Cerro as pálpebras, encerro o Mundo
[Quando cerro as pálpebras, encerro o mundo.
A chuva alastra-se violentamente do lado de fora. O vento assobia agreste e baila. Puxo os lençóis e tapo o rosto. Está escuro. Tentam falar-me como se existisse. Não os percebo.
Quero ser pó neste lugar. Quero privar o meu corpo de ser transformado em alguma coisa demasiadamente vaga. Quero que a certeza nos (re)encontre e me traga a textura da tua pele como quando usava laços a segurarem-me os caracóis loiros como raios de sol.
Quando cerro as pálpebras, sinto-me a tocar nos teus pulsos. Nunca deixaste de estar comigo neste lugar onde todos os seres respiram. Não há ser que se ame e que não respire! Eu deixo que vivas aqui dentro: onde a respiração ritmada dos nossos corações é visceral vida fugosa que avança sem que a vejamos avançar.
Quando, pela manhã, a luz trespassa os lençóis e me acorda, continuo a sentir-te como se aqui - em mim - estivesses. Os meus sonhos cor de arminho são eternos como quando os teus olhos penetram nos meus olhos e nos olhamos como se nunca mais nos fossemos olhar … até que nos olhamos novamente. Até que nos aproximamos novamente. Peito com peito. Suspiro com suspiro. Pele com pele.
Quando cerro as pálpebras, é como se o mundo me encerrasse no suspiro da Terra que continua, amorosamente, a inventar-nos.]
Hoje, retorno para te falar outra vez...
[Hoje, retorno para te falar outra vez. Sem que me alongue demais ou me encurte de menos. Sem que as palavras aqui deixadas ocupem todo o silêncio que restará sempre. Hoje, quero olhar-te nos olhos. Quero penetrar nesse olhar que, amorosamente, me olha. Esta perplexidade de te ver a ver-me e de nos encontrar como quando se encontram dois amantes intempestivamente atemporais.
É esta a saudade que me ocupa toda a vontade de estar aqui e de existir num qualquer lugar.
É assim que me abeiro, a olhar-te através deste armário de letras onde se guardam palavras. Através deste lugar amplamente pequeno de onde te vejo acenar-me. Depois, do interior de ti, são as ervas e as flores cor-de-rosa-lilás que vejo brotar. Mudas. Tão silenciosas, a querer falar-me num encontro fervoroso de pele com pele. Vejo algumas pétalas secas caídas no chão e outras viçosas, plenas de exuberância à espera que, sorrindo unidas, as polvilhemos de amor.]
O teu corpo - uma celebração perfeita
[O Tempo, neste instante, são os dias exatos em que, com todo o meu corpo, te leio - linha por linha, poro por poro. As tuas mãos, o teu sorriso, o teu cheiro: tudo isto é parte de alguma coisa que o tempo não mata. Antes, todos os teus movimentos eram maravilhosos. Nunca fui capaz de te dizer que todos os teus movimentos eram maravilhosos. Hoje, olho-os de longe e sinto-os maravilhosos como se os visse e vivesse outra vez. Sinto-os como se eu e tu fossemos parte de uma bola de sabão adornada com as cores do arco-íris. Voássemos. Viajássemos. Caíssemos. Em uníssono, caíssemos.
Se o tempo algum dia te avisar que é o dia da despedida, por favor, nega-lhe a autoridade. Ainda que de mansinho, por favor, diz-lhe que a despedida desfaz o mundo desde o primeiro instante. As feridas abrem-se e não há bálsamo que as sare. Nunca fica tudo bem ainda que se finja estar sempre tudo bem: o corpo frígido rasga-se; os poros labirínticos fecham-se; a nossa boca não esconde tempestades rítmicas de medo e melancolia que transportam saudade, tanto silêncio.
O tempo, neste instante, são os dias exatos em que, com todo o meu corpo, te encontro: nas árvores, nos mares, nas nuvens. Encontro-te. Estás tão longe de mim, dentro de mim. Aquece-me, meu amor!]
Amor em Bolas de Sabão
[À data do teu aniversário, é ao redor das recordações que, todos os dias, por mim passam rente aos olhos que me tento apartar. Hoje, quero ainda mais dizer-te que os lugares que são teus e só teus continuam no mesmo sítio onde os deixaste. Todos os lugares que são teus continuam a existir com o mesmo vigor e com a mesma saudade do primeiro dia. Hoje, confesso-te: não conheço outra coisa que seja mais inquietante do que a não-existência. Reconhecer-se o vazio quando tudo o que se procura é uma parte, qualquer parte, que seja inteira.
Tenho saudades das flores amarelas ao cimo da rua. Dos gatos a saltarem-lhes por cima. Recordo-me de darmos as mãos e de as colhermos como se pudessem acabar. Os teus olhos azuis, cintilavam e brilhavam ao olhar-me como se eu fosse o Mundo. Perdoa-me a coragem mas tenho de te dizer que estavas enganada. Eu nunca fui o mundo. O mundo éramos nós. O Mundo era eu e eras tu. Agora, o Mundo é só a metade. É só a metade de alguma coisa que foi tão autêntica quando eterna. Por isso, um dia, as flores amarelas voltarão a existir nas tuas mãos. Um dia, haverei de partir à tua procura ou haverás tu de voltar ao meu encontro.
À data do teu aniversário, é como se os meus lábios sentissem a tua pele tão macia. É como se aqui estivesses e fôssemos equinócios temporais surpreendentes a percorrer cada pétala das flores que vezes sem conta adornaram as jarras cá de casa.
À data do teu aniversário, como faço em todos os outros dias, encosto o meu peito ao teu coração e espero pelo momento em que o Mundo seja, novamente, inteiro. Abraço-te!]
Silêncios Indisciplinados
[Este silêncio que se escuta entre sons é o que mais saudade carrega. Pedaço de nada que transporta tudo. A distância. A frieza dos sentidos dispersos entre melodias nenhumas. Depois, numa profundidade tão próxima, vejo o teu rosto semi-transparente. As minhas mãos trespassam-no. Depois, o corpo inteiro. Todo o meu corpo a trespassar o teu rosto e a sobreviver no seio dele. São contornos que não começam nem acabam. Eternizam-se sob a forma de magistral prolongamento da vida. A memória enfeitiçada num retorno ao passado, entre caminhos que são finíssimas linhas de algodão cruzadas e entrecruzadas entre si. Então, envelhece-se: os ramos murchos, as folhas secas; o passadiço da vida. Nada sai impune. Não há coisa alguma que escape ao buliçoso sentido de dependência que nos acorrenta. Nesse momento, que é todo o momento e momento nenhum em simultâneo, procura-se a harmonia nos outros, qual equilíbrio de afetos que nos pode devolver a música entre mãos que se dão e dedos que se atam ao sabor do vento.]
Uma História de Amor nunca morre
[Hoje, a mesma saudade!
A morte é uma qualquer voz que mantém o mesmo timbre regular até nos aniquilar a consciência.
A história é a única parte de mim e de ti que nunca morre. A história mantém-se sempre intacta sem que a morte tenha a coragem de a matar. A história é aquilo que de mais bonito nos une. São os olhos que lembram. Tudo começa nos olhos. No brilho subjacente à nossa loucura. É o recomeço. O sorriso aberto. A inocência de se ser tão autêntico quando verdadeiro. Nunca se lembra uma história que não seja inocente. Que não seja autenticamente embebida de grandiosa verdade.
O corredor que liga o quarto à cozinha mantém o ritmo compassado dos teus passos. Arrastavas os chinelos numa melodiosa harmonia de sons que ainda hoje se ouvem pela casa toda. A morte não é mais do que a acumulação do tempo sobre o tempo sobre o tempo. O tempo a amontoar-se. A morte a mascará-lo como se fosse carnaval o ano inteiro.
No meu mundo, o carnaval não existe. No meu mundo, o tempo não te matou!
Entreabro a porta do quarto.
Entre o silêncio, uma voz.
Firmemente, caminho em direção a ti.
Os teus olhos.
A nossa inocência.
Toda a verdade.
Chega-te a mim: abraçamo-nos!]
Uma fusão sem-fim de corpo com corpo
[Outrora,
Explorámos o toque de corpo com corpo como se fosse a última vez.
Apertámo-nos bem.
Fomos contornos da mesma pele como se alguma coisa alheia ao mundo nos houvesse fundido.
Hoje, foi o cheiro que te trouxe de volta.
O cheiro envolto nas palavras que sempre te saíram da boca como poesia atemporal.
Um enxoval de carinhos que partilhámos e que o tempo me devolveu sob a forma de magistral prolongamento dos gestos que continuam a existir.
Fomos inteiros nas partes que nos apartaram.
Fomos iguais na semelhança das diferentes estações que nos viram amadurecer como frutos doces, tão doces.
Enquanto houver o teu cheiro,
Haver-nos-á.
Sempre!]
A Poesia da Infância
[ É como o abandono da primeira infância, esta saudade de me dizeres coisa nenhuma. Os lugares onde fomos mágicos ressoam e ecoam na eternidade das recordações que não morrerão nunca. Sinto a frescura dos momentos em que sorrimos e bailámos como se fossemos infindáveis. Sem sair do sítio, os nossos olhos tocavam-se e nós bailávamos sob melodias tão perfeitas quanto autênticas. Sinto tudo isso como quem sente o mundo inteiro a penetrar pelos poros da pele e a alojar-se ali mesmo, na epiderme, para sempre. Depois, o silêncio das lágrimas a cair e a saudade de tudo aquilo que parte. A eternidade é um lugar perene onde se fica pouco tempo. Os costumes não crescem e as vontades afastam e afastam-se cada vez mais. Então, escolho viver o destino com outra vida. Deste quarto, olhar para o mundo com ternura e acenar-lhe. Depois, com os olhos embaciados, ser capaz de dizer em voz alta tudo aquilo que gostaria de dizer aos mortos, se adivinhasse vê-los, só mais uma vez! ]