Insofismável
INSOFISMÁVEL
Este corpo que atravessa a vida, a garganta, o tempo
atravessa o fosso, a fossa, o vento
sempre mensurável como o gado e o feno
Este corpo, irrecusável instrumento, indissoluvelmente afinado com o tempo
luta para se manter atento, pulsante e, às vezes, dormente
como porta, concha, moinho, cata-vento
Atravessa a noite, o sono, o sonho, a estação, o trem
a fronha, o cabelo, o pente
Veste caras, amores, rancores, bocas, dentes
abraços, espantos, pássaros, serpentes.
Atravessa o gozo, o abraço e a aguardente
Contudo, acorda pesado
e só não consegue atravessar a cova, a faca, a dor de dente.
Orgia Fúnebre
Gustav Doré
ORGIA FÚNEBRE
Comam-me todos os vermes
Façam a festa, se fartem
neste bacanal humano
que ofereço
Involuntariamente
Para mim,
pouco importa
os risos e os choros
-no fim
tudo é gozo
de alguém
DELICADEZA
DELICADEZA
Os gestos lembram
à mente
que precisam
ser contidos
quando o afago
é para o vidro
Hideraldo Montenegro
http://www.agbook.com.br/book/47928--FLORES_DE_MAIO
Certeza
CERTEZA
O que desta mão resta
luz, escuridão, fresta?
Que chão pouso a memória
por onde anda o vôo
a semente, o grão?
E o mundo em volta,
volta ao começo
de tudo
tudo é apenas recordação
pouso amplidão
E o chão nos espera
em estradas já traçadas
-linhas da mão
Palavras
PALAVRAS
A palavra é faca
é fala trapaça
é vala
quando mata
cala
A palavra é doce
é brasa
calor
verdade
calada
é dor
A palavra é cria
ação
do vento
que a mente
inventa
em movimento
A palavra é prosa
verso
universo
aberto
em construção
As palavras são
vidas
feridas
abertas
no tempo
Moral da História
MORAL DA HISTÓRIA
A carne dura
a vida dura
o sangue veloz
a mente escura
as noites intermináveis
o dia esperado
a tesão sem ato
o ato sem tesão
os olhos turvos
um nome sem peso
querendo se vingar
de tudo isto
quando um simples lexotan
ou uma missa
poderia resolver a questão
Rastros
Ilustração: Gustave Doré
RASTROS
Vou me deixando
aos poucos
- trocando a pele
e cada vez
rastejo mais
e não rejuvenesço
Identidade
IDENTIDADE
Que povo eu sou
que senta comigo no sofá
e que assiste a TV embasbacado?
Que povo eu sou
se não sou um
mas muitos nós?
Que povo eu sou
que vai à missa
e pede perdão e pede clemência
e salvação pelos erros
que cometem conosco comigo?
Que povo eu sou
incompleto e perdido?
Que povo eu sou
que vivo olhando
para o meu próprio umbigo
e não me encontro em mim
mesmo nos outros eus?
Que povo eu sou
se não sou eu?
Iniciação
INICIAÇÃO
Quantos corpos são passados em meu corpo?
Quantos mortos carregam o meu dorso?
Os olhos alcançam as coisas
Mas não a compreensão
Quando um homem desperta na Terra
uma luz se acende no firmamento
e estrelas se acendem nos olhos do iluminado
Cicatriz
CICATRIZ
para Graça Graúna
Solano sol
de cada manhã
a cor
do sol
doura a pele
de liberdade
a cada passo
a África
colada
à sola
da caminhada
é asa
Solano sol
poesia e rouxinol
canto da manhã
na cor
desterro e dor
de uma pátria
colada à sola
da caminhada
a cadência
marca
a fala
e fertiliza o chão
por onde a África
passa
Solano sol
da fala
a cor é flor
na marca
a pele
aberta
desabrocha o sorriso
na dor
como uma flor
nasce
no asfalto
como um assalto
um sobressalto
dos pés
na caminhada
que a pele
livre
carregada de sol
fez da cultura
humana
beija-flor
Overmundo:
http://www.overmundo.com.br/banco/cicatriz-2
Solano Trindade nasceu no bairro de São José (Recife-PE), em 24 de julho de 1908. Filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Emerenciana, mais conhecida como Merença. Ele foi pintor, teatrólogo, folclorista, ator e, sobretudo, poeta da resistência negra. Em 1936, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro.