de caravana.

tais gládios entram fundo, pele a pele,
nos lembrando o poder e a onipresença.
não há um bem que vença, mal que vele,
fio de vida que burle sua sentença.

as mãos de deus residem na alma humana,
e ali, são mãos de mãe com seu suporte,
que crispam forte o filho ainda menino.

mas, se uma mão acolhe, a outra engana:
leva no ventre o filho para a morte,
que dorme até esquecer o seu destino.
 
soneto às mãos de deus

a luz brilhante do bulbo

 
a luz brilhante do bulbo
que me paira na cabeça
tem bem menos energia
que a bunda do pirilampo
não me permito perdê-la
e é por isso que permuto
meu cavalo por um reino
e meu reino por um lápis
 
a luz brilhante do bulbo