Cerro as pálpebras, encerro o Mundo
[Quando cerro as pálpebras, encerro o mundo.
A chuva alastra-se violentamente do lado de fora. O vento assobia agreste e baila. Puxo os lençóis e tapo o rosto. Está escuro. Tentam falar-me como se existisse. Não os percebo.
Quero ser pó neste lugar. Quero privar o meu corpo de ser transformado em alguma coisa demasiadamente vaga. Quero que a certeza nos (re)encontre e me traga a textura da tua pele como quando usava laços a segurarem-me os caracóis loiros como raios de sol.
Quando cerro as pálpebras, sinto-me a tocar nos teus pulsos. Nunca deixaste de estar comigo neste lugar onde todos os seres respiram. Não há ser que se ame e que não respire! Eu deixo que vivas aqui dentro: onde a respiração ritmada dos nossos corações é visceral vida fugosa que avança sem que a vejamos avançar.
Quando, pela manhã, a luz trespassa os lençóis e me acorda, continuo a sentir-te como se aqui - em mim - estivesses. Os meus sonhos cor de arminho são eternos como quando os teus olhos penetram nos meus olhos e nos olhamos como se nunca mais nos fossemos olhar … até que nos olhamos novamente. Até que nos aproximamos novamente. Peito com peito. Suspiro com suspiro. Pele com pele.
Quando cerro as pálpebras, é como se o mundo me encerrasse no suspiro da Terra que continua, amorosamente, a inventar-nos.]
Um momento pode ser uma vida inteira...
[Quando éramos crianças usávamos cruzar as pernas sobre um mesmo chão e dançar sem que os nossos corpos se mexessem.
Secretamente, via os teus olhos a bailar em direção aos meus.
Eis o convite para darmos as mãos distantes, encostarmos coração com coração e dançarmos até o sol se fazer noite.
Os gatos eriçavam o pelo de contentamento ao modo que a nossa pele os percorria até à cauda.
Os pássaros interrompiam-nos o silêncio para nos seduzir com ensaiadas melodias rítmicas de sons harmoniosamente dispostos sob uma atmosfera tão perfeita quanto real.
Sempre fomos verdadeiramente invulgares nos minutos que nos percorriam as veias para se alojar na nossa memória. Sempre fomos intempestivamente (a)temporais num lugar comum que imortalizámos.
Nunca um momento dura apenas um encontro. Um momento fica em nós eternamente como quando se cai e se vê a cicatriz presa à pele para sempre.
Um momento pode ser uma vida inteira.
Hoje, com a criança que fui, sento-me sobre o mesmo chão onde tantas vezes nos sentámos. Num mesmo chão que recebeu os nossos corpos pequenos ao mesmo tempo que nos contemplávamos sem igual. Num mesmo chão onde os nossos olhos dançaram e onde os nossos corações se tocaram. Num lugar onde existimos ate o sol se fazer noite.
Este momento continua a ser a vida inteira.]
O teu corpo - uma celebração perfeita
[O Tempo, neste instante, são os dias exatos em que, com todo o meu corpo, te leio - linha por linha, poro por poro. As tuas mãos, o teu sorriso, o teu cheiro: tudo isto é parte de alguma coisa que o tempo não mata. Antes, todos os teus movimentos eram maravilhosos. Nunca fui capaz de te dizer que todos os teus movimentos eram maravilhosos. Hoje, olho-os de longe e sinto-os maravilhosos como se os visse e vivesse outra vez. Sinto-os como se eu e tu fossemos parte de uma bola de sabão adornada com as cores do arco-íris. Voássemos. Viajássemos. Caíssemos. Em uníssono, caíssemos.
Se o tempo algum dia te avisar que é o dia da despedida, por favor, nega-lhe a autoridade. Ainda que de mansinho, por favor, diz-lhe que a despedida desfaz o mundo desde o primeiro instante. As feridas abrem-se e não há bálsamo que as sare. Nunca fica tudo bem ainda que se finja estar sempre tudo bem: o corpo frígido rasga-se; os poros labirínticos fecham-se; a nossa boca não esconde tempestades rítmicas de medo e melancolia que transportam saudade, tanto silêncio.
O tempo, neste instante, são os dias exatos em que, com todo o meu corpo, te encontro: nas árvores, nos mares, nas nuvens. Encontro-te. Estás tão longe de mim, dentro de mim. Aquece-me, meu amor!]
Amor em Bolas de Sabão
[À data do teu aniversário, é ao redor das recordações que, todos os dias, por mim passam rente aos olhos que me tento apartar. Hoje, quero ainda mais dizer-te que os lugares que são teus e só teus continuam no mesmo sítio onde os deixaste. Todos os lugares que são teus continuam a existir com o mesmo vigor e com a mesma saudade do primeiro dia. Hoje, confesso-te: não conheço outra coisa que seja mais inquietante do que a não-existência. Reconhecer-se o vazio quando tudo o que se procura é uma parte, qualquer parte, que seja inteira.
