Poemas, frases e mensagens de TeresaMarques

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de TeresaMarques

A Mais Bela Fórmula

 
Desde miúdo tenho por hábito contar pelos dedos os segundos que duram o sinal vermelho. Cedo aprendi os números até vinte por o meu pai tamborilar sobre o volante aqueles segundos de desafio previsto todas as manhãs até ao colégio. Os números aprendi cedo. Talvez tenha sido esse o meu primeiro sucesso que, durante algum tempo, rendeu chupas e gomas dos amigos lá de casa, embora a minha prematura aptidão para a matemática não tenha vindo a revelar-se o sucesso por todos garantido. Antes pelo contrário. O meu pai bem se esforçou pelo meu reconhecimento de que os matemáticos também falam da estética e da elegância das suas demonstrações, mas, para mim, a mais bela fórmula do mundo é a metáfora. Só na puberdade é que compreendi o dito comum do meu padrinho de que a mais bela "forma" do mundo era a mulher. Ainda hoje não sei se ele se referia à mulher ou à Mulher. A primeira (dele) não deve ter sido. Quanto à segunda hipótese, passámos a estar de acordo. O ritmo até perfazer a duração exacta do sinal só o tempo o ditou. Formular um desejo até o semáforo abrir é mais recente. Gosto de desafios...
 
