Poemas, frases e mensagens de Arcanjo

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Arcanjo

Não me conte!

 
Ser humano não é matemático
É inexato meu humano ser
O trivial se torna fantástico
O fantástico, algo de aborrecer

Não podem me calcular
Não calculas meu poder!
Estou tão além do que vê o seu olhar
Que nem meu olho pode te perceber
E olhe que olho o que todos querem esquecer
E ouço o que os ouvidos querem ignorar
Minha boca fala de assuntos que a todos fazem emudecer
Minha mente explora lugares onde ninguém chegará

Você sabe?
O que você sabe?
Mas sabe mesmo?!
Então,
se é assim
diga-me:
O que é o saber?...
 
Não me conte!

Ria

 
Ria
Ria você de mim
Ria
Pois eu não sou assim
Ria
Um dia desfaço o jardim
Onde
Cultivo você, jasmim
 
Ria

Tu

 
Tu

Uma gota do seu cheiro
Um grama de sua imagem
Um centímetro do seu toque
Um naco de sua ideia
Um mililitro do seu cabelo
Uma réstia do seu olhar
Um átomo de sua voz
Um pedaço do seu dia
Uma fatia da sua dor
Uma migalha da sua alegria
Uma pequena porção de você
Como profilaxia
E a vida fica melhor...
 
Tu

Todos os erros

 
Como podemos ser grandes...
Como podemos ser pequenos...
Distribuindo pedaços nossos
Jogando ao vento
Semeando no tempo
Nesse caminho que chamamos de vida

Mas a alma reclama os pedaços que não esqueceu
E, quando a alma se cala
Ai de mim, ai de você
Essa dor não tem tamanho
Ela nos acusa, condena e pune
Sem que haja chance de foragir
Ficamos reféns dos nossos próprios atos
Somos executados pelo algoz que se chama saudade
 
Todos os erros

Festa no cafundó dos sentidos

 
Vai quem quer
Quem pode!
Quem escolhe?...
E venha o que vier
Entre os que foram
Foram por quê?
Ali estavam...
Escolheram, ou foram escolhidos?
O que faziam ali?
Aninhados como pombos
Ou saltitantes como macacos
E quem faz igual:
é igual
E quem pensa:
é estranho
E quem não fuma:
se sufoca
E quem não cheira:
também não fede
E quem não ri, compulsivamente:
não participa
Ofende quem é ofendido
É estranho quem não for estranhamente forçoso
E viva o amor sintético!
Viva a beleza da moda!
Viva os adereços postiços!
A pose para a foto!
Os amigos de última hora!...
E vivamos a ressaca do dia-a-dia:
no dia seguinte
E em todos os dias dessa nossa vida porre
 
Festa no cafundó dos sentidos

(poesia para geógrafos) Fuso MT

 
(poesia para geógrafos) Fuso MT

Meus outono e primavera
Para quem habita o centro do globo
São a mesma coisa nesta esfera
Ao longo das margens do Equador

Nas outras bandas, para além dos trópicos
O outono persegue o gelo
A primavera persegue o calor

Aqui as folhas não caem temendo o frio
Nem o sol dá as caras depois de semanas de férias
A luz do astro-rei brilha
Todos os dias, o dia todo

Em duas estações que se sucedem
Uma de chuvas
Outra de fogo
 
(poesia para geógrafos)             Fuso MT

Receita, comentada, para um inferninho diário

 
- Começamos com alguns gramas de chateação de terceira qualidade. Na verdade esse item não possui medida exata, depende do grau de suportabilidade do outrem.

- Você, antes de mais nada, deve criar uma situação em que a outra pessoa deva dar uma freada nas atividades corriqueiras. É aí que você se insere.

- Proponha estar junto, diga que fará companhia, que ajudará (independente da vontade dele(a)); e siga lado a lado com a criatura felizarda que você escolheu.

-É importante manter a frivolidade; sempre que a outra pessoa tentar desenvolver algum assunto mais sério ou construtivo, intervenha e interrompa com algo sem sentido ou desnecessário.

- Após essa primeira etapa, acrescente cinco gramas de lembranças velhas e aparentemente superadas. Esse item é especialmente importante, pois, quanto mais rançoso, mais você poderá prolongar suas queixas sobre ele(a) e muitos outros infinitos aspectos da personalidade do infeliz ser para quem você dedica a receita.

- Um detalhe importante a se considerar, no começo, deve-se só fomentar tolices, mas é preciso manter um mínimo de inteligência para acrescer à conversa esse útil ingrediente.

- Pois bem, chegada de sopetão a memória pútrida que já era julgada esquecida, introduzimos nosso terceiro, e composto, item, a incompreensão, mesclada com uma forte dose de acusação. Assim vai a receita encorpando. Fale, fale, fale muito. Aponte um milhão de vezes as mesmas coisas; repita pelo mais longo tempo que for possível.

- Então, logo em seguida, coloque a mais generosa porção de auto-piedade que puder. É importante ter toda a pena do mundo de si mesmo(a), pois só assim será possível rejeitar qualquer argumento que busque uma reconciliação entre as partes, e com isso, fazer desandar o tão belo cardápio já até aqui preparado. Observa-se aqui que a eficácia desse ingrediente é algo miraculoso, pois ele dá a você o poder de proteger o seu tão esmerado prato. Se a pessoa te falar, chore; se ela se calar, chore; se ela sair, chore, se ela ficar, chore; se ela continuar existindo, chore; e se ela abreviar sua existência dela, chore; mas sempre por pena de si mesmo(a). O choro é um ingrediente mortal e demoníaco. Aliá, para muitos especialistas, a auto-piedade está entre os ingredientes mais importantes desta receita e jamais deve ser usado com moderação.

- juntados todos esses ingredientes, você já perceberá que o prato ganhou forma; então restará mexê-lo. E aqui entra um conselho quase científico, uma máxima religiosa: não bata. Misture tudo lentamente, pois, se bater, você corre o risco de despejar, lançar fora a fúria, o rancor, a mágoa (o que seria um desperdício terrível). O ideal é que se mexa tudo muito vagarosamente, para que ocorra justamente o oposto do que se adverte, ou seja, para que, na lentidão do exercício, concentre-se todas essas iguarias que darão um toque bem refinado ao nosso prato: raiva, incompreensão, fúria, rancor, auto-piedade, sadismo e mais uma infinita gama de possibilidades.

- Para concluir nossa receita, informamos que a mesma se destina a duas pessoas; há quem tenha conseguido expandi-la para mais felizardos, porém, o que se busca hoje em dia é a quantidade: quantidade de dias ativos de inferninho. Existem relatos de verdadeiros mestres que o prolongaram por mais de semana. Isso mesmo, mais de semana! E você, o que está esperando? Quanto tempo será que consegue?
 
Receita, comentada, para um inferninho diário

Anemia neural

 
Anemia neural

Vende-se conselhos
Que só servem para os outros
Vende-se um espelho
Que reflete as faces de poucos

Aperte o botão
Dispare um tiro
Ganhe um bordão
Para viver, nenhum motivo

Tempo é dinheiro
Mas não o seu tempo perdido
Em cópias de programas estrangeiros
Nesse seu mundo invertido

Façamos show da morte
De crianças inocentes
De tragédias façamos esporte
Do esporte “nacional?” a fé dos nossos crentes

Ainda que mude o programa
Ou mesmo a programação
Não tire os olhos da tela
Nem busque encontrar razão

Receba o nosso mar
Oceano de informações
Permita-nos lhe guiar
E não dê ouvidos aos seus botões

Afinal, para que pensar
Se está pronto e acabado?
Já o colocamos a reprise no ar
Nossos pensamentos enlatados

Parece mais fácil assim viver
Com uma vida sem direção
A família toda em frente à tevê
Buscando a mesma estação

Espíritos congelados
Presos em uma estranha dimensão
Na qual não há verdade nos fatos
Criando um mundo sem redenção

E, se um dia, desligarem o botão
Puxarem o cabo de energia
Conseguirem dizer não
Um dia...
Quem sabe essa apatia
Que, como tubo de TV desligada, esfria
Dê lugar a um grito de liberdade
Colocando no passado essa realidade
Em que uma caixa luminosa nos ensandecia
 
Anemia neural

Já-c-quê?...

 
Já-c-quê?...

Já que veio o sol... E o sol veio! E é outro dia a fluir, tão natural quanto os gestos dela; dela vamos falar. E já que me dei ao mister de dela falar, deixarei que ela, por si só, fale a través da ponta do lápis que lambe o papel.
Jacque é criatura distinta, tem olhos vivos, ligeiros e incertos; parece-me que busca o que os sentidos não sentem. Ela fala, move-se, volve tronco de cinta, desloca o nexo do léxico, e passa o seu recado. Tal qual isótopo em radiação, irradia a multiplicidade do seu ser num composto resumido de voz, destoante de palavra, mas em total consonância com a ideia: nisso, ela é a mais feminina das mulheres!
Já que estamos falando, que o façamos sem censura. Ela odeia amar, ou, antes, ama odiar. Bebe sua beberagem de café pelo mal que o bendito cito líquido ao seu bem lhe faz. Vinga-se do mundo consumindo porcarias para exalar perfumes.
Ela é doida. E nisso reside sua sanidade. No mundo do plágio, regido pela lei do não esforço, ela é autêntica. Já ouvi dizerem que é doida. Mas isso não conta. Quem proferiu tal diagnóstico é paciente de imenso manicômio, denominado comodidade. Só as mais poderosas mentes pulam os muros desse hospício. E, já que Jacque pulou, pois vê do outro lado da redoma, onde o horizonte é mais largo e múltiplo, melhor a loucura (livre-mente) dela.
Mas eu entendo os que a censuram. Jacque confunde, já que Jacque fala o que pensa, penso que a maioria fala sem pensar, ou então Jacque tem pensar superior, o que é pensamento pequeno, já que Jacque pensa como todas as poucas mentes nuas com as quais me dei em prosa em alcova qualquer alugada a momento de prazer. A grande diferença é que ela não teme seu próprio pensar.
Quer saber?! Se um dia com Jacque cruzar, em algum caminho macio ou crespo da vida, deixe-a te confundir, elucidar, emudecer, ouvir. Deixe-a te curar da loucura que é a sanidade do mundo “normal”. E, observe. Pode ser que você presencie um momento mágico, no qual ela olha para um lado, vê o ângulo oposto, discute com um objeto, enquanto responde a pergunta de algum circunstante, contempla o nada, e vê o todo e, finalmente, de uma chispa que lhe reluz na retina, a vida nova lhe brota, e você então presenciará o nascimento de uma poesia.
 
Já-c-quê?...

Tu

 
Tu

Uma gota do seu cheiro
Um grama de sua imagem
Um centímetro do seu toque
Um naco de sua ideia
Um mililitro do seu cabelo
Uma réstia do seu olhar
Um átomo de sua voz
Um pedaço do seu dia
Uma fatia da sua dor
Uma migalha da sua alegria
Uma pequena porção de você
Como profilaxia
E a vida fica melhor...
 
Tu

Aos bons samaritanos

 
Aos bons samaritanos

Você é desses(as) que quer salvar o mundo, ou apenas está preocupado(a) com o rumo que as coisas estão seguindo? É do tipo que quer ajudar a mudar tudo isso? Quer consertar o mundo e as pessoas? Então lá vai uma ideia.
Não dê ajuda a quem não pediu ajuda.
Não leve mudanças, nem benesses, a quem não as solicitou.
Não acredite que o seu modo de vida seja o único bom e que por isso você tenha que espalhá-lo pelo mundo inteiro.
Acredite sim em seu deus, se você tiver algum; mas não pense que ele é o único com direitos sobre a crença da humanidade. Outros povos possuem outros deuses tão verdadeiros quanto o(s) seu(s).
Por mais que a sua vida seja boa, não imponha seu modo de viver a ninguém.
Ainda que os alimentos com os quais você trás nutrição ao seu corpo sejam maravilhosos, as outras pessoas que se alimentam de comidas diferentes e, aparentemente, estranhas também estão sendo nutridas há milênios sem que você precise montar o cardápio delas.
Não leve a sua paz a quem não conhece seu conceito de guerra.
Não leve sua guerra àqueles cuja paz você não compreende.
Não acredite que a sua cultura seja melhor; nem tampouco que as outras culturas sejam piores. Pois cultura é um modo de ver, de interagir com sigo mesmo, com as outras pessoas e com o mundo. Logo, cultura não pode ser valorada.
Não acredite que o seu mundo seja bonito, em oposição aos mundos feios dos outros. Cada indivíduo pode por si só identificar o belo e o feio de sua própria realidade.
Não acredite em um bem absoluto, destituído do mal; nem tampouco acredite que você represente esse bem.
Não julgue a atitude alheia sem ao menos buscar saber o porquê, quando e como essa se processou.
Antes de crer em tudo o que te dizem, duvide e tente ser convencido(a) pela razão e não pela emoção de propagandas baratas.
E, por fim, não deseje ao próximo o bem que deseja para si mesmo(a), pois o próximo pode não ter o mesmo gosto que você.
 
Aos bons samaritanos

Eu-em-ti

 
Não sei compor poemas, mas vejo meu:

Eu-em-ti

ela trás alívio
não imediato
mas paulatino...
a princípio, um ribombar no coração
frêmito n’alma
discreto tremor nas mãos
sinto aconchegar-me um terno calor
como uma mão que afaga
que acalenta
que mima
que me acalma:
são seus olhos a pairarem sobre minh’alma
a acalentar minha mágoa
alentando minha dor
que dói
nem sei por quê...
pois a tenho
tal como tenho o universo
que
com o espírito
abraço
num segundo...
e
com os olhos
perco
na curva infinita
desse infinito mundo...

faz de mim:
menino-homem
criança mimada
de Rosa-ladrão

dá-me:
teu mel-sabor
tua voz-canção
teu perfume-odor
tu’alma-coração

estraga-me-consertando
concerte, no mundo
nossa canção
que só os ouvidos surdos auscultam
ao som do vento morno
vindo do timbre de um pássaro
no compasso
do coração
 
Eu-em-ti

Receita da felicidade.

 
Vivamos o nosso amor à parte
Na parte que nos convier
Assim somos felizes
Pois ser feliz é o que todo mundo quer
 
Receita da felicidade.

Vende-se (TV) / Verdade...

 
Vende-se (TV)

Vende-se uma partida de futebol
Um mapa que indica o caminho para o céu
Uma dieta milagrosa em país de famintos
Um conselho que o conselheiro não segue

Dispõe-se em imagem e som
Oferece-se diariamente, e é barato
Só custa algumas horas por dia
Todos os dias de uma vida toda

Já não se vende mais, agora está para doação
Basta que você o sorva desde a segunda até o domingo
Oferece-se o prazer estúpido, que se consome com os olhos estatelados,
boca entreaberta com filete de saliva insensível a correr

Em tempos de ausência de vida na alma humana, essa parece ser a única vida a se viver...

Verdade...

A vida não tem dono
Mas tem regente:
O discurso!
Alguns se apropriam dos sonhos
Se dizem representantes da gente
Abusam
Assim, à vida dão o rumo
Mesmo quando o ser não consente
Inconsciente
Se curva
 
Vende-se        (TV)  /  Verdade...

Oração dos imbecis

 
A mesma velha rota esfarrapada indumentária de sempre
Não mudamos um milímetro
Não mudamos em nada
Ainda somos os mesmos velhos viciados em mágoa
Um de cada lado
E, no meio, uma tonelada de erros
Forçamos a aproximação
Mas não dá
As bobagens que fazemos ocupam espaço demais
Talvez o melhor seja mesmo esse escandaloso silêncio que se faz
Entre o rumor do seu olhar
E a explosão do seu desdém
Que cada um consiga seguir em seu caminho (presos por cangalha)
E que consigamos um dia olhar para trás sem morrer de dor
Amém
 
Oração dos imbecis

Sertanejo é assim

 
Tropel, forfel, vulto envolto em pó
Imagem era uma só
Mas quando a nuvem se dissipa, muitos se vislumbra
Alarido, zumbido, tudo mudo no meu ouvido
Animal bufando, arriado, combalido
A comitiva quase perde os sentidos
Nesses dias de sol a pino
Isso é ser sertanejo
No sertão desse Mato Grosso infinito
 
Sertanejo é assim

A desgraça do Brasil somos nós: brasileiros

 
A desgraça do Brasil somos nós: brasileiros

Muitos lugares e situações são importantes e interessantes quando queremos pensar a nossa realidade como nação. Mas a fila do banco, sem dúvida, é um dos melhores laboratórios que há. Sempre que vou a essa bendita instituição, sinto-me como se a realidade despencasse sobre mim em borbotões de uma cachoeira. E hoje não foi diferente...
Cheguei ao lugar por volta das dez e meia da manhã, e entrei; peguei uma senha; horrorizei-me com a quantidade de gente que estava a minha frente na fila virtual dos números, e resignei-me em uma das muitas poltronas postas ali, diante dos caixas, justamente com o fito de confortar-nos diante da demora; remédio bastante eficaz, diga-se de passagem.
Nessas horas, a gente fica perscrutando o lugar, olhando as feições, os cartazes mentirosos, cheios de sorrisos e promessas falsas, o movimento dos funcionários, uma azáfama só, tentando destruir as leis da matemática enquanto buscam esticar os segundos com os seus gestos mecânicos e ligeiros. O absurdo já começa por aí, centenas de clientes e apenas três funcionários para nos atender!
Eu observava essas coisas... a minha senha com o número “232”, o painel indicando “190”, e aquela infinidade de cálculos improváveis me apoquentando; foi quando chegou uma criatura meio de pressa.
Na verdade, ela só deveria ser mais uma personagem em meio a tantos, mas o ser conseguiu se destacar. Assim que a mulher atarracada se aproximou do caixa, o homem que estava ao meu lado se pôs de pé mastigando entre os dentes “tem que ficar velhaco com essa mulher”. Essas coisas sempre nos chamam a atenção, e eu fiquei observando.
A criatura rotunda saracoteou daqui, escanchou no balcão e conversou ao pé d’ouvido com um funcionário ali e, logo já estava ao lado de um caixa. E eu de olho...
Então veio o primeiro absurdo. Uma senhora se levantou, provavelmente amofinada com a demora no atendimento, e deu, à criatura inquieta, a sua senha. Na hora me mordi. Pensei, a velha nojenta se levantou, com raiva pela demora, mas se preocupou só com o tempo dela própria, pois com o seu ato, ela jogou a criatura que havia acabado de chegar na frente de todos que ali estavam esperando pacientemente suas vezes de serem atendidos. Então me deparei com a segunda tragédia do dia; para as pessoas o sistema só interessa enquanto elas são beneficiadas imediatamente, pois se vão sair da fila já não importa mais de vai demorar mais ou menos para os que ficam. Então ela certamente tem um orgasmo só em pensar que um bando de trouxas esperou como ela, mas alguém será atendido antes de todos, só por que ela usou seu pouco poder para corromper a ordem da fila do banco (Ô, vaca!).
E a epopéia continuou. Aquele ser esquisito, disfarçado de gente, ali permaneceu e, assim que o cliente que estava sendo atendido saiu do caixa, antes mesmo que aparecesse no painel o próximo número de senha, ela se abancou no tablado de madeira, abriu sua bolsa enorme, tirou um calhamaço de documentos, cheques, dinheiro e o (filho da puta do!) caixa a atendeu na maior normalidade do mundo.
Aí, sim, meu cérebro cientista começou a pensar, olhar, ver e interpretar tudo e todos em câmera lenta. Primeiro o caixa, um miserável estrábico que não se recusou a atender a fura fila. Em outros tempos eu sugeriria a forca para ele, mas, nos dias atuais, creio que uma bala achada já se faz bom profilático (Ô, raiva!).
Depois observei os circunstantes. As caras iguais, calmas, indiferentes. Será que só eu tinha visto aquilo?! Não. As pessoas estão acostumadas a serem vítimas de desonestos. Às vezes chego mesmo a me perguntar se devo me preocupar com a justiça social, com o bem-estar geral, enfim, com esses ideais que andam em voga. Afinal, eles próprios não se preocupam com sigo mesmos. O fato é que eu já nem poderia pensar em castigo mais adequado para aquele bando de acomodados, a não o que já recebiam quando não fizeram nada.
Então meu olhar se voltou para mim mesmo. E eu, o que deveria fazer?... Levantar da confortável poltrona e dar um escândalo? Colocar-me no caixa ao lado e exigir ser atendido antes da hora, alegando ter os mesmo direitos da fura fila? Ficar de pé sobre a poltrona e discursar? Amarrar um quilo de dinamite na cintura e explodir todo mundo? Não... Esperei calmamente para usar a arma que julgava mais eficaz.
Fui atendido, bem mais tarde do que deveria ser, graças à fura fila que empacou o caixa no qual se arranchou, saí e me dirigi a um funcionário e solicitei que me levasse até o gerente geral do banco. Sentei-me diante do sujeito, olhei, de novo, ao meu redor, olhei a cara do parvo.
Pensei...
Ao término da conversa ao telefone, o sujeito me atendeu. Expliquei o ocorrido; disse-lhe que eu poderia processar o banco, que qualquer um dos inúmeros clientes vítima do absurdo poderia processar o banco, por nos descriminar e preterir e, por fim, pedi-lhe providências. O cara me ouviu sorridente, agradeceu-me pela queixa; disse um daqueles chavões de campanha publicitária e, no fim...
Bem, no fim eu me senti um idiota. Obviamente a escrota fura fila é cliente antiga do banco; deve freqüentar os mesmos eventos sociais que o gerente parvo; o caixa deve ser orientado a dar atendimento preferencial à criatura esdrúxula; o povo apático deve assistir a tudo sem nada dizer só para ter assunto nas conversas frívolas do dia-a-dia. E eu perdi uma boa chance de dar um grito de basta, de pôr a boca no mundo, mover um processo contra o banco, ou qualquer coisa do gênero.
Fico pensando... a fura fila eu nem sei o que recomendar como ungüento para o mal. Acho que seres dessa estirpe nem deveriam existir, pois são, sem dúvida, atores importantíssimos na construção da nossa tragédia nacional.
Pode até parecer exagero, mas o problema desses pequenos atos é que eles são na verdade hábitos, e como tais fazem parte da vida toda da pessoa. No banco, furam fila, aceitam e colaboram com a desonestidade, assistem e se calam, e alguns ainda dissimulam com frases feitas e eternas promessas falsas de corrigir a falha.
Na vida cotidiana, o vício da desonestidade continua nos negócios públicos, na iniciativa privada, nas relações privadas, nas pessoais; e aí por diante.
Quer saber?... a gente fica discutindo economia, clima, oportunidade, justiça e até ação de deuses sobre as criaturas, mas, no fim das contas, o grande problema do Brasil somos nós, os brasileiros.
 
A desgraça do Brasil somos nós: brasileiros

O sapo

 
O sapo
Naquela noite eu estava tranquilo; já era cerca de oito da noite, e eu tinha acabado de jantar. Coloquei o prato sujo sobre a pia e, não sei por que cargas d'água, resolvi ir até a edícula que fica nos fundos do quintal. Desci a escada que dá acesso ao íngreme terreno e fui até o interior do cômodo acessório. Ali observei muito sem saber o que buscava, e então resolvi pegar um pedaço de fio dental.
Na volta para o interior da casa, digamos, oficial daquele terreno, na escadaria de acesso pela qual desci até a edícula, galgando aos saltos, patamar por patamar, estava um sapo. Era um bicho feio, meio magro para os da sua espécie; tinha as costas em tom laranja e, como todos os seus anfíbios irmãos, trazia aqueles olhos enormes e brilhantes. Não pensei duas vezes; corri pelo corredor lateral da casa, dei a volta pela sala, adentrei a cozinha, a qual dá para a dita escadaria onde se encontrava o sapo.
Ali, na cozinha, peguei a vasilha de sal; confesso, eu tinha na cara um sorriso maligno; mas peguei a vasilha se sal e, pensando na empáfia daquele bicho horroroso, que só o cão sabe o porquê, ia subindo a escada da cozinha; pensando nessas coisas, apanhei um punhado de cloreto de sódio e mandei bem nas costas alaranjadas do anfíbio. Ele ficou doido; saltou de um lado para o outro até que caiu da escada e sumiu por entre umas bacias que estavam encostadas junto ao tanque de lavar roupas.
Sabe-se que os sapos fazem troca gasosa pela pele e que o sal absorve água; assim, quando se joga sal na pele desse anfíbio ele começa a perder muito líquido e ainda de quebra tem dificuldades para fazer suas trocas gasosas. Com essa idéia na cabeça pensei: esse bicho do demo, que agora deu para achar que simplesmente pode entrar em casa, com esse desespero todo que o sal lhe provoca, nunca mais vai voltar aqui. Guardei a vasilha de sal, fui para a sala, assisti um pouco de TV, até que veio o sono; então fui dormir.
Naquela noite o sono foi um inferno. Eu não conseguia ter paz, era um desespero; durante a noite toda sonhei com coisas sem nexo e, entre os lampejos de sonho, eis que surgia um sapo, ao que eu sempre tinha nas mãos uma vasilha de sal com a qual eu lhes salpicava de todo jeito. Porém sem êxito, pois quanto mais eu jogava sal, mais bicho nojento aparecia; era como se o sódio não lhes fizesse mal algum; pelo contrário, é como se fosse para os nojentos um deleite.
Foi quando senti, de súbito, que um havia tido a audácia de saltar sobre a minha perna. Em um movimento que foi entre a pior repulsa e o maior desespero, eu arremessei aquilo. E acordei nesse movimento tão brusco. Olhei para o meu lençol, ainda meio desnorteado, e constatei, pela mancha estranha, que não era bem sonho. Olhei para a direção que por lógica deveria ter sido arremessado o maligno nojento, e lá estava ele, com aqueles "olhões" que me fitavam; parecia com medo e ao mesmo tempo parecia me desafiar.
Nem quis pensar a respeito, coisa igual nunca se viu; como poderia ser possível aquela desforra que tinha me feito um sapo?! Não tinha o que ser pensado; corri até a cozinha e peguei a vasilha de sal. Agora sim, aquela peste ia ver; quase me matou de susto, e ainda emporcalhou meu lençol. Bicho mais nojento!
Mas parecia que ele já sabia do que eu ia fazer; assim que entrei no quarto, ele se escondeu sob um móvel, atirei-lhe sal com gosto; o infeliz saltou, e, no movimento mais rápido que já vi, desapareceu.
Aquele dia se passou um tanto diferente; quem iria acreditar nessa história?! Um diabo de sapo vingador... Um anfíbio com memória e hábito maquiavélicos... O que era aquele bicho afinal?! Passou-se o dia, e chegou a hora de dormir. Eu já havia dado notícia do ocorrido para toda a minha família, e tive como resposta aquele olhar que condena, como que diz: o que esse infeliz bebeu antes de dormir? Mas a mancha nojenta estava lá, bem marcada no lençol; assim como a marca de sal embaixo do móvel, pois ninguém mexeu naquela parte daquele cômodo da casa.
Antes de me deitar, fiz uma literal varredura na casa. Com uma vassoura, vasculhei cada "cantinho" da casa; sob as camas, sob as mesas, nos cantos sob o tapete (afinal, nunca se sabe o ardil que pode usar um sapo vingativo!). Enfim, fiz quase tudo para me certificar de que o maldito nojento já não se encontrava mais dentro de casa. E me deitei.
Contudo, alguma coisa estava errada; eu tinha a nítida sensação de que estava sendo observado. Eu sentia o sapo ali por perto. Demônio de anfíbio!, onde aquele bicho poderia estar?... Foi então que resolvi pensar como um sapo; se fosse eu no lugar dele, onde eu ficaria de tocaia para pegar aquele que tinha me jogado sal nas costas? Então lembrei de um lugar que realmente eu tinha negligenciado na minha "varredura": o cantinho do guarda roupa, que fica ao lado da cama.
Virei lentamente a cabeça e olhei naquela direção. E o que estava lá, senão aquele nojento par de olhos que refletiam a pouca luz que passava por uma fresta da porta? O sapo! Aquele maldito bicho do quinto dos infernos estava ali; olhava para mim em postura desafiadora; estava de tocaia; estava a me sondar; espreitava meus movimentos esperando... o meu sono para poder me atacar de novo?! Ah, mas ele não perdia por esperar; decidi fazer ele se arrepender daquela clara provocação.
Corri e, ao passar pela porta, fechei-a, peguei a vasilha de sal e chamei o meu sobrinho; uma criança adorável. A princípio ele não quis me dar bola, mas quando eu disse que era para caçar um sapo, ele topou na hora; muniu-se de uma vassoura e veio logo atrás de mim. Entramos no quarto e acendemos a luz. Eu fui direto ao bicho nojento, já com o sal no jeito; mas parece que ele já conhecia aquela vasilha; deu um salto antes mesmo que eu lhe arremessasse o cloreto; foi para debaixo da cama.
A esse movimento do fugitivo, meu angelical sobrinho, que acabara de fazer seis anos, disse que ele iria acertar o sapo, e, levando a vassoura, fez com que o bicho corresse para o quarto vizinho.
Aí sim, o anfíbio miserável estava encurralado. Estavamos de um lado eu e meu sobrinho, e do outro o sapo, com uma parede atrás de si. Preparei o sal em uma colher, cheguei bem perto para não errar, ele ficou desesperado e começou a saltar contra a parede, e eu joguei. É bem verdade que mais errei do que acertei, mas um pouco do sódio lhe caiu nas costas alaranjadas. O bicho ficou maluco, e meu sobrinho, o Victor, ficou em júbilo. Veja só que contraste. Pelo visto, o único concentrado ali era eu, porque tinha interesse no extermínio daquele bicho imundo que poderia voltar durante a madrugada só para se vingar.
Preparei outra dose de cloreto de sódio e mandei bem nas costas, agora toda suada, do nojento; ele saltava cada vez mais desesperado, e eu jogava sal, e o Victor só olhava e aprendia. Até que o bicho teve um rompante de desespero e veio na nossa direção, passou entre eu e meu sobrinho e foi se esconder embaixo da cama.
Eu, a essa altura, já estava disposto a segui-lo até os confins do mundo; ergui o colchão da cama e mandei o Victor dar de vassoura no sapo; mas, veja que ardiloso, o sapo havia sumido. Ficamos sem entender; que sortilégio era aquele? Será que o sapo tinha alguma saída secreta naquele ponto da casa? Pelo menos isso iria explicar sua aparição na madrugada anterior. Mas o danado do meu sobrinho foi muito mais sagaz que o sapo, e, dizendo para retirarmos um tapete velho que ali estava todo dobrado e aparentando não ter por onde entrar nas suas dobras, puxou o trapo e,... não é que o danado do sapo estava escondido ali, bem embaixo do tapete; o miserável do anfíbio havia se murchado todo para poder caber sob o trapo.
A essa literal descoberta do colega de caçada Victor, veio sobre o sapo uma chuva de paulada, muito bem temperada com sal, e muito sal! E joga sal e dá paulada e sapo pula de cá e pula de lá, e sal e paulada e salto. Até que o bicho ficou encurralado de novo. A essa altura já estávamos dispostos a aniquilar o bicho feio. Foi quando, ao mesmo tempo, eu e o Victor investimos sobre o asqueroso ser e lhe demos aquele que seria o golpe final: pau e sal.
Mas o bicho pulou de novo e, por forças creio eu demoníacas, conseguiu ir em direção à porta de saída. Corremos ainda atrás dele, mas o maldito saltou sobre uma possinha d'água só para se limpar do sal e depois se embrenhou sob umas folhas de bananeira que estavam caídas no quintal. O destemido e desmiolado do meu sobrinho ainda meteu a mão na folha de bananeira para descobrir o sapo, mas já era tarde, o bicho do inferno já havia desaparecido no breu da noite.
Aquela noite foi bem agitada; não porque sonhei ou porque um sapo havia pulado na minha perna enquanto eu dormia; mas por causa dos olhos do bicho nojento. Ainda hoje eu me lembro dele me olhando; e ainda hoje eu não sei dizer se ele queria me desafiar e me jurava de vingança com aquele olhar, ou se apenas me espreitava por medo... quem vai saber?... Eu só sei que já deixei o Victor avisado, a qualquer momento, do dia ou da noite, poderemos ter nova caçada; e, dessa vez, vai ser para matar!
 
O sapo

O outro lado

 
O outro lado

Hoje, por mero capricho do destino, estive assistindo à tevê, e me dei conta de que nunca podemos nos achar idiotas, o suficiente, ao ponto de acharmos que não possamos nos imbecilizar ainda mais.
No show de futilidades que eu via pela caixinha luminosa foi anunciada a vinda, à nossa cidade, de um conhecido ator, especificamente para um evento de moda. A tal visita demandará o fretamento de um avião, pagamento de fausto cachê e, pior, a função da tal celebridade resumir-se-á a sua presença. Isso mesmo! Todo esse aparato e dispêndio é apenas para que o sujeito esteja presente, sem nada mais a trazer de útil à sociedade, ou ao menos a acrescentar ao evento, senão sua cara. E é nisso que penso estupefato!...
Vejamos. Para que o citado artista tenha tal projeção e acabe tendo sua imagem vendida por tal monta, antes, foi preciso que uma emissora de televisão monopolizasse a audiência nacional. Depois, transformasse toda a produção televisiva em histórias paupérrimas do ponto-de-vista da criticidade e da criatividade, vindo os telespectadores a se tornarem consumidores de verdadeiras porcarias insossas e sem conteúdo, as quais simplesmente vendem um modelo de vida e sociedade ao extremo desigual, acrítica e conformista.
Então entram em cena os patrocinadores da concretização desse estilo de vida: a dita elite brasileira. Esse grupo explora as massas de zumbis imbecilizados pelas políticas de pão e circo, e, como não há justificativa real para as nossas monumentais desigualdades sociais, essa mesma elite, que paga o mísero salário mínimo ao trabalhador que constrói sua fortuna, gasta milhares de reais comprando uma marca, um rótulo ou título de nobreza. Mesmo que isso consista em apenas posar para uma foto ao lado de uma criatura cujo único atributo que possui é aparecer diariamente na tevê encenando um personagem surreal em uma história medíocre.
Se não fosse trágica essa situação, poderíamos entender nessa triste ironia uma certa justiça poética. Mas isso não é possível, pois não há justiça alguma num mundo onde alguns idiotizados não se importam em matar de fome milhares de pessoas só para alimentarem seu próprio ego.
 
O outro lado

(Contos do vô)

 
É o Jalapão, no vale do Corroó, perto de onde perdi a moringa de nhô Rua. Foi lá, muito próximo da penha do despenhadeiro, rodeado de libélulas, que falei a Mingá sobre o desfalecer de Joana Louca. Diferente do que dizia o bochicho do povéu, a Louca morrei foi em ponta de adaga de Lurdes dos anjos, mulher que de tão ruim deveria era de se chamar dos Demônios. Disseram a Mingá que tinha sido de bolsas a morte de Louca; que bexiga que nada, a grandona sangrou até última gota de sangue depois que a dos Demônios lhe enterrou no ventre adaga enferrujada, presente de seu pai, velho Bujão, demônio dos Demônios; faca pontiaguda que a Louca levava sempre à cinta. Dava para ver nos olhos da Demônio a fúria ensandecida. Esgar dos bichos peçonhentos em sorriso de riso demente. A Louca nem mexeu; só grunhiu, revirou os olhos e lambeu a terra. Foi assim, morte de gente matada instantânea. Dessas que entra o aço, e expira a vida; na hora, Mingá ficou doido; já tinha sofrido o diabo no luto distante da Doida; agora sabe que foi outra a razão da morte que não as bexigas. Foi o fio agudo do ciúme, pois a dos Demônios havia se enrabichado do Mingá, e ele, safado de nascença, deu asas aos sonhos de casamento da coisa ruim. Essa, sim, quando se encontrou com a Louca, em praça pública e por acaso, mais doida que Louca, disse à rival que havia de se casar com Mingá. A Louca ficou doida de ódio e, de mão espalmada, deu de palmas nas faces da dos Demônios. A endiabrada não levava desaforo para casa. Deu de mão na cinta e de adaga no buxo da Louca. Mingá não só não deu com as ideias no lugar mais; e, tempo pouco após, ele se jogou do cume da penha; espatifou-se no fundo do vale. Vale dizer, Mingá é culpado do sinistro. Esperto burro, malandro besta, construiu a cova rasa na prancha de uma pedra plana ao pé do paredão. Pobre Mingá. A Louca e a dos Demônios devem estar esperando por ele. E agora vai ser para a eternidade dos infernos...
 
(Contos do vô)