Poemas, frases e mensagens de Hideraldo

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Hideraldo

Pernambuco, nasceu em 1957. Publicou artigos, contos e poesias em vários jornais e revistas. Atualmente está hospedado em vários sites de literatura

Insofismável

 
INSOFISMÁVEL

Este corpo que atravessa a vida, a garganta, o tempo
atravessa o fosso, a fossa, o vento
sempre mensurável como o gado e o feno

Este corpo, irrecusável instrumento, indissoluvelmente afinado com o tempo
luta para se manter atento, pulsante e, às vezes, dormente
como porta, concha, moinho, cata-vento

Atravessa a noite, o sono, o sonho, a estação, o trem
a fronha, o cabelo, o pente

Veste caras, amores, rancores, bocas, dentes
abraços, espantos, pássaros, serpentes.

Atravessa o gozo, o abraço e a aguardente

Contudo, acorda pesado
e só não consegue atravessar a cova, a faca, a dor de dente.
 
Insofismável

Orgia Fúnebre

 
Orgia Fúnebre
 
Gustav Doré

ORGIA FÚNEBRE

Comam-me todos os vermes
Façam a festa, se fartem
neste bacanal humano
que ofereço
Involuntariamente

Para mim,
pouco importa
os risos e os choros

-no fim
tudo é gozo
de alguém
 
Orgia Fúnebre

DELICADEZA

 
DELICADEZA

Os gestos lembram
à mente
que precisam
ser contidos
quando o afago
é para o vidro


Hideraldo Montenegro
http://www.agbook.com.br/book/47928--FLORES_DE_MAIO
 
DELICADEZA

Certeza

 
CERTEZA

O que desta mão resta
luz, escuridão, fresta?
Que chão pouso a memória
por onde anda o vôo
a semente, o grão?

E o mundo em volta,
volta ao começo
de tudo
tudo é apenas recordação
pouso amplidão

E o chão nos espera
em estradas já traçadas
-linhas da mão
 
Certeza

Palavras

 
PALAVRAS

A palavra é faca
é fala trapaça
é vala
quando mata
cala

A palavra é doce
é brasa
calor
verdade
calada
é dor

A palavra é cria
ação
do vento
que a mente
inventa
em movimento

A palavra é prosa
verso
universo
aberto
em construção

As palavras são
vidas
feridas
abertas
no tempo
 
Palavras

Moral da História

 
MORAL DA HISTÓRIA

A carne dura
a vida dura
o sangue veloz
a mente escura
as noites intermináveis
o dia esperado
a tesão sem ato
o ato sem tesão
os olhos turvos
um nome sem peso
querendo se vingar
de tudo isto

quando um simples lexotan
ou uma missa
poderia resolver a questão
 
Moral da História

Rastros

 
Rastros
 
Ilustração: Gustave Doré

RASTROS

Vou me deixando
aos poucos
- trocando a pele
e cada vez
rastejo mais
e não rejuvenesço
 
Rastros

Identidade

 
IDENTIDADE

Que povo eu sou
que senta comigo no sofá
e que assiste a TV embasbacado?

Que povo eu sou
se não sou um
mas muitos nós?

Que povo eu sou
que vai à missa
e pede perdão e pede clemência
e salvação pelos erros
que cometem conosco comigo?

Que povo eu sou
incompleto e perdido?
Que povo eu sou
que vivo olhando
para o meu próprio umbigo
e não me encontro em mim
mesmo nos outros eus?

Que povo eu sou
se não sou eu?
 
Identidade

Iniciação

 
INICIAÇÃO

Quantos corpos são passados em meu corpo?
Quantos mortos carregam o meu dorso?

Os olhos alcançam as coisas
Mas não a compreensão

Quando um homem desperta na Terra
uma luz se acende no firmamento
e estrelas se acendem nos olhos do iluminado
 
Iniciação

Cicatriz

 
CICATRIZ

para Graça Graúna

Solano sol
de cada manhã
a cor
do sol
doura a pele
de liberdade
a cada passo
a África
colada
à sola
da caminhada
é asa

Solano sol
poesia e rouxinol
canto da manhã
na cor
desterro e dor
de uma pátria
colada à sola
da caminhada
a cadência
marca
a fala
e fertiliza o chão
por onde a África
passa

Solano sol
da fala
a cor é flor
na marca
a pele
aberta
desabrocha o sorriso
na dor
como uma flor
nasce
no asfalto
como um assalto
um sobressalto
dos pés
na caminhada
que a pele
livre
carregada de sol
fez da cultura
humana
beija-flor

Overmundo:
http://www.overmundo.com.br/banco/cicatriz-2

Solano Trindade nasceu no bairro de São José (Recife-PE), em 24 de julho de 1908. Filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Emerenciana, mais conhecida como Merença. Ele foi pintor, teatrólogo, folclorista, ator e, sobretudo, poeta da resistência negra. Em 1936, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro.
 