A Mais Bela Fórmula

Magnólia

 
Sumário: Apresentação. Conteúdos programáticos. Critérios de avaliação. Fechou o livro de ponto e escreveu o nome no quadro: Magnólia. Rumor de vozes ao fundo da sala. Risadas. Pousou o giz e virou-se de frente para a turma. Trinta alunos. Tantos quantos os itens do Auto-retrato que iria distribuir em seguida. Proferiu as primeiras palavras:
- O meu nome é Magnólia.
Do fundo da sala, de forma suficientemente audível para não ser ignorado, um aluno declarou:
- My name is Bond. James Bond.
Risadas. A professora fixou o aluno. Este volveu um olhar de desafio. No ano lectivo anterior, uma intervenção como aquela teria definido um muro de arestas finas e cortantes. Porém, a professora sorriu e perguntou-lhe:
- E o James Bond sabe o que é uma magnólia?
Risadas. Os olhares expectantes dirigiram-se para o colega da turma. Este respondeu em tom de provocação:
- Não. Mas sabe o que é uma …
A última palavra não foi compreensível para a professora.
Risadas. A professora sorriu para a turma. Em seguida, perguntou:
- Alguém sabe o que é uma magnólia?
O colega de carteira do James Bond espreguiçou-se e levantou a mão. A professora consentiu a intervenção. Este declarou:
- Um filme com o Tom Cruise.
Ignorando a professora, outro aluno prontamente interveio:
- Não é nada um filme! É um CD, mas eu tenho em MP3. É bué de fixe, meu.
Uma aluna deu sinal, quase imperceptível, de que sabia a resposta. A professora deu-lhe a palavra.
- É uma flor.
A professora sorriu.
- E tu chamas-te?...
- Margarida.
A professora ainda pensou dizer-lhe que margarida também era nome de flor, mas nada disse. Apenas acenou afirmativamente. Depois de fazer a chamada, certificar-se-ia se o nome da aluna era efectivamente Margarida.
Ano novo, vida nova! pensou a professora. Mais precisamente, ano novo, escola nova! Desta vez por três anos. E a ideia tranquilizava-a. Poderia não só assegurar a continuidade pedagógica, mas também adquirir um vínculo mais efectivo com a comunidade escolar. No ano anterior, tinha sentido palpitações, as mãos transpiradas, a voz a sumir-se-lhe. Desta vez sentia-se confiante, serena. Mantivera o contacto visual com o James Bond, e isso era um progresso. Contornara o desafio desde o primeiro momento. Considerou a hipótese de dizer-lhes que seria professora deles durante três anos, mas guardou o seu trunfo. Além disso, era a directora de turma, e esse facto pesava a seu favor.
Fez a chamada. A aluna que sabia que magnólia era nome de flor chamava-se efectivamente Margarida. Depois do preenchimento da ficha individual da caderneta, entregou a cada aluno uma ficha com trinta itens intitulada Auto-retrato. A ficha gerou comentários à medida que os alunos iam lendo algumas das questões. O James Bond levantou a mão. A professora deu-lhe a palavra.
- A setôra também vai fazer o seu auto-retrato?
O tom pareceu-lhe irónico, mas a professora não hesitou na resposta.
- Se assim o desejarem…
Logo uma voz se revelou:
- Era fixe, setôra! A setôra é nova na escola, não é?
Ainda nem tinha acabado de dizer que sim, quando, com um sorriso que mais parecia um abraço, um outro aluno disse:
- Já sei o que vai responder na 12.
Assim que o item número doze foi identificado, ouviu-se um coro:
- Magnólia!
Uma voz sobressaiu do coro:
- A setôra podia apresentar-se primeiro…
A professora passeou os olhos pela turma, auscultando a adesão à proposta. Fez-se silêncio. Sabia que estava a ser posta à prova, mas a voz não a traiu.
- Pode ser.
Não lhe ocorreu ter preenchido o retrato antecipadamente. E um auto-retrato não se improvisa… Ano novo, escola nova, desafios novos! O James Bond mandou calar os colegas à sua volta, os quais trocavam impressões sobre o que já tinham começado a responder.
- Prometo ser breve. – disse a professora.
Assomou-lhe uma ideia que lhe pareceu oportuna.
- Apresentar-me-ei em poucas palavras, porque vocês terão três anos para descobrir o resto.
- Três anos?!
O James Bond nem queria acreditar.
- Vai ser nossa setôra três anos?!
- Sim. Sou nova na escola, mas vim para ficar. Então, vamos lá! Principal traço da minha personalidade: paciente. Mas, a paciência tem limites, como tudo afinal… Qualidade que mais aprecio num homem: sinceridade; numa mulher: siso.
A palavra fez eco na sala.
- Importa-se de repetir?
- Siso. Não conhecem a palavra? Então, já têm trabalho para casa. Ver no dicionário a palavra siso.
Dirigiu-se para o quadro e escreveu a palavra. Um restolhar de folhas mostrou que as palavras dela tinham sido levadas a sério. Ainda pensou dizer-lhes que estava a brincar, mas eles estavam a levá-la a sério. Ainda bem! pensou a professora.
- O que mais aprecio nos meus amigos: pontualidade.
Algumas alunas entreolharam-se como se as palavras da professora fossem uma pena suspensa.
- O meu principal defeito: acreditar que tudo tem solução. A minha ocupação preferida: corrigir testes.
O sorriso com que acompanhou as palavras denunciou a sua intenção em parecer séria.
- A minha ocupação preferida: andar de patins.
- Fixe. A setôra já foi ao Parque da Liberdade? Aos fins-de-semana andam lá de patins.
A professora mostrou apreço pela informação.
- Não sou de cá, mas vocês depois explicam-me onde é. O meu sonho de felicidade: vocês todos passarem o ano.
Risadas. Os olhares dirigiram-se para o James Bond, que pareceu ignorar tal facto.
- O meu maior desgosto seria: ficar sem trabalho. O que eu gostaria de ser…
Ainda pensou dizer: feliz, mas não ousou.
- O que eu gostaria de ser: o Sol, para iluminar os espíritos. O país onde eu gostaria de viver: neste jardim à beira-mar plantado.
Os alunos olharam-se atónitos.
- Portugal. – explicitou a professora – A minha cor preferida: azul.
- A setôra é do Porto?
A pergunta pareceu-lhe suspeita.
- Não. Sou da terra onde nasci.
O sorriso cúmplice não consentiu nova pergunta, até porque alguém logo disse:
- E a flor que mais gosta é a magnólia.
- Também gosto de magnólias. Mas, rosas são sempre rosas! O meu animal preferido: o gato.
- Eu tenho uma gata. – disse uma aluna sentada perto da janela – Quer ver a fotografia dela?
A professora deslocou-se até junto da aluna e olhou a fotografia no telemóvel.
- É bonita. Os autores que mais aprecio…
O James Bond mostrou eloquência:
- Camões, grande Camões!
A professora fixou-o.
- “Quão semelhante / acho teu fado ao meu, quando os cotejo!” São tantos! Os meus heróis preferidos na ficção: Calvin e Hobbes. Lêem o Público?
- O quê?! A setôra gosta de BD?!
- E desenhos animados. Podem crer!
- Podíamos ver um filme na aula. Era fixe. O Madagáscar! A setôra já viu o Madagáscar?
- Claro!
- Podemos ver desenhos animados na aula?! Fixe, meu!
- Não, vi o Madagáscar.
- Ah! ´Tava a ver.
- Bem, assim não acabo… Os meus heróis na vida real… Sinceramente, não sei o que lhes diga!
- O Cristiano Ronaldo! A setôra não diga que não sabe quem é o Cristiano Ronaldo!
A professora sorriu.
- O que eu detesto acima de tudo: poluição sonora. Traço de personalidade que não suporto: a arrogância. O feito que mais admiro: o 25 de Abril.
- Eu ainda nem tinha nascido!
- Eu também não… O dom da natureza que gostaria de possuir…
A professora dirigiu-se para o quadro.
- Oh! Não! Mais TPC!
A professora ignorou o comentário. Escreveu no quadro: ubiquidade. Novo restolhar de folhas. A palavra foi registada nos cadernos. Está a correr bem! pensou a professora.
- O meu estado de espírito actual…
A professora passeou os olhos pela turma. As palavras dela soaram com a maior sinceridade:
- … feliz por conhecer-vos e partilhar convosco este momento!
Silêncio. Uma voz ergueu-se:
- O que é que quer dizer indulgente?
A professora pareceu surpreendida com a pergunta, mas era a questão seguinte. Não se lembrara de colocar a palavra no quadro, como habitualmente. Ano novo, vida nova, apresentação diferente.
- Indulgente: tolerante. Sou indulgente com quem o merece. O meu lema de vida: vive e deixa viver. A data mais importante para mim: o meu aniversário.
- A setôra faz como o prof. de Inglês? Também falta no dia de aniversário?
- Este ano é num domingo… Azar o vosso! Aquilo de que tenho mais saudades: das férias.
Os alunos teceram comentários entre eles. A professora não os interrompeu. O olhar dela fixou-se no desenho de uma flor, no frontispício do seu dossiê: uma magnólia. Desenhara-a um amigo. Sim, tinha saudades. Aquilo de que tinha mais saudades era dos instantes de poesia do chocolate partilhado, do prazer intelectualizado que cada café oferecia, dos passeios pela serra ao fim da tarde. A perfeita convicção de que não se deve esperar por nada, porque a vida deve ser vivida a cada instante, porque passa sem parar e nunca retrocede, com a lógica dos rios e não com a lógica dos astros. Aquele desenho permanecia no frontispício do seu dossiê, revelando uma presença ausente. Três anos, três escolas, três cidades... Nos breves instantes que lhe duraram aqueles pensamentos, a emoção assomou-lhe ao peito. Saudades, sim, eram saudades o que sentia.
- Setôra, a vinte e seis?
- Aquilo que mais me emociona: os animais abandonados. Uma leitura que eu recomendo: o Regulamento Interno da Escola.
O James Bond foi oportuno. Não havia desafio nas palavras dele:
- A setôra é que é nova na escola!
A professora não conseguiu evitar um sorriso.
- Exactamente. Recomendo a mim própria.
A turma riu. A professora também. O gelo havia sido quebrado. O momento chave não o conseguiu identificar, mas soube que a cumplicidade era recém-nascida.
- O meu prato preferido: piza.
- A setôra sabe que vai deixar de haver piza no bar? Que não é saudável?
- O.K. Esparguete à bolonhesa. A minha relação com o telemóvel: ansiedade. Porque toca e porque não toca.
A turma riu.
- A minha apresentação já vai longa. Que horas são?
A pergunta era dirigida ao James Bond, porque o James Bond estava a consultar o telemóvel, facto que tentou ocultar quando a professora olhou para ele.
- Falta a última, setôra.
- Ah! O momento do dia que eu prefiro: quando a campainha toca!
- Ainda só passaram vinte minutos, setôra. – disse o James Bond.
- Ainda bem! Agora, vamos lá a preencher o questionário. Não vale cabular.
Os alunos riram-se. Fez-se silêncio. Por vezes, confrontaram as respostas, prosseguindo o auto-retrato. Pareciam inspirados.
Outras apresentações seguiram-se ao longo da manhã. Não só as dos alunos, mas também as dos colegas. Uma escola nova não é muito diferente das outras. Há unidade dentro da diversidade. A ideia de permanecer três anos numa escola trazia-lhe um conforto insuspeito. Estabelecem-se laços afectivos mais duradouros. No ano seguinte, não haveria a mesma ansiedade.
Depois das aulas, foi andar de patins no dito Parque da Liberdade. Aceitou a amabilidade de um colega que, além de a levar ao recinto, lá permaneceu a horita em que ela praticou um pouco. Ambos riram-se do despropósito de ocupar assim parte da tarde, numa época de imenso trabalho. Perante factos não há argumentos. Magnólia sentia-se livre, alheada das vicissitudes do dia-a-dia. Os patins e um recinto apropriado e até se esquecia que estava a dezenas de quilómetros de casa. Ao colega, já à mesa do café, enquanto fumava um cigarro, a apresentação foi bastante diferente. O colega ouvia-a atentamente. Já todos passámos por isso! dizia-lhe ele. Também só estou naquela escola há meia dúzia de anos. Se posso escolher o turno, manhã de preferência, não asseguro necessariamente a continuidade pedagógica. Mas, tenho dois filhos para deixar cedo no colégio, e o trânsito é imprevisível. Na verdade, mais do que previsível. A maior parte das minhas faltas são por causa do trânsito. Magnólia ouvia-o atentamente. Idealizava uma família a que pudesse chamar sua. Nem que tivesse de se levantar às seis da manhã! dizia-lhe. Mas, sem local fixo de trabalho ninguém cria raízes. Agora estava mais confiante. Três anos deixavam-lhe a sensação de que todos os sonhos poderiam realizar-se.
Dias depois, deu início às aulas de apoio educativo a um aluno com síndrome de um nome impronunciável, que no essencial se reduzia a dificuldade de concentração. A turma sempre ruidosa era o motivo apresentado pelo aluno para o seu insucesso.
- Não sei nada de gramática, setôra!
Estas foram as suas primeiras palavras. A professora fixou-o.
- Português não é só gramática!
Quem é este aluno? pensou a professora. Pensar na disciplina de Português era pensar na gramática?! E as emoções? Qual a gramática das emoções? Qual a geografia das emoções? Começou por lhe pedir um instante feliz da sua infância. Que não pensasse em gramática! Que sabores, que aromas, que vozes, que cores lhe vinham à memória? Quando a campainha tocou, ainda ficaram durante o intervalo a limar o texto criativo produzido pelo aluno com síndrome de um nome impronunciável, que afinal sabia ter sido feliz, mas que nem a gramática nem o ruído o deixava lembrar-se de tal facto.
Na semana seguinte, pensar-se-ia na gramática. A vida deve ser vivida a cada instante! pensou a professora. Efectivamente, aquela aula de apoio educativo tinha sido um instante que merecia registo. Instantes como aquele faziam-na sentir orgulho numa profissão tão ingrata quanto a dela. Quem adquire a segurança da estabilidade de uma família, de um local fixo de trabalho, obedece a outras contingências. Magnólia tinha local de trabalho assegurado por três anos o que lhe daria alguma estabilidade, ainda que reduzida, mas permanecia uma ave migratória sem ninho. Presa por ter cão e presa por não ter cão! pensou a professora. Ao pensar em cão, desenhou-se-lhe um sorriso no rosto. Enquanto organizava o dossiê da direcção de turma, uma colega tinha entrado na sala dos directores de turma e perguntado se alguém tinha visto o Óscar naquela manhã. Pensou o pior. Prontamente respondeu à colega:
- Esta manhã, quando cheguei, ele estava deitado na relva!
Fez-se silêncio. E os olhares convergiram para ela. Todos os presentes desataram a rir, excepto Magnólia. Ainda com alguma dificuldade em conter o riso, a colega elucidou-a que procurava o colega Óscar, de Matemática, e não o cão da escola. O equívoco já se estendera pela sala de professores, porque os olhares sorridentes assim o indiciavam. Foi o próprio colega quem se lhe apresentou dali a instantes:
- Olá, colega Magnólia! Sou o Óscar, mas não mordo, assim como o meu homónimo!
Magnólia já não era a colega nova na escola. Tinha nome – Magnólia – ainda que a sua apresentação naquele caso em particular tivesse sido curiosa. Agora, fazia outra leitura daquele instante, mas há instantes e há instantes…
Sexta-feira, finalmente! pensou a professora. Alugara um T1 nas proximidades da escola, o que até fora uma agradável surpresa. Viu o correio. Uma carta do banco e outra da mãe. Abriu primeiro a da mãe que apenas reenviava uma carta da universidade onde Magnólia se licenciara: “Sessão solene de entrega de diplomas. A presença dos licenciados à sessão solene deverá ser confirmada, pelos próprios, no destacado abaixo, até ao dia 30 do corrente. Todos os licenciados utilizarão os distintivos de curso, que a associação académica fornecerá, para a ocasião, a título de empréstimo, mediante identificação. O traje é de passeio. Esclarece-se que a universidade não tem meios de financiar quaisquer deslocações, nem alojamento dos não-residentes nesta cidade.” Logo agora! pensou Magnólia. Em seguida, abriu a carta do banco: “ (…) actualizou os critérios de cobrança de despesas de manutenção, continuando a estar isentas as contas que apresentem os seguintes requisitos. (…) No segundo trimestre do corrente ano, a conta em referência não apresentou nenhum dos requisitos de isenção pelo que não poderá continuar a usufruir da isenção de despesas de manutenção.”
Os patins permaneceram silenciosos até à manhã seguinte, quando uma mensagem fez vibrar o telemóvel: “Se quiseres boleia para ir andar de patins, liga-me antes das onze horas.” Magnólia nem hesitou.