Tenho saudades das flores amarelas ao cimo da rua. Dos gatos a saltarem-lhes por cima. Recordo-me de darmos as mãos e de as colhermos como se pudessem acabar. Os teus olhos azuis, cintilavam e brilhavam ao olhar-me como se eu fosse o Mundo. Perdoa-me a coragem mas tenho de te dizer que estavas enganada. Eu nunca fui o mundo. O mundo éramos nós. O Mundo era eu e eras tu. Agora, o Mundo é só a metade. É só a metade de alguma coisa que foi tão autêntica quando eterna. Por isso, um dia, as flores amarelas voltarão a existir nas tuas mãos. Um dia, haverei de partir à tua procura ou haverás tu de voltar ao meu encontro.
À data do teu aniversário, é como se os meus lábios sentissem a tua pele tão macia. É como se aqui estivesses e fôssemos equinócios temporais surpreendentes a percorrer cada pétala das flores que vezes sem conta adornaram as jarras cá de casa.
À data do teu aniversário, como faço em todos os outros dias, encosto o meu peito ao teu coração e espero pelo momento em que o Mundo seja, novamente, inteiro. Abraço-te!]
Silêncios Indisciplinados
[Este silêncio que se escuta entre sons é o que mais saudade carrega. Pedaço de nada que transporta tudo. A distância. A frieza dos sentidos dispersos entre melodias nenhumas. Depois, numa profundidade tão próxima, vejo o teu rosto semi-transparente. As minhas mãos trespassam-no. Depois, o corpo inteiro. Todo o meu corpo a trespassar o teu rosto e a sobreviver no seio dele. São contornos que não começam nem acabam. Eternizam-se sob a forma de magistral prolongamento da vida. A memória enfeitiçada num retorno ao passado, entre caminhos que são finíssimas linhas de algodão cruzadas e entrecruzadas entre si. Então, envelhece-se: os ramos murchos, as folhas secas; o passadiço da vida. Nada sai impune. Não há coisa alguma que escape ao buliçoso sentido de dependência que nos acorrenta. Nesse momento, que é todo o momento e momento nenhum em simultâneo, procura-se a harmonia nos outros, qual equilíbrio de afetos que nos pode devolver a música entre mãos que se dão e dedos que se atam ao sabor do vento.]
Uma História de Amor nunca morre
[Hoje, a mesma saudade!
A morte é uma qualquer voz que mantém o mesmo timbre regular até nos aniquilar a consciência.
A história é a única parte de mim e de ti que nunca morre. A história mantém-se sempre intacta sem que a morte tenha a coragem de a matar. A história é aquilo que de mais bonito nos une. São os olhos que lembram. Tudo começa nos olhos. No brilho subjacente à nossa loucura. É o recomeço. O sorriso aberto. A inocência de se ser tão autêntico quando verdadeiro. Nunca se lembra uma história que não seja inocente. Que não seja autenticamente embebida de grandiosa verdade.
O corredor que liga o quarto à cozinha mantém o ritmo compassado dos teus passos. Arrastavas os chinelos numa melodiosa harmonia de sons que ainda hoje se ouvem pela casa toda. A morte não é mais do que a acumulação do tempo sobre o tempo sobre o tempo. O tempo a amontoar-se. A morte a mascará-lo como se fosse carnaval o ano inteiro.
No meu mundo, o carnaval não existe. No meu mundo, o tempo não te matou!
Entreabro a porta do quarto.
Entre o silêncio, uma voz.
Firmemente, caminho em direção a ti.
Os teus olhos.
A nossa inocência.
Toda a verdade.
Chega-te a mim: abraçamo-nos!]
Uma fusão sem-fim de corpo com corpo
[Outrora,
Explorámos o toque de corpo com corpo como se fosse a última vez.
Apertámo-nos bem.
Fomos contornos da mesma pele como se alguma coisa alheia ao mundo nos houvesse fundido.
Hoje, foi o cheiro que te trouxe de volta.
O cheiro envolto nas palavras que sempre te saíram da boca como poesia atemporal.
Um enxoval de carinhos que partilhámos e que o tempo me devolveu sob a forma de magistral prolongamento dos gestos que continuam a existir.
Fomos inteiros nas partes que nos apartaram.
Fomos iguais na semelhança das diferentes estações que nos viram amadurecer como frutos doces, tão doces.
Enquanto houver o teu cheiro,
Haver-nos-á.
Sempre!]
A Poesia da Infância
[ É como o abandono da primeira infância, esta saudade de me dizeres coisa nenhuma. Os lugares onde fomos mágicos ressoam e ecoam na eternidade das recordações que não morrerão nunca. Sinto a frescura dos momentos em que sorrimos e bailámos como se fossemos infindáveis. Sem sair do sítio, os nossos olhos tocavam-se e nós bailávamos sob melodias tão perfeitas quanto autênticas. Sinto tudo isso como quem sente o mundo inteiro a penetrar pelos poros da pele e a alojar-se ali mesmo, na epiderme, para sempre. Depois, o silêncio das lágrimas a cair e a saudade de tudo aquilo que parte. A eternidade é um lugar perene onde se fica pouco tempo. Os costumes não crescem e as vontades afastam e afastam-se cada vez mais. Então, escolho viver o destino com outra vida. Deste quarto, olhar para o mundo com ternura e acenar-lhe. Depois, com os olhos embaciados, ser capaz de dizer em voz alta tudo aquilo que gostaria de dizer aos mortos, se adivinhasse vê-los, só mais uma vez! ]