Mãe |
em 10/05/2012 17:18:41 (4824 leituras) |
Renovadora e reveladora do mundo A humanidade se renova no teu ventre. Cria teus filhos, não os entregues à creche. Creche é fria, impessoal. Nunca será um lar para teu filho. Ele, pequenino, precisa de ti. Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes, mulher? Independência, igualdade de condições… Empregos fora do lar? És superior àqueles que procuras imitar. Tens o dom divino de ser mãe Em ti está presente a humanidade.
Mulher, não te deixes castrar. Serás um animal somente de prazer e às vezes nem mais isso. Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar. Tumultuada, fingindo ser o que não és. Roendo o teu osso negro da amargura. |
|
|
A Revolução da Bondade |
em 06/05/2012 15:40:55 (4154 leituras) |
Acho que a grande revolução, e o livro «Ensaio sobre a Cegueira» fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática acção perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes.
José Saramago, in " Folha de S. Paulo, Outubro 1995" |
|
|
Mater |
em 03/05/2012 20:39:15 (2017 leituras) |
Tu, grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava, Para teus filhos és, no caminho da vida, Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava À longe Terra Prometida.
Jorra de teu olhar um rio luminoso. Pois, para batizar essas almas em flor, Deixas cascatear desse olhar carinhoso Todo o Jordão do teu amor.
E espalham tanto brilho as asas infinitas Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas, Que o seu grande dano sobe, quando as agitas, E vai perder-se entre as estrelas.
E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada, Fogem da humana dor, fogem do humano pé, E, à procura de Deus, vão subindo essa escada, Que é como a escada de Jacó.
Olavo Bilac, in "Poesias" |
|
|
A Poesia não se Inventou para Cantar o Amor |
em 24/04/2012 14:35:54 (4022 leituras) |
A poesia não se inventou para cantar o amor — que de resto não existia ainda quando os primeiros homens cantaram. Ela nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memória, pela sedução do ritmo, as leis da tribo. A adoração ou captação da divindade e a estabilidade social, eram então os dois altos e únicos cuidados humanos: — e a poesia tendeu sempre, e tenderá constantemente a resumir, nos conceitos mais puros, mais belos e mais concisos, as ideias que estão interessando e conduzindo os homens. Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ansia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo — é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do dinheiro, muito para baixo da política... É uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem. «Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora! Ora quando uma arte teima em exprimir unicamente um sentimento que se tornou secundário nas preocupações do homem — ela própria se torna secundária, pouco atendida e perde a pouco e pouco a simpatia das inteligências. Por isso hoje, tão tenazmente, os editores se recusam a editar, e os leitores se recusam a ler, versos em que só se cante de amor e de rosas. E o artista que não quer ser uma voz clamando no deserto e um papel apodrecendo no armazém, começa a evitar o amor como tema essencial da sua obra.
Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes' |
|
|
A Consciência Débil da Nossa Autenticidade |
em 19/04/2012 19:32:32 (1848 leituras) |
A consciência que te acompanha no que vais sendo é o puro registo disso que vais sendo para o poderes ler, se quiseres, depois de já ter sido. Mas no instante de seres o que és, o que és é apenas, por uma decisão anterior ao decidires. O que és é-lo onde a tua realidade profunda em profundeza obscura se realizou. O que és é-lo no absoluto de ti. A consciência testifica-nos apenas como o ser privilegiado que sabe o que é por aquilo que vai sendo e pode assim reconverter-se à posse iluminada disso que vai sendo. A consciência constata mas não interfere senão para se não ser mais o que se foi, ou mais rigorosamente, para se não querer ser o que se é - o que é ser-se ainda, embora de outra maneira. Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.
Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo' |
|
|
Amor e Crença |
em 17/04/2012 14:14:49 (6160 leituras) |
Sabes que é Deus? Esse infinito e santo Ser que preside e rege os outros seres, Que os encantos e a força dos poderes Reúne tudo em si, num só encanto?
Esse mistério eterno e sacrossanto, Essa sublime adoração do crente, Esse manto de amor doce e clemente Que lava as dores e que enxuga o pranto?
Ah! Se queres saber a sua grandeza Estende o teu olhar à Natureza, Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!
Deus é o Templo do Bem. Na altura imensa, O amor é a hóstia que bendiz a crença, Ama, pois, crê em Deus e... sê bendita!
|
|
|
Vida e Obra |
em 16/04/2012 13:37:17 (3209 leituras) |
Às 15 horas do dia 28 de Janeiro, sexta-feira, de 1916, em Melo, concelho de Gouveia, nasce Vergílio António Ferreira, filho de António Augusto Ferreira e Josefa Ferreira.
Em 1920, os pais de Vergílio Ferreira emigram para os Estados Unidos, deixando-o, com seus irmãos, ao cuidado de suas tias maternas. Esta dolorosa separação é descrita em Nitido Nulo. A neve - que virá a ser um dos elementos fundamentais do seu imaginário romanesco é o pano de fundo da infância e adolescência passadas na zona da Serra da Estrela.
Aos 10 anos, após uma peregrinação a Lourdes, entra no seminário do Fundão, que frequentará durante seis anos. Esta vivência será o tema central de Manhã Submersa.
Em 1932, deixa o seminário e acaba o Curso Liceal no Liceu da Guarda. Começa a dedicar-se à poesia. Entra para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuando a dedicar-se à poesia, nunca publicada, salvo alguns versos lembrados em Conta-Corrente e, em 1939, escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe. Licenciou-se em Filologia Clássica em 1940. Conclui o Estágio no Liceu D.João III (1942), em Coimbra. Começa a leccionar em Faro. Publica o ensaio "Teria Camões lido Platão?" e, durante as férias, em Melo, escreve "Onde Tudo Foi Morrendo". Em 1944, passa a leccionar no Liceu de Bragança, publica "Onde Tudo Foi Morrendo" e escreve Vagão "J". Na sua vida de professor liceal, há dois momentos fundamentais: a sua estada em Évora (1945-1958) - que entrará para o nosso imaginário através de Aparição - e a sua vinda para Lisboa (1959), onde ensinou no Liceu Camões até à sua reforma.
A primeira fase do seu percurso romanesco, agora retirada da edição da Obra Completa enquadra-se no neo-realismo então vigente. Ainda assim, Vagão J (1946) opera já uma pequena revolução sem consequências: o movimento neo-realista passou-lhe ao lado, e o autor, perante a incompreensão da crítica, recuou e só viria a reincidir muito mais tarde.
Com Mudança (1949) começa Vergílio Ferreira a conquistar a sua voz própria. Aliás, em maior rigor, dever-se-ia dizer que é a voz própria que começa a conquistar o seu autor. De facto, Mudança estava arquitectado para ser um romance neo-realista exemplar - e em muitos aspectos é-o; mas é também outra coisa, que posteriormente se veio a interpretar como sendo a deslocação do neo-realismo para o existencialismo. Tal deslocação ter-se-lhe-á imposto inconscientemente no processo de escrita, sobretudo no tratamento do tempo e da figura da infância. Na velocidade do tempo que estrutura o romance - e que decorre do modo de representação neo-realista: materialismo histórico e materialismo dialéctico, a figura da infância enquanto queda para o passado e queda tanto mais desamparada quanto esse passado não é apenas uma memória mas sobretudo o sem fundo que fecha e vela o próprio sentido do nosso trânsito pelo tempo, a figura da infância introduz a desaceleração que toda a hipótese de um sentido arqueológico introduz. Não significa isso que essa atenção ao mais original solucione os problemas de sentido - ela desloca apenas as coordenadas da procura. Mas com esse movimento transforma-se também o modo de representação.
É já de uma forma deliberada que Vergílio Ferreira se distancia do neo-realismo nos romances escritos antes de Aparição (1959) mas só publicados depois deste. Em Apelo da Noite (1963) reivindica-se face ao homem de acção, o "crime de pensar "; em Cântico Final (1960) é a arte, como encontro de um "mundo original", de um sagrado ou absoluto agnóstico, que se furta a qualquer compromisso ideológico. Mas é Aparição - que juntamente com A Sibila (1953) de Augustina Bessa-Luís o romance português contemporâneo - que imporá o seu universo romanesco, seja naquilo a que se chamou, não sem verdade, mas com alguma pressa reducionista, o eu existencialismo, seja no seu estilo ensaístico ou filosofante. Tentando descrever a experiência , no limite inenarrável, do aparecimento do eu a si próprio, e circunscrevendo-a dentro de uma problemática decididamente metafísica e existencial, Aparição é o limiar de uma agónica mas sempre deslumbrada interrogação sobre a condição humana. Estrela Polar (1962) e sobretudo Alegria Breve (1965), onde o pathos da sua escrita atinge o ponto de máxima exacerbação mas também de máxima perfeição, além de aprofundarem e completarem a temática de Aparição, introduzem um experimentalismo que terá larga descendência na nossa ficção. A partir de Nítido Nulo (1972) o tom da sua obra começa a ser matizado pela ironia. É uma ironia que vem daquilo que o desgaste ensina . E o que ele ensina é que toda a verdade se esvazia, toda a evidência se torna opaca, todas as ideias pesam para o lado da morte. O pathos até aí predominante era o era o tom de quem falava do interior de uma evidência estética, de uma Stimmung umbilical. Nunca em Vergílio Ferreira uma árvore provoca náusea ou uma praia com sol induz um crime absurdo. Se há náusea (mas praticamente não a há) ou absurdo (este sim, mais visível), eles não começam logo na facticidade do mundo mas somente na condição humana em si mesma. O mundo apenas é. Experienciá-lo esteticamente é já um limiar de sentido. Daí que os narradores vergilianos se sintam tentados a configurá-lo como uma verdade, existencial e não sistemática, é certo, mas suficientemente segura para se afirmar contra todas as ideologias. Ora o que acontece no "niilismo activo " de Nítido Nulo, no seu "morrer tudo", é tudo envolve também esta hipótese de verdade que os narradores anteriores utilizavam como escudo no combate cultural. O deslizar insensível da aisthesis para o logos é agora difícil, e sê-lo-á cada vez mais. Por isso os romances se começam a distribuir por dois espaços - tempo: um passado onde decorre o diferendo ideológico - cultural, diferendo não só incomensurável como, em última instância (revelada por aquilo que o desgaste ensina), inútil; e um presente de pura afirmação de ser.
O primeiro pólo perderá progressivamente a sua capacidade de engendramento narrativo, o combate que nele se desenrolará é apenas o ruído do mundo, não uma alínea de qualquer história teleologicamente configurada - daí a paralisia da história em Signo Sinal (1979). O segundo pólo, impossibilitado agora de funcionar como " fundamento mítico " de uma macronarrativa, apresenta-se como uma espécie de justaposição de hauikus, de nós de revelação que não constróem o "sentido de um final " mas uma litania de apaziguamento, uma pietas para com aquilo que mais primordialmente somos - um sujeito - casa atravessado por tudo o que vem de todos os pontos cardeais, e todavia lateral a essas múltiplas orientações, sempre não sabendo, como em Para Sempre (1983) ou nas séries de Conta-Corrente (1890 a 1992).
É este não - saber que obriga Vergílio Ferreira ao continuar da escrita e faz que os narradores vergilianos envelheçam como o seu autor. Envelhecer, por exemplo, é passar de filho a pai. De Até ao fim (1987) a Cartas a Sandra (1996), o narrador, entre outras coisas, é um pai a quem o filho morre. O que morre na morte do filho é aquela força que não suporta a suspensão da história e se autodestrói na procura da resposta que não há. Poder-se-ia mesmo dizer que a morte do filho é a prova por absurdo de que a lateralidade axiológica em que se coloca o pai não é simplesmente a desistência do cansaço mas a sabedoria da suplementaridade, seja a do puro possível da verdade branca do mar que move Até ao Fim, seja a da ironia dos contrafactuais ontológicos que se experimenta em Na Tua Face (1993).
Envelhecer é também passar da despesa do tempo à sua reinvenção no absoluto da memória. Mas esta lição (ou condição) proustiana tem em Vergílio Ferreira as condicionantes contemporâneas de uma sociedade tardo-capitalista, aquela em que a redescrição metafórica do que foi não pode já competir com os meios tecnológicos de representação (cinema, TV, vídeo, etc.) e por isso constrói a afectividade do acontecimento puro: " Não bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas só esse voo. Não bem a sua juventude eterna mas a eternidade. Não o gracioso dela mas a graça " (Em Nome da Terra , 1990).