O colega apresentou os dois filhos, que iam ter a primeira aula de patinagem.
- Levei o folheto informativo. Eles entusiasmaram-se com a ideia, e marquei aula para as onze horas. Não consegui foi convencer a mãe…
Magnólia sorriu.
- E o pai está convencido?
O miúdo mais novo não aguardou pela resposta.
- O papá tem medo desde que caiu da trotineta!
O colega tapou os ouvidos.
- Isso não era para ser dito! O que é que a senhora professora vai pensar do papá?!
No recinto, o James Bond e outros dois colegas. Magnólia nem queria acreditar. O impacto da presença foi recíproco. Eles não tinham patins, não tinham alugado patins, nem tinham aula marcada. Vieram certificar-se! pensou Magnólia. O James Bond tirou um dos phones.
- Olá, setôra! Pronta para as curvas?
Magnólia deteve o olhar nele para avaliar as palavras, cujo tom mereceu empatia.
- Sempre!
Os colegas entreolharam-se. Mantiveram os phones e apenas levantaram o polegar. Magnólia cumprimentou-os com um aceno. Por um instante, abstraiu-se do contexto, da música que já dava os primeiros acordes e da algazarra das crianças que preenchiam o campo. O colega e os filhos dele ali presentes eram a sua família de empréstimo, naquela manhã de sábado. O monitor aproximou-se, cumprimentou os miúdos, e Magnólia entrou no campo.
Na aula de segunda-feira, entregou aos alunos a convocatória para a reunião de pais assim como a comunicação do horário de atendimento aos encarregados de educação. A aula prestes a iniciar-se adivinhava-se mais tranquila do que as anteriores. Um foco de conversa mereceu o reparo da professora. Um dos alunos interveio.
- A setôra sabe mesmo fazer uma águia?
A professora fixou o aluno atentamente.
- Fazer uma águia? Ah! Sim, curvar em águia. Também.
- Vês, vês? Eu não te disse?!
O James Bond já divulgara a novidade, mas apenas aquele grupo parecia saber do assunto.
Na aula seguinte, o James Bond não interrompeu o normal funcionamento da aula com os seus comentários inoportunos, nem fez qualquer referência ao que assistira no recinto desportivo. No final da aula, os alunos devolveram o destacável da convocatória para a reunião de pais assim como o da comunicação do horário de atendimento e deixaram a sala sem o estrépito da semana anterior. A professora recolhia os seus materiais, quando encontrou sobre a sua mesa uma folha com um desenho de uma flor praticamente idêntica à do seu dossiê – uma magnólia pintada a aguarela e pastel. Susteve a respiração por instantes. O desenho não estava assinado, mas as semelhanças eram demasiado evidentes. Alguém observara minuciosamente a do dossiê dela e reproduzira um exemplar quase perfeito. Um admirador secreto! pensou a professora. Uma manifestação silenciosa de carinho, precisamente na turma onde ela sentia mais apreensão sempre que ia para a aula.
As aulas e os conselhos de turma preencheram a semana. A turma de Magnólia, na voz dos colegas, era uma turma difícil. A maioria dos alunos beneficiava do apoio do serviço de acção social escolar, sem serem apenas os de famílias monoparentais. Carências não só económicas mas também afectivas eram geradoras de desequilíbrios, cujo reflexo mais evidente se traduzia na falta de motivação e consequente indisciplina, fraca assiduidade e retenções sucessivas. Magnólia ainda pensou em referir o desenho que alguém da turma lhe tinha oferecido, mas não ousou. Durante as aulas dessa semana, procurou um indício que a orientasse para a identificação do seu admirador secreto, mas ninguém se denunciou. Nos dias em que o James Bond não comparecia, as aulas funcionavam dentro de parâmetros razoáveis. Nos dias em que comparecia, Magnólia redobrava a vigilância para evitar o que pudesse motivar qualquer confronto. A correspondência enviada para o encarregado de educação a informar sobre a assiduidade do James Bond tinha sido devolvida ao remetente, mas uma vez feito o registo em como fora expedida, nada haveria a recear. O único número de contacto era o de telemóvel que dizia “número não atribuído”. Até já considerara a hipótese de se deslocar pessoalmente a casa do James Bond.
O tema para o plano anual de escola – Como viver a mudança? – afigurava-se-lhe relevante, merecedor de reflexão atenta, embora no momento só lhe ocorressem as mudanças de direcção na patinagem: dois tempos, dois apoios, salto. Na reunião de departamento, assistiu ao debate entre dois colegas sobre se toda a mudança, ainda que desejada, era ou não geradora de conflito. A reunião já ia longa, e Magnólia sentia-se padecer da tal síndrome de nome impronunciável, porque só lhe apetecia pedir uma travagem na discussão. Podiam optar por travagem em cunha, em “T” à frente, ou lateral…
A primeira participação disciplinar chegou-lhe na manhã de segunda-feira. O teste diagnóstico de Inglês do James Bond tinha sido anulado. Magnólia leu o relatório e solicitou ao James Bond que lhe entregasse por escrito a sua versão da ocorrência. No final da aula, leu o relatório por ele produzido: “No texte de inglês sentei-me ao lado do Fábio porque ele é fixe e copiei nas calmas. Até porque o prof. estava sentado há secretària não precebi que os textes eram diferentes e que as minhas respostas nada tinha haver com as perguntas. Axo que fiz mal e que o prof. não devia penalisar o Fábio porque ele é fixe.”
Por se tratar de um aluno problemático, o professor de Inglês solicitou à directora de turma que o aluno fosse advertido e propôs que este realizasse outro teste numa turma onde este ainda iria decorrer. Magnólia decidiu aguardar pela reunião com os encarregados de educação, no final da semana, embora considerasse remota a hipótese do pai comparecer. Na reunião estiveram presentes cinco encarregados de educação, de uma turma de trinta alunos. Nenhum era o pai do James Bond. Terei de ir a casa dele! pensou a professora.
Ao sair da última aula, no dia seguinte, foi informada pela funcionária que deveria dirigir-se ao conselho executivo. A presidente da escola explicou-lhe o sucedido. Tinha havido um incidente com um encarregado de educação da turma de que Magnólia era a directora. Um senhor que parecia ter algum conflito com a gravata (Estava sempre a ajustar o nó!) e com o comprimento das mangas do casaco (Estava sempre a medi-las!) dizia ser uma pessoa importante na cidade (Advogado de renome!) tinha insistido em falar com a directora de turma naquele preciso momento. Tinha sido o colega Óscar quem o recebera. Depois de ter verificado o horário de atendimento afixado na sala, o colega Óscar informou o dito senhor que estava equivocado no dia e na hora, pelo que não poderia ser atendido. O dito senhor importante disse saber disso muito bem, mas tinha uma reunião importante precisamente a essa hora. O colega Óscar chamou o funcionário auxiliar e remeteu o senhor importante para o conselho executivo. A presidente parecia bem-humorada ao narrar o facto, o que tranquilizou Magnólia. (Ainda bem que ele me ligou cá para baixo!) Quando o senhor importante entrou de rompante no conselho executivo, a presidente perguntou ao senhor importante se este tinha marcado hora para ser atendido. (Então, solicite por escrito uma audiência e aguarde confirmação posterior!) Tratava-se do pai do Simão…
- … do James Bond! – interrompeu Magnólia.
Aos encarregados de educação, a escola pede colaboração, que estes acompanhem regularmente os seus educandos nas suas actividades escolares, que justifiquem as faltas, que garantam a troca de correspondência com a escola, enfim, que permitam o diálogo entre as partes. A correspondência viera devolvida, o número de telefone estava incorrecto e o diálogo não era merecedor dessa designação. Apesar de tudo, o senhor importante sabia que aquela era a escola do filho e sabia o horário de atendimento, porque a comunicação enviada por mão própria, viera assinada e fora-lhe entregue pelo aluno. Restava à professora aguardar que o senhor importante pesasse as prioridades e decidisse entre uma reunião importante com um cliente e uma reunião importante com a directora de turma. A presidente da escola manifestou a sua solidariedade (Casos destes são mais frequentes do que tu pensas!) e, se necessário, que Magnólia lhe ligasse para o telefone directo, que ela própria assistiria à reunião. Ao proferir as últimas palavras, a presidente observou o desenho da flor no dossiê de Magnólia.
- Uma magnólia. Tão linda! Isso é aguarela e pastel, não é? Foste tu que fizeste?
Magnólia sorriu e apenas respondeu:
- Um amigo.
A presidente, contemplando a flor, piscou o olho e disse-lhe:
- Pede-lhe para desenhar uma íris. A minha filha ia gostar!
Magnólia saiu do conselho executivo pensativa. Felizmente que não tive de a retirar do dossiê! pensou. No verso tinha escrito a lápis: “Desenhaste em papel uma flor. / Os teus olhos deram-lhe o céu, / e o teu sorriso a textura do cetim. / Ofereceste-ma, e guardei-a / – só para mim.” Saudades daqueles momentos de um ontem ainda tão presente. Colecção privada de fragmentos inteiros, ímpares na sua textura polida. No primeiro encontro, perguntara-lhe:
- Que idade tens?
Ele respondera-lhe:
- A idade é o que fazemos com cada dia.
Mas isso foi muito tempo depois. Antes do tempo das palavras era o da demora do olhar sereno. Era ainda o do sorriso das palavras inaudíveis a rasgarem o tempo informe, a esculpirem os degraus para o azul. As coisas são o instante em que as palavras as iluminam. Um livro é a revelação da palavra; uma chave, o rumor de rebentação; um café, o instante de possibilidade, a curva do horizonte, a circunstância. Nunca lhe perguntava quando nem aonde iam. Ia aonde ele queria ir. O trânsito desafiava a paciência, reduzindo o tempo tão frágil quanto efémero, mas seguia ao encontro de um quadrado de maçã e canela a aromatizar o silêncio do indizível no rumor das vozes anónimas.
- Sou uma criatura modesta. – dizia-lhe ele. – Fico na dúvida entre o arrebatamento das tuas figuras de estilo e a simples necessidade de mudares de óculos. Mas, podes brincar comigo!
Posso brincar contigo! pensou Magnólia. Enviou-lhe uma mensagem nessa tarde: 20. 5. 14. 8 15. / 19. 1. 21. 4. 1. 4. 5. 19. / 20. 21. 1. 19. No reencontro, as palavras dele sugeriam a rendição:
- Não pude decifrar a mensagem. Apaguei-a inadvertidamente, mas estou à tua disposição!
Mas Magnólia não lhe descodificou os números digitados. Estes anularam-se, porque ele trazia nos olhos um poema. “Nada, senão o instante me conhece!” pensou Magnólia.
Apesar de ser preferível que um encarregado de educação avise previamente da sua presença, nenhum director de turma se recusa a receber um pai quando este se desloca à escola na hora de atendimento semanal. Considerando a eventual presença do pai, Magnólia colheu informações, junto dos colegas do conselho de turma, sobre o comportamento e aproveitamento do James Bond. Actualizou o registo de faltas e aguardou. Na manhã do dia de atendimento, o James Bond compareceu na aula sem manifestar conhecimento de causa. Quando a professora procedia à recolha dos trabalhos que seriam levados para corrigir em casa, o James Bond pediu para ir ao cacifo, justificando que se tinha esquecido que deixara o trabalho dentro de um outro livro. Os alunos estavam avisados que não poderiam utilizar os cacifos enquanto as aulas estivessem a decorrer e muito menos interromper uma aula por motivo de esquecimento de material. Magnólia ponderou e consentiu que o James Bond se ausentasse da sala. Pelo menos fez o trabalho! pensou. Alguns instantes depois, o James Bond regressou à aula com uma caixa de sapatos aconchegada debaixo do braço. A turma parecia expectante. James Bond não se dirigiu para o seu lugar. Ao invés, atravessou a sala em direcção à secretária da professora. Magnólia ficou impávida, sem saber qual a actuação mais conveniente da sua parte.
- Pode ficar com ele? O meu pai não deixou que eu ficasse com ele! – disse o James Bond, entregando-lhe a caixa.
Dentro daquela, uns olhos de um verde líquido, redondos e aflitos aguardavam o veredicto. A turma permaneceu em silêncio. Magnólia inspirou profundamente para conter as lágrimas. Reconheceu a voz de Margarida.
- A setôra vai ficar com ele?
Magnólia acenou afirmativamente. Pela sala multiplicaram-se as palavras de regozijo.
- A setôra vai ficar com o gatinho! Fixe!
- Como é que se vai chamar, setôra?
Magnólia olhou para aqueles olhos de um verde líquido, redondos e aflitos, fez sinal para que James Bond regressasse ao seu lugar e respondeu:
- Vou pensar. Na próxima aula digo.
Na hora de atendimento, o senhor importante não apareceu.
Planificar aulas de Português exige a um professor cumprir objectivos de naturezas várias, entre eles levar os alunos a utilizar as técnicas basilares da composição de diversos tipos textuais com vista a um aperfeiçoamento da expressão escrita, desenvolver métodos e técnicas de trabalho individual e de grupo que contribuam para a construção da própria aprendizagem. Conseguir incutir nos alunos o prazer de ler, implica a mediação do professor. Incentivar a produção escrita exige motivação. A professora considerou arrojada a ideia de propor à turma a escrita de um conto. Para isso seria necessário que todos os alunos participassem de forma activa na sua produção. A primeira reacção dos alunos foi de pasmo. A professora assegurou-lhes que bastaria cada um deles fazer o texto progredir, nem que fosse com uma única frase. Além disso, poderiam ilustrá-lo com desenhos produzidos por eles próprios. A ideia começou a seduzi-los. A professora adiou a divulgação do tema que tinha em mente até se tornar imperativo fazê-lo.
- E é sobre quê, setôra?
- Sobre o nosso gatinho.
Fez-se silêncio por breves instantes. Em seguida, a palavra soou como um rastilho.
- Nosso?!
A professora sorriu.
- Gostam do tema? Mas, ficção é ficção. Têm de manter o anonimato do Keats.
- Kits é um nome fixe, setôra!
- Quem é que pode fazer as ilustrações?
Os olhares dirigiram-se para a aluna que sabia que magnólia era nome de flor.
- A Margarida!
Algumas aulas depois, mais do que as previstas, o conto produzido pela turma foi dado por concluído. Quando o texto saiu no suplemento literário do jornal da escola, foi um alvoroço. Até os colegas de Magnólia já sabiam das circunstâncias em que o Keats tinha sido adoptado.
- Porquê Keats? – perguntou-lhe uma das colegas.
- Porque “a beleza é a verdade, a verdade a beleza / – É tudo o que há para saber, e nada mais.”
A gramática chegou com um entardecer de meados de Outubro. Magnólia pediu particular atenção para os adjectivos numerais ordinais, qualificativos, modais, pátrios, identificou-lhes o género e o número , o grau, os casos particulares do comparativo e superlativo, mas os exemplos estavam lá fora, na curva do horizonte. Os seus olhos desprenderam-se do manual. Os alunos ouviam as suas palavras, mas os seus olhares convergiam para o sol que incendiava o céu numa combinação de sangue e ouro. Magnólia não protestou. O silêncio foi mais forte até que Antero se interpôs: “(…) os castelos do horizonte / Erguem-se à tarde, e crescem, de mil cores, / E ora espalham no céu vivos ardores, / ore fumam vulcões de estranho monte…”
Magnólia entregou em fotocópia o TPC: “Certamente já viajaste e reparaste que, por vezes, nessas alturas, os nossos sentidos despertam e muitas sensações nos invadem. Redige um texto em que, relembrando um episódio ocorrido durante uma viagem, tentes transmitir o que viste, ouviste e sentiste.” Não houve tumulto, quando os alunos ouviram as palavras mágicas:
- Podem arrumar as vossas coisas.