Cicatriz

AMANHECER

 
AMANHECER

Então, por não entender o canto
a ave de espanto assume a postura
do vôo que enfrenta os ventos
e gritos dilacerados assombram o cantar
do pássaro humano preso na garganta

A liberdade é só um salto
da voz que atinge a alma
em pleno vôo.

E, todos os caminhos voam
para um céu aberto
à morte do homem
e a liberdade do pássaro
solto na voz.

E todo dia se faz de repente,
sem avisos e canta a luz
do grito nascente na voz
no amanhecer
do pássaro que voa
todos os dias
nos homens

Hideraldo Montenegro

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AMANHECER

PRISÃO

 
PRISÃO

O riso solto
na gaiola
grita
a sua dor
de não ser

Hideraldo Montenegro
http://www.agbook.com.br/book/47928--FLORES_DE_MAIO
 
PRISÃO

Perto

 
PERTO

Tão longe eu moro
Que não existem portas abertas
Tão longe eu moro que nem portas existem
De tão longe a paisagem só existe
E divide o espaço
Da minha distância

De tão longe
Vivo tão perto
De mim mesmo
sem Fronteiras

De tão longe
Não sou alcançado
Pelo dano que causaria
A mim mesmo

De tão longe
Vivo de janelas abertas
Sem temor
Nem mesmo do diabo

De tão longe
Vivo encontrado
Em diversos horizontes
Abertos

De tão longe
Vivo
Debruçado sobre a paz
 
Perto

Indecifrável

 
INDECIFRÁVEL

O poema que não escrevi
é feito de carne
tem nome largo
e palavras de forma

O poema que não escrevi
dorme comigo todos os dias
revira meus sonhos
torna-se insônia

O poema que não escrevi
come, bebe, faz sexo
e, às vezes, sai pelo nariz

O poema que não escrevi
vive na lama, no lixo
no luxo, na cama

O que poema que não escrevi
é macho, puta, bicha louca
-desenho que não sai da boca

O poema que não escrevi
é leve, é pluma
pesado tiro
é chumbo, é morte
é casulo, é seda
é sorte que não chega

O poema que não escrevi
Inscreve-se em mim
como cicatriz
como uma dor, um parto
um sapato apertado

O poema que não escrevi
Jamais escreverei
 
Indecifrável

IMPULSIVO

 
IMPULSIVO

Mas, a palavra que me assusta
sobe garganta acima
e explode na boca
vergonhosamente
como bomba em Hiroshima
e arrasa quarteirões

E, entre mortos e feridos
sigo cambaleante
na vida
 
IMPULSIVO

Alquimia

 
ALQUIMIA

Todo homem é água
nada
separa os homens
do oceano ao qual pertencem
Mar
e suas ondas
Maré
-alquimia das praias-
Estes vai-e-vens
não são em vão
Se encolhem ou se expandem
mas objetivam a modelação
Todo litoral tem seu porto
de chegada ou partida
Sal
os homens são
pontes
entre a terra e o ar
Fogo sol
a lhes incendiar o dia
e lhes mover diariamente
Todo homem está mergulhado
no lar
flutua ou se afoga
no útero de sua origem
mar
 
Alquimia

Indisfarçável

 
INDISFARÇÁVEL

Mas, a língua que toca
o céu
da tua boca
embota
a fala
que se espalha
nos teus olhos
- sala aberta da palavra
 
Indisfarçável

Lembranças

 
LEMBRANÇAS

Coleciono palavras antigas
e um gosto estranho pelo bordado da caminhada
dos pés estradas pontes rios

Estruturo gestos largos e deixo fluir
o riso e a lágrima com a mesma intensidade
dos navios que cruzam mares rostos olhares

Fixo os olhos das meninas em minha cara
e guardo sempre abertas lembranças

Não disfarço minhas fantasias
Sigo aberto
sempre com o coração à frente
desta procissão de mim mesmo
 
Lembranças

Alumbramento

 
ALUMBRAMENTO

Lá na linha do horizonte
Assistimos o trem cruzar o luar
Como um sorriso de Deus
 
Alumbramento

Percurso

 
PERCURSO

Esta travessia que o morto faz no corpo
é uma eterna procura
por um porto
além do tempo
do eterno pouso
 
Percurso