Claro que há ainda romance, e até na sua dimensão mais consensual e acidentalmente romanesca, que é a da história de amor. Mas se, na sequência da tradição, também aqui o amor é aquilo que só se sabe depois, diferentemente dela, este depois não é a origem reencontrada mas um frágil presente que se sustenta apenas da escrita do nome amado, como em Cartas a Sandra, romance que deixa incompleto e que foi publicado no ano da sua morte. Vergílio Ferreira morre em Lisboa, a 1 de Março de 1996 e é sepultado em Melo.
Neste presente, que é a perda serena de todas as estórias, desenha-se com nitidez a dificuldade contemporânea do fazer sentido. É dessa crise (de cultura e de civilização), das suas várias alíneas polemizantes (marxismo, estruturalismo, filosofia da linguagem), mas também daquilo que cria a esperança de um depois dela (a arte, os autores que se amam, a insistência do pensamento), que falam os inúmeros ensaios que Vergílio Ferreira também escreveu, com muito particular acerto Carta ao Futuro (1958), Inovação do meu corpo (1969) e Pensar (1992).
Fonte: http://vferreira.no.sapo.pt/vida.html
"Um cantor fixa um tema. Mas esse tema, revelando, como revela, um interesse, revela sobretudo que foi só em torno dele que o artista pôde realizar-se como tal." — Vergílio Ferreira
Atravessa a sua obra o discurso da solidão, como um dos aspectos mais profundos da condição humana, sempre acompanhado pelo silêncio, que advém do abandono da entidade divina. Perpassa, na obra deste autor, uma tentativa de elevar os problemas individuais à generalidade dos Homens uma vez que não se refere a um "eu" que fala de si, mas um "EU" mais amplo que se refere a todos os Homens. Qualquer que seja a problemática tratada pelo este autor ela parte da reflexão sobre a questão do "eu" mas essa questionação avança, quase sempre, no sentido do homem ao Homem. De qualquer forma, verificamos que em Vergílio Ferreira, a consciência do "eu" e da sua solidão se manifestam através da visão, instrumento privilegiado de acesso ao pensamento reflexivo. As personagens de Vergílio Ferreira assumem um papel questionador, procurando esse sentido uma vez que o mundo aparecia (…) sob a forma de uma absurda estupidez. Por este motivo, Carlos Ceia observa que "o romance de Vergílio Ferreira é uma interrogação sobre a humanidade do homem". Os protagonistas de Vergílio Ferreira são, antes de mais, questionadores e problematizores do real: uns desvinculadas ou em vias de se desvincularem da vida; outros, à procura de uma Estrela Polar, guia no caminho ou à espera da resposta E se Deus não existisse?
Durante treze anos (1981-1994) Vergílio Ferreira publicou nove volumes de diário, ao qual pôs o título genérico de Conta-Corrente. Os textos contidos nesses volumes vão desde Fevereiro de 1969 (altura em que iniciou a sua escrita) até Dezembro de 1992 (altura em que terá abandonado o género). Os volumes subdividem-se em duas séries: a primeira composta por cinco volumes e a segunda composta por quatro volumes. A publicação do diário de Vergílio Ferreira foi uma das poucas tempestades na bonançosa comunidade literária pós 25 de Abril, como também é «um documento precioso sobre a evolução da ideias do século XX português. Vergílio Ferreira era um homem atento a tudo aquilo que o rodeava, quer tivesse interesse político, ou social, ou estético, ou literário. O seu diário veio, assim, agitar a comunidade portuguesa pensante, criando alguns focos de conflito por um lado e manifestações de apoio por outro. O autor já tinha por várias vezes tentado escrever um diário, mas foi só em 1969 que leva o seu projecto em frente: «Fiz cinquenta e três anos há dias. (…) É a opinião do Registo Civil (…). E então lembrei-me: e se eu tentasse uma vez mais o registo diário do que me foi afectando?» . Esta frase é sem dúvida elucidativa das intenções do autor: primeiro, tentar escrever um registo diário; segundo, escrever nele tudo aquilo que o foi marcando. Nesta frase também se pode verificar que não é a primeira vez que o autor tenta escrever um diário: «e se eu tentasse mais uma vez». O tentar escrever um diário é algo que está sempre presente, e, muitas vezes, a escrita desse mesmo diário torna-se difícil, pois o autor sente que se está a expor em demasiado perante o leitor, sente que o leitor pode “lê-lo”: «Extremamente difícil continuar este diário.(…) Que me leiam um romance, não me perturba. Mas não que me leiam a mim.» Existe a questão do íntimo sempre presente ao longo deste volume e o próprio autor refere que colocar ao alcance dos seus leitores a sua intimidade, os seus desabafos, não é propriamente algo que lhe agrada: «o desejo de “desabafar” não é propriamente um desejo sublime». Apesar de tudo a escrita do diário prossegue. Mas, o que levou o autor a continuar o seu diário? Segundo Eduardo Prado Coelho o diário «recorta sobre um fundo de impossibilidade de escrita. É na medida em que Vergílio Ferreira não tem a certeza de ser capaz de escrever ainda que suporta deslizar para este devir-feminino da escrita de um diário» . O próprio Vergílio Ferreira coloca uma condição para continuar a escrever o diário: «A continuar, só optando pelo registo que transcende os limites pessoais.» . No entanto, a escrita do diário prosseguiu.
Ficção 1943 O Caminho fica Longe 1944 Onde Tudo foi Morrendo 1946 Vagão "J" 1949 Mudança 1953 A Face Sangrenta 1954 Manhã Submersa 1959 Aparição 1960 Cântico Final 1962 Estrela Polar 1963 Apelo da Noite 1965 Alegria Breve 1971 Nitido Nulo 1972 Apenas Homens 1974 Rápida, a Sombra 1976 Contos 1979 Signo Sinal 1983 Para Sempre 1986 Uma Esplanada Sobre o Mar 1987 Até ao Fim 1990 Em Nome da Terra 1993 Na Tua Face 1996 Cartas a Sandra 1976 A Palavra Mágica (publicada em separado, no entanto faz parte do livro Contos) sexto filho
Ensaios 1943 Sobre o Humorismo de Eça de Queirós 1957 Do Mundo Original 1958 Carta ao Futuro 1963 Da Fenomenologia a Sartre 1963 Interrogação ao Destino, Malraux 1965 Espaço do Invisivel I 1969 Invocação ao Meu Corpo 1976 Espaço do Invisivel II 1977 Espaço do Invisivel III 1981 Um Escritor Apresenta-se 1987 Espaço do Invisivel IV 1988 Arte Tempo
Diários 1980 Conta-Corrente I 1981 Conta-Corrente II 1983 Conta-Corrente III 1986 Conta-Corrente IV 1987 Conta-Corrente V 1992 Pensar 1993 Conta-Corrente-nova série I 1993 Conta-Corrente-nova série II 1994 Conta-Corrente-nova série III 1994 Conta-Corrente-nova série IV
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Verg%C3%ADlio_Ferreira |
|
|
O cântico da terra |
em 10/04/2012 19:19:09 (2668 leituras) |
Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte. Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranqüila ao teu esforço. Sou a razão de tua vida. De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida. Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu. Teu arado, tua foice, teu machado. O berço pequenino de teu filho. O algodão de tua veste e o pão de tua casa.
E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos. |
|
|
Há homens que lutam um dia... |
em 09/04/2012 22:40:08 (11937 leituras) |
Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida Estes são os imprescindíveis |
|
|
Se alguém bater um dia à tua porta |
em 09/04/2012 22:27:53 (6877 leituras) |
Se alguém bater um dia à tua porta, Dizendo que é um emissário meu, Não acredites, nem que seja eu; Que o meu vaidoso orgulho não comporta Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir Alguém bater, fores a porta abrir E encontrares alguém como que à espera De ousar bater, medita um pouco. Esse era Meu emissário e eu e o que comporta O meu orgulho do que desespera. Abre a quem não bater à tua porta!
Fernando Pessoa, 5-9-1934 |
|
|
As rosas do tempo |
em 09/04/2012 22:05:32 (4793 leituras) |
Admirável espírito dos moços, a vida te pertence. Os alvoroços,
as iras e entusiasmos que cultivas são as rosas do tempo, inquietas, vivas.
Erra e procura e sofre e indaga e ama, que nas cinzas do amor perdura a flama.
"Viola de bolso". In: TELES, G.M. (org.) Poesia completa.. Intr. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. |
|
|
Oxford |
em 09/04/2012 21:41:10 (2264 leituras) |
Oh, partir pela noite enluarada No puro anseio de chegar lá onde A minha doce e fugitiva amada Na madrugada, trêmula, se esconde...