Durante os poucos minutos até ao final da aula, os alunos permaneceram calados, absorvidos nos seus pensamentos, olhando o pôr-do-sol. Magnólia recordou os tempos em que ia acampar com os primos e amigos da escola. Aos doze anos, as tardes eram infindas. A noite quando descia no seu silêncio de veludo, e as gaivotas sossegavam na falésia, a infância parecia não ter limites. Ainda hoje, à distância de uma dúzia de anos, Magnólia sorri ao lembrar aquela noite. Os acampamentos eram sempre momentos de exaltação. O aroma a pinheiro, que lentamente ia ardendo, reunia a felicidade das crianças numa antecipação de aventura. Nomes curiosos, os delas! Águia, Castor, Golfinho … Ar, Terra e Água seduzidos pelo fogo. A velocidade e a perspicácia da águia, a habilidade e a coragem do castor, a liberdade, a sagacidade, a exuberância dos reflexos macios e azuis do golfinho. Precisamente por aqueles motivos, Magnólia adoptara o nome de Golfinho. Ela até nem era rebelde, embora, por vezes, fosse ousada; solidária e obediente, sempre. Porém, naquela noite, nada fazia supor a sua inquietação ao deparar-se com o insólito da presença de uma rede de pesca a desprender-se de um pinheiro. Naquela noite de Junho, o grupo regressara de um percurso pedestre e dormia exausto da caminhada. Por sua vez, Magnólia, não conseguindo adormecer, saíra de mansinho e, ao ver a fogueira já débil, aconchegou-lhe mais caruma para lhe dar nova vida. Na segurança do fogo, ao sentir a carícia da brisa da noite, Magnólia era feliz. Feliz: adjectivo qualificativo no grau normal. Tão normal como a explicação do Daniel, naquele dia de pasmo para todos, excepto para ele: a rede estava sobre a árvore para apanhar peixe, porque tudo o que vem à rede é peixe.
Mas não foi pasmo, foi assombro o que Magnólia sentiu ao ler o TPC da aluna Jandira: “Na viagem, vi muita gente que comia, estava muito frio e estava a comer pouco, mas a situação era bonita peguei no meu lanche e comi não vi mais nada, estava com muita fome tive de correr para a apanhar, tive que pedir mais lanche mas ninguém me salvou, corri até chegar e andei muito e houve uma combinação de lanche não me chegou, estava, quase a chegar.
Comi muito e estava muito cansada, ouvi se estava muito cansada, vi. Estava muito doente estava bem encontrei os meus pais e tinha 10 anos mas ninguém me salvou pus o meu lanche fora do saco e tinha muita fome. A Ana chorou e tinha droga já a tinha usado a minha amiga morreu, tinha muita fome e caí no chão não foi engraçado tinha uma amiga comigo disse ai tinha um presente comigo e não me tinha calado não tinha fome e caiu cabelo transformei-me não tinha pouco mas me cuidei. Calei-me e chorei tinha a estora comigo a tentar chegar antes, estava muito contente e fiz obras no trabalho oposto e me sentia a rir e estava ou ficava diverti-me imenso e não conseguia falar sobre isso e era pequena e não tinha frio cuida-va de mim sobre a ajuda dos meus pais os meus pais morreram e disseram-me queredo.”
Ali não estava em causa apenas a organização do texto, a construção das frases, a ortografia, o vocabulário adequado e a pontuação… Na manhã seguinte, antes da primeira aula, Magnólia dirigiu-se ao gabinete de psicologia. Felizmente a colega estava no seu horário de atendimento!
Depois de corrigidos, os textos, que tinham por intenção o uso adequado do adjectivo, serviram de base para uma actividade interdisciplinar. Partindo da cor e dos seus contrastes quente-frio, simultâneo, de quantidade, qualidade ou complementares, a professora de Educação Visual levou os alunos a produzirem trabalhos em pontilhismo. Alguns deles, posteriormente expostos na entrada do pavilhão central, mereceram comentários favoráveis. O ponto pode expressar diferentes qualidades expressivas que derivam da sua dimensão, posição ou organização no plano bidimensional. De acordo com o agrupamento e a sua repetição, o ponto cria padrões e texturas e sugere dinamismo e movimento. Um dos trabalhos, observado à distância, permitia percepcionar os pontos como manchas de cores e linhas numa forte vibração de cores. O título não surpreendeu Magnólia: Pôr-do-Sol.
Numa escola, as pessoas aproximam-se por afinidades que ultrapassam a área disciplinar comum. Por vezes, numa conversa banal, surgem as palavras-chave que tolhem, ceifam e distanciam, ou seduzem, aproximam e enlaçam, construindo um património emocional que pode condicionar a actuação de cada um. A concordância ou o confronto, quer pela palavra, quer pelo silêncio, deve garantir a aceitação do outro na sua irredutível singularidade. Foram estas as palavras de Magnólia que suscitaram a atenção do colega cujo nome ela ainda desconhecia:
- Os gatos embriagam mais que o vinho.
O colega efectivo na escola há vários anos pousou a chávena de café sobre o pires, atravessou a sala e aproximou-se do grupo em que Magnólia se encontrava. As palavras dele colheram uma risada dos presentes:
- A colega diz isso, porque ainda não deve conhecer o vinho de Colares!
Magnólia abriu os olhos de espanto, e o seu sorriso confirmou a hipótese do colega, que acrescentou:
- Conhecer as vinhas de Colares é um privilégio que não deve ser adiado. Temos de combinar um dia destes!
No fim-de-semana em que Magnólia não foi a casa, foi a ocasião em que visitou os terrenos colarejos, ouvindo atentamente as explicações do colega que a desafiara a conhecer aquele património único. A vindima já tinha chegado ao fim e, enquanto os vinhos estavam a ganhar corpo e sabor nos tonéis, as vinhas exibiam combinações exuberantes de esmeralda e tons dourados. Bem diferentes das suas, nos socalcos do Douro. Aqui eram os muros de pedra solta, paredes construídas em pedra seca sem a utilização de qualquer outro material; os pontões, pedaços de cana com cerca de meio metro em que um dos lados é cortado em bisel e o outro em duplo bisel, sendo o primeiro lado espetado no chão, e o outro o que suporta as varas a cerca de meio metro do solo arenoso; as paliçadas de cana seca com cerca de meio metro de altura, como protecção contra os ventos marítimos. Prosseguiram em direcção a uma casa rústica arrogantemente isolada da estrada que serpenteava o lugarejo. O colega ia saudando aqueles com quem se cruzava. Todos o conheciam desde miúdo…
O colega arrastou a cancela e cedeu passagem a Magnólia.
- É aqui que o tempo é sempre presente. – disse-lhe.
O único tempo imutável é o tempo da infância. O tempo apura e constrói, corrompe e desgasta. O desenho da flor, no seu dossiê, era o tributo a um tempo ímpar, hoje aniquilado. No último encontro, breve, Magnólia olhara para o amigo como quem confere uma recordação. Nele, nem sombra do afecto antigo e natural. Então, Magnólia compreendeu que o passado é uma soma dos presentes que merecem memória…
Nas palavras do colega, aquela casa ultimamente só tinha serventia nos raros fins-de-semana em que vinha desempoeirar o juízo. Considerando ser por uma boa causa, o colega quis saber a data de nascimento de Magnólia. Sem mostrar qualquer indício de constrangimento, Magnólia elucidou-o. O colega fez-lhe sinal que o acompanhasse e dirigiram-se à parte baixa da casa. Da sua colecção privada, escolheu uma das garrafas e de um armário retirou um dos rótulos. Fixou-o à garrafa e ofereceu-lha.
- Aqui está. Desfruta-o em boa companhia. Se não tiveres com quem beber…
Como se receasse que o silêncio traísse os seus próprios pensamentos, Magnólia, observando o rótulo, elogiou o valor artístico da harmonia dos elementos gráficos, da estética do conjunto. O colega concordou e prosseguiu:
- … podes guardá-la, mas, para uma boa conservação do rótulo, deves pôr um pouco de laca de cabelo.
Nada há que mereça uma atenção que doa!, pensou Magnólia. O estrépito da rolha a soltar-se trouxe Magnólia ao presente. Aceitou o convite para jantar num lugarzinho simples, ali mesmo na zona rural, que pertencia a um colega da escola. Magnólia perguntou-lhe o que leccionava, se o conhecia. A maldade dele tinha surtido efeito. Magnólia só compreendeu, quando o colega acrescentou:
- Da escola… primária!
O Colares ficou a aguardá-los sobre a mesa de madeira rústica da cozinha. Só poderia ser devidamente apreciado se permanecesse aberto algum tempo. Tinha-se gerado entre eles uma compreensão cúmplice. Sem que o soubessem, tinham inaugurado a palavra amizade, desde aquela afirmação peremptória de Magnólia.
 
Magnólia

Perturbação

 
Na equivalência exacta da minha perturbação,
receosamente cercada de muralhas de silêncio,
o teu olhar perfeito como uma semente
fecundou os meus sentidos.
E assim, sob a sensata exigência do tempo,
permaneci grávida de futuro.
 
Perturbação

Fragmentos I

 
Dói-me esta realidade desfigurada
de fragmentos de emoções.
Fecho-me às palavras ditas
e removo os destroços de sentimentos
na ignorância de que estes também estão mudos.
 
Fragmentos I

Controvérsia

 
Enquanto quis Gato que houvesse
simpatia de algum envolvimento,
O desejo de nobre sentimento
Me fez que sua vontade atendesse.

Porém, embora eu não compreendesse
Tudo o que ele dizia num lamento,
Arranhou-me no preciso momento
Para que sobre ele nada dissesse.

Ó tu que Amor obriga a tais desejos
De submissa rendição! Quando vires
Uns doces olhos assim controversos,

Garras bem puras são e não cortejos;
E sabe que, quais alentos sentires,
Terás a impressão que são perversos.
 
Controvérsia

Rumor

 
Ambiguidade perturbadora,
a do rumor do teu olhar
invadindo o terreno vago dos sentidos.
Subtil aliança de perfume de pele
tecida na seda de um sorriso.
 
Rumor

Desassossego

 
Não é tempo de palavras mas de sentir o corpo.
Logo aprendo o sabor macio dos teus lábios
em cada palavra pronunciada em desassossego.
No silêncio, os teus braços enlaçam-me
e levam-me a conhecer de mais perto
o cetim verde dos teus olhos.
Soltam-se as mãos, e o meu corpo
desperta para os sentidos.
 
Desassossego

O Adeus

 
Cresce num silêncio de casulo
o apelo do rumor da tua voz.
Duro entre a esperança infatigável
e a sensata ausência de expectativa.
Desenha-se a certeza de um adeus...
 
O Adeus

A Gaivota Nina

 
Na época estival, as traineiras deixam o porto pela hora do entardecer, rumando em direcção aos cardumes que atravessam o oceano para virem encontrar águas mais quentes. Erguendo-se na noite cintilante, o farol orienta-lhes o rumo até estas se tornarem uma presença vaga. Envoltas na névoa do amanhecer, as traineiras desenham-se de novo no horizonte, arrastando-se penosamente e trazem na sua esteira gaivotas em desassossego.
A Gaivota-Nina é boa voadora, mas não mergulha nem precisa de o fazer. Ela sabe que o mestre da Pérola do Oceano lhe reserva o seu quinhão, no balde de plástico sobre o convés. Também o Gato-Treplev, com a sua excelente visão nocturna, vigia a dança das traineiras, mas tem de aguardar pelas manobras de atracagem. O seu coração, que batia lentamente enquanto fazia a atalaia, aumenta o ritmo até duas vezes mais, agora que ele está prestes a efectuar o golpe certeiro. A aptidão das suas garras gatunas verifica-se no exacto momento em que ele consegue larapiar um dos carapaus luzidios que gotejam das redes. O Gato-Treplev é saudável, feliz e pleno de vitalidade. Tem residência fixa e uma alimentação nutritiva e equilibrada que satisfaz as suas necessidades. Diz o rótulo da sua ração diária que aquele alimento tem um sabor irresistível, elaborado com peixe delicioso: pedaços de salmão e camarões em geleia.
A Gaivota-Nina não compreende por que o Gato-Treplev se aplica na arte de gatunar carapau, o qual nem sequer ingere. A sua língua áspera apodera-se apenas da cauda prateada do carapau, e o que resta é precisamente isto: um carapau fresquinho, sem cauda. Com elegância e cortesia, a Gaivota-Nina disse-lhe um dia:
- Tenho pensado em ti e nas tuas necessidades. Não é a fome o que te motiva. A mim, custar-me-ia deixar um carapau assim…
O Gato-Treplev orientou os seus sensíveis bigodes na direcção da Gaivota-Nina para lhe responder:
- Tens um sentido de dignidade própria. Especial e bom.
A Gaivota-Nina deixou esclarecido que as suas palavras não tinham intenção de repreensão. O Gato-Treplev, polindo as suas garras retrácteis, respondeu:
- É sempre bom ver confirmada no outro a aceitação da sua irredutível singularidade.
Não que tivessem combinado, mas a Gaivota-Nina passou a aguardar pelo carapau sem cauda, e, assim, não teria de fazer novo voo até à traineira. De cada vez que isto sucedia, a Gaivota-Nina cortesmente agradecia. O Gato-Treplev respondia:
- É agradável saber-te de algum modo recompensada por vivências comuns.
Era certo e sabido que não eram as caudas de carapau que davam ao Gato-Treplev a energia para trepar e saltar, nem as mesmas eram responsáveis pelo seu coração forte e saudável. Sabia ele muito bem por que o fazia: era o prazer da caça o que o movia. Enquanto aguardava a aproximação da traineira ao cais, fitava das caudas a mais brilhante, e teria de ser essa a que ele furtava. Podia o carapau ser curto ou comprido, largo ou estreito, o importante era a cauda!
Aquela manhã de nevoeiro foi diferente! O Gato-Treplev demorou-se na sua vadiagem e, quando chegou, o cais estava vazio. Sentiu-se assustado com a sua dúvida. Havia entre ambos uma agradável cumplicidade, desde o tempo em que o Gato-Treplev tinha comentado a singularidade dos seus nomes. Em tempos antigos, um certo Treplev, jovem proprietário, tinha composto um drama para Nina, a jovem vizinha que ele amava e que sonhava com o teatro. Mas Treplev perdeu Nina, porque esta se apaixonou por um escritor, Trigorine, homem maduro, célebre e desocupado que a levou para longe. Quando esta regressa, depois de ter sido abandonada, reencontra Treplev… A Gaivota-Nina, depois de ouvir atentamente o que o Gato-Treplev lhe contara, dissera-lhe:
- As coisas acontecem, as coisas mudam… A história não se repete!
O Gato-Treplev vagueou pelo cais com os cinco sentidos atentos, ignorando os carapaus que exibiam as caudas à distância da sua garra sempre certeira. O imprevisto acontecera. Presa nas redes da traineira, a Gaivota-Nina tinha partido para alto mar. Quando o mestre a encontrou, exausta e de olhos semicerrados, apressou-se a soltá-la. Mas, a Gaivota-Nina permaneceu imóvel. Sentia-se dorida por tanto se ter debatido nas redes. Além disso, estava demasiado distante para arriscar o voo. Quando a Pérola do Oceano regressou ao porto, dias depois, trazia a Gaivota-Nina na sua esteira. Foi aos olhos do Gato-Treplev que a Gaivota-Nina primeiro se anunciou. O Gato-Treplev sentiu-se invadido por um vigor renovado. No seu golpe ágil e, como sempre, bem sucedido, furtou um carapau e depositou-o aos pés da Gaivota-Nina, quando esta pousou no cais. As suas palavras de boas-vindas foram:
- As coisas acontecem, as coisas mudam… A história não se repete!
A Gaivota-Nina agradeceu e, de olhos semicerrados, engoliu o carapau. Só então compreendeu as palavras do Gato-Treplev: o carapau estava fresco e inteirinho.
 
A Gaivota Nina

Esplendor

 
Sob a vibração de vime das vozes
colho a curva do teu sorriso
suspenso num improvável equilíbrio.
E consinto o prazer de ler
o gozo e o esplendor
no verde firme dos teus olhos.
 
Esplendor

Desejo II

 
Apetece o roçar de vela dos teus lábios
e o horizonte líquido dos teus olhos.
Neles trazes a brisa da tarde
e o meu corpo estremece.
 
Desejo II

Coreografia

 
Momento de grande intensidade estética
o teu rosto emoldurado pelas minhas mãos.
Sorris na doçura do teu olhar,
e as tuas mãos desenham no meu corpo
uma coreografia em silêncio e êxtase.
 
Coreografia

Ave I

 
Conheci a embriaguez dos sentidos
na lucidez do teu corpo.
Foste ave que ascendeu aos limites do azul
e em movimentos sábios em mim pousou.
 
Ave I

Ruínas

 
O meu corpo é uma casa abandonada
alicerçada na dor de ter perdido.
Na escuridão dos sentidos, apalpo as paredes frias
do incêndio dos teus beijos
e estremeço nas ruínas de mim.
 
Ruínas

Receita da Felicidade

 
O jantar decorreu numa atmosfera informal de grande encanto. Francisco chegou cedo e a sua aparição foi saboreada como uma brisa de Setembro. Bernardo começou logo a montar o Playmobil, e Francisco foi à cozinha pôr a gelar o Moet. A sugestão de esparguete à bolonhesa foi aceite por unanimidade. Bernardo repetiu as farófias.
- Cheira a Natal, mãe!
Cecília sorriu e elucidou Francisco:
- Sempre que usamos canela, ele diz isso. Mas, por acaso até já falta pouco para o Natal. Quando é que é a festa da escola?
Foi Francisco quem soube responder:
- Dia dezoito. O meu filho vai de pastor. E tu, Bernardo?
Bernardo ainda não sabia. Porém, sabia que haveria surpresas. Até o Tiago já tinha inventado que a professora Dália ia vestida de rena. Cecília trocou com Francisco um olhar cúmplice.
Afinal, a professora Dália não foi vestida de rena, mas a solene monumentalidade das pregas do seu vestido verde esmaltado não passou despercebida. Bernardo já tinha recitado a sua quadra sem atrapalhação e regressado para junto da mãe. Todos, enfim, aguardavam pelo discurso natalício da professora Dália. Apesar da rigidez do seu aspecto, esta assumiu uma atitude maternal na divulgação do concurso "Receita da Felicidade". Embora com poucos recursos, a escola tentava todos os anos satisfazer o maior desejo de Natal dos seus alunos. Bernardo nem quis acreditar quando ouviu o seu nome. Cecília e Francisco beijaram-lhe a face, e ele dirigiu-se ao palco. A professora Dália pediu uma salva de palmas para o representante da Câmara Municipal que apoiara o projecto. Ao menino Bernardo, por este ser alegre, meigo e responsável, nas palavras da mãe, seria entregue para adopção um gatinho do Gatil Municipal. Bernardo olhou a mãe aflito, puxou pelo braço da professora Dália e perguntou baixinho:
- E se a minha mãe não deixar?
A professora Dália sorriu e disse:
- Deixa, deixa...
E, então, a professora Dália agradeceu a colaboração dos pais por terem mantido em sigilo todo o processo, desde o mês de Outubro quando foram convocados à escola para assinarem um termo de responsabilidade ou darem o seu consentimento para a realização do projecto. O representante da Câmara proferiu umas breves palavras para enaltecer o acto de generosidade que é a adopção de um animal abandonado e entregou a Bernardo um cheque de cento e cinquenta euros para assegurar os cuidados do animal. Bernardo estava eufórico.
À saída, compraram o número especial de Natal do jornal da escola e, nessa mesma tarde, passaram no Gatil. Num tom académico, o veterinário foi dando indicações sobre os cuidados básicos a ter com o animal, enquanto prosseguia pelos corredores em direcção às boxes. Cecília manifestou uma melancólica sensibilidade perante a natureza em abandono ao comover-se com aquelas figuras magras, alongando-se em posições harmoniosas, numa vida sem contentamento. Uns de manchas claras e de olhos verde líquido, outros de pelagem escura a realçar ainda mais a luz dos seus olhos assanhados como malaguetas ferozes. Face a tal diversidade, os sentimentos cedem e confundem-se. O entusiasmo de Bernardo conduziu-o até um gatinho cuja mestria de negros e cinzentos do pêlo o fazia assemelhar-se a areia basáltica batida por uma nortada.
Francisco admirou a primavera que se demorava naqueles olhos felinos e sentiu-se invadido por um sabor de paz doméstica. Entretanto, já lera a receita da felicidade de Bernardo, impressa no jornal da escola: "Num tapete, ponha arranhões, marradinhas, ronrons e uma pitada de cócegas de bigodes. Junte o carinho e a ternura, bem peneirados e misturados. Mexa muito bem com os dedos até se tornar uma bola. Tire do tapete e deite no sofá, mexendo sempre até o desatino ser total. Ao primeiro bocejo, deixe repousar. Acompanhe com dois berlindes esverdeados e muita preguiça."
 
Receita da Felicidade

Devaneio

 
Atravessaste a minha noite
no instante daquele gesto insensato.
Já o devaneio verde dos teus olhos
se havia debruçado no meu corpo
e nele se demorado até ao beijo
e até eu me esquecer de mim.
 
Devaneio

Distância

 
Convoco palavras estremecidas
para me apropriar dos instantes
de intensos indícios de azul.
Consciência aguda da limitação
do presente devorado pela distância.
 
Distância

A Máscara

 
Flor de sal do passado hoje,
dúbia estrutura do pensar sentido.
Teatro de emoções sem ponto
de peça improvisada.
Máscara espelho de rosto.
 
A Máscara

Beira-rio

 
Deixei-me sabiamente persuadir
a encontrar-me à beira-rio
no silêncio denso de uma noite de verão.
Na madrugada desvendaste o meu corpo,
e conheci o sabor da tua pele
desigualmente escurecida pelo sol de agosto.
 
Beira-rio

Desejo I

 
Deslizam pela sala vozes descombinadas.
A luz imprecisa do entardecer
consente a desocultação dos sentidos.
No teu olhar, pedaços de confidências
que o silêncio modelou em beijos
numa aliança de corpos em febril desejo.
 
Desejo I

(Texto inédito e propriedade intelectual de TeresaMarques)