Oh, sentir palpitar em cada fronte O amor, oculto; e ouvir a voz velada Da última estrela que do céu responde Numa cintilação inesperada...
Oh, cruzar solidões, viver soturnas Magias, e entre lágrimas noturnas Ver o tempo passar, hora por hora
Para o instante em que, isenta de desejo Ela despertará sob o meu beijo Enquanto a treva se desfaz lá fora...
Oxford, 1938.
|
|
|
Poesia Matemática |
em 02/04/2012 21:30:26 (5444 leituras) |
Às folhas tantas Do livro matemático Um Quociente apaixonou-se Um dia Doidamente Por uma Incógnita. Olhou-a com seu olhar inumerável E viu-a, do Ápice à Base, Uma Figura Ímpar; Olhos rombóides, boca trapezóide, Corpo otogonal, seios esferóides. Fez da sua Uma vida Paralela a dela Até que se encontraram No Infinito. "Quem és tu?"indagou ele Com ânsia radical. "Sou a soma dos quadrados dos catetos. Mas pode me chamar de Hipotenusa." E de falarem descobriram que eram - O que, em aritmética, corresponde A almas irmãs - Primos-entre-si. E assim se amaram Ao quadrado da velocidade da luz Numa sexta potenciação Traçando Ao sabor do momento E da paixão Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais. Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas E os exegetas do Universo Finito. Romperam convenções newtonianas e pitagóricas. E, enfim, resolveram se casar Constituir um lar. Mais que um lar, Uma perpendicular.
Convidaram para padrinhos O Poliedro e a Bissetriz. E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro Sonhando com uma felicidade Integral E diferencial. E se casaram e tiveram uma secante e três cones Muito engraçadinhos E foram felizes Até aquele dia Em que tudo, afinal, Vira monotonia. Foi então que surgiu O Máximo Divisor Comum Freqüentador de Círculos Concêntricos. Viciosos. Ofereceu-lhe, a ela, Uma Grandeza Absoluta, E reduziu-a a um Denominador Comum. Ele, Quociente, percebeu Que com ela não formava mais Um Todo, Uma Unidade. Era o Triângulo, Tanto chamado amoroso. Desse problema ela era a fração Mais ordinária. Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade E tudo que era expúrio passou a ser Moralidade Como, aliás, em qualquer Sociedade.
|
|
|
Elegia: Indo para o leito |
em 14/03/2012 17:08:02 (2287 leituras) |
Elegia: Indo para o leito (John Donne)
Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz; Até que eu lute, em luta o corpo jaz. Como o inimigo diante do inimigo, Canso-me de esperar se nunca brigo. Solta esse cinto sideral que vela, Céu cintilante, uma área ainda mais bela. Desata esse corpete constelado, Feito para deter o olhar ousado. Entrega-te ao torpor que se derrama De ti a mim, dizendo: hora da cama. Tira o espartilho, quero descoberto O que ele guarda, quieto, tão de perto. O corpo que de tuas saias sai É um campo em flor quando a sombra se esvai. Arranca essa grinalda armada e deixa Que cresça o diadema da madeixa. Tira os sapatos e entra sem receio Nesse templo de amor que é o nosso leito. Os anjos mostram-se num branco véu Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu De Maomé. E se no branco têm contigo Semelhança os espíritos, distingo: O que o meu anjo branco põe não é O cabelo mas sim a carne em pé. Deixa que a minha mão errante adentre Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre. Minha América! Minha terra à vista, Reino de paz, se um homem só a conquista, Minha mina preciosa, meu Império, Feliz de quem penetre o teu mistério! Liberto-me ficando teu escravo; Onde cai minha mão, meu selo gravo. Nudez total! Todo o prazer provém De um corpo (como a alma sem corpo) sem Vestes. As jóias que a mulher ostenta São como as bolas de ouro de Atalanta: O olho do tolo que uma gema inflama Ilude-se com ela e perde a dama. Como encadernação vistosa, feita Para iletrados, a mulher se enfeita; Mas ela é um livro místico e somente A alguns (a que tal graça se consente) É dado lê-la. Eu sou um que sabe; Como se diante da parteira, abre- Te: atira, sim, o linho branco fora, Nem penitência nem decência agora. Para ensinar-te eu me desnudo antes: A coberta de um homem te é bastante.
Tradução: Augusto de Campos |
|
|
A Tua Roca |
em 28/02/2012 22:50:51 (2480 leituras) |
Quando te vejo à noitinha Nessa cadeira sentada, Xaile cruzado no peito, Na cinta a roca enfeitada.
Os olhos postos na estriga, Volvendo o fuso nos dedos, Os lábios contando ao fio Da tua boca segredos.
Eu digo, sem que tu oiças, Pondo os olhos na tua roca: Se eu um dia fosse estriga, Beijaria aquela boca!
Que eu nunca te vi fiando Sem invejar os desvelos Com que desfias do linho Os brancos, finos cabelos!
E aquela fita de seda Com que enleias o fiado, Irmã do lencinho verde Que trazes no penteado?
Parece aquilo um abraço De um amor que é todo nosso, A trança do teu cabelo Em volta do meu pescoço!
É por isso que eu murmuro Vendo a fita que se enreda: Quem me dera ser a estriga, E ela a fitinha de seda!
Eu já sei o que sinto, Se tristeza, se ventura, Mal que suspendes a roca Da tua breve cintura!
Penso que fias nos dedos Os dias da minha vida, Ao pé de ti sempre curta, Ao longe sempre comprida!
Pareces-me um ramalhete Sentada nessa cadeira, E a fita da tua roca A silva de uma roseira.
Meu amor, quando acabares De espiar a tua estriga E ouvires por alta noite Soluçar uma cantiga,
Sou eu que estou a lembrar-me Da tua divina boca, E penso que em mim são dados Os beijos que dás na roca!
Peninsulares - José Simões Dias (1844-1899)
|
|
|
A uma mulher amada |
em 25/02/2012 12:10:38 (3808 leituras) |
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro! Quem goza o prazer de te escutar, quem vê, às vezes, teu doce sorriso. Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia por minha carne, ó suave bem querida, e no transporte doce que a minha alma enleia eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar. Não ouço mais. Eu caio num langor supremo; E pálida e perdida e febril e sem ar, um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.
Safo Tradução por Décio Pignatari |
|
|
Quadras ao Gosto Popular |
em 16/02/2012 12:19:54 (17258 leituras) |
Cantigas de portugueses São como barcos no mar — Vão de uma alma para outra Com riscos de naufragar. Eu tenho um colar de pérolas Enfiado para te dar: As per'las são os meus beijos, O fio é o meu penar.
A terra é sem vida, e nada Vive mais que o coração... E envolve-te a terra fria E a minha saudade não!
Deixa que um momento pense Que ainda vives ao meu lado... Triste de quem por si mesmo Precisa ser enganado!
Morto, hei de estar ao teu lado Sem o sentir nem saber... Mesmo assim, isso me basta P'ra ver um bem em morrer.
Não sei se a alma no Além vive... Morreste! E eu quero morrer! Se vive, ver-te-ei; se não, Só assim te posso esquecer.
Se ontem à tua porta Mais triste o vento passou — Olha: levava um suspiro... Bem sabes quem to mandou...
Entreguei-te o coração, E que tratos tu lhe deste! É talvez por 'star estragado Que ainda não mo devolveste ...
A caixa que não tem tampa Fica sempre destapada Dá-me um sorriso dos teus Porque não quero mais nada.
Tens o leque desdobrado Sem que estejas a abanar. Amor que pensa e que pensa Começa ou vai acabar.
Duas horas te esperei Dois anos te esperaria. Dize: devo esperar mais? Ou não vens porque inda é dia?
Toda a noite ouvi no tanque A pouca água a pingar. Toda a noite ouvi na alma Que não me podes amar.
Dias são dias, e noites São noites e não dormi... Os dias a não te ver As noites pensando em ti.
Trazes a rosa na mão E colheste-a distraída... E que é do meu coração Que colheste mais sabida?
Teus olhos tristes, parados, Coisa nenhuma a fitar... Ah meu amor, meu amor, Se eu fora nenhum lugar!
Depois do dia vem noite, Depois da noite vem dia E depois de ter saudades Vêm as saudades que havia.
No baile em que dançam todos Alguém fica sem dançar. Melhor é não ir ao baile Do que estar lá sem lá estar.
Vale a pena ser discreto? Não sei bem se vale a pena. O melhor é estar quieto E ter a cara serena.
Rosmaninho que me deram, Rosmaninho que darei, Todo o mal que me fizeram Será o bem que eu farei.
Tenho um relógio parado Por onde sempre me guio. O relógio é emprestado E tem as horas a fio.
Quando é o tempo do trigo É o tempo de trigar, A verdade é um postigo A que ninguém vem falar.
Levas chinelas que batem No chão com o calcanhar. Antes quero que me matem Que ouvir esse som parar.
Em vez da saia de chita Tens uma saia melhor. De qualquer modo és bonita, E o bonita é o pior.
Levas uma rosa ao peito E tens um andar que é teu... Antes tivesses o jeito De amar alguém, que sou eu.
Teus brincos dançam se voltas A cabeça a perguntar. São como andorinhas soltas Que inda não sabem voar.
Tens uma rosa na mão. Não sei se é para me dar. As rosas que tens na cara, Essas sabes tu guardar.
Fomos passear na quinta, Fomos à quinta em passeio. Não há nada que eu não sinta Que me não faça um enleio.
Os alcatruzes da nora Andam sempre a dar e dar, É para dentro e pra fora E não sabem acabar.
Ó minha menina loura, Ó minha loura menina, Dize a quem te vê agora Que já foste pequenina ...
Tens um livro que não lês, Tens uma flor que desfolhas; Tens um coração aos pés E para ele não olhas.
Nunca dizes se gostaste Daquilo que te calei. Sei bem que o adivinhaste. O que pensaste não sei.
O vaso que dei àquem Que não sabe quem lho deu Há de ser posto à janela Sem ninguém saber que, é meu.
Tive uma flor para dar A quem não ousei dizer Que lhe queria falar, E a flor teve que morrer.
Quando olhaste para trás, Não supus que era por mim. Mas sempre olhaste, e isso faz Que fosse melhor assim.
Todos os dias eu penso Naquele gesto engraçado Com que pegaste no lenço Que estava esquecido ao lado.
Tens uma salva de prata Onde pões os alfinetes... Mas não tem salva nem prata Aquilo que tu prometes.
Adivinhei o que pensas Só por saber que não era Qualquer das coisas imensas Que a minh'alma sempre espera.
Ouvi-te cantar de dia. De noite te ouvi cantar. Ai de mim, se é de alegria! Ai de mim, se é de penar!
Por um púcaro de barro Bebe-se a água mais fria. Quem tem tristezas não dorme, Vela para ter alegria.
O malmequer que arrancaste Deu-te nada no seu fim, Mas o amor que me arrancaste, Se deu nada, foi a mim.
Teu xaile de seda escura É posto de tal feição Que alegre se dependura Dentro do meu coração.
O manjerico comprado Não é melhor que o que dão. Põe o manjerico ao lado E dá-me o teu coração.
Rosa verde, rosa verde,... Rosa verde é coisa que há? É uma coisa que se perde Quando a gente não está lá.
A rosa que se não colhe Nem por isso tem mais vida. Ninguém há que te não olhe Que te não queira colhida.
Há verdades que se dizem E outras que ninguém dirá. Tenho uma coisa a dizer-te Mas não sei onde ela está.
Quando ao domingo passeias Levas um vestido claro. Não é o que te conheço Mas é em ti que reparo.
Tenho vontade de ver-te Mas não sei como acertar. Passeias onde não ando, Andas sem eu te encontrar.
Andorinha que passaste, Quem é que te esperaria? Só quem te visse passar. E esperasse no outro dia.
Nuvem do céu, que pareces Tudo quanto a gente quer, Se tu, ao menos, me desses O que se não pode ter!
O burburinho da água No regato que se espalha É como a ilusão que é mágoa Quando a verdade a baralha.
Leve sonho, vais no chão A andares sem teres ser. És como o meu coração Que sente sem nada ter.
Vai alta a nuvem que passa. Vai alto o meu pensamento Que é escravo da tua graça Como a nuvem o é do vento.
Ambos à beira do poço Achamos que é muito fundo. Deita-se a pedra, e o que eu ouço É teu olhar, que é meu mundo.
Aquela senhora velha Que fala com tão bom modo Parece ser uma abelha Que nos diz: "Não incomodo".
Maria, se eu te chamar, Maria, vem cá dizer Que não podes cá chegar. Assim te consigo ver.
Boca com olhos por cima Ambos a estar a sorrir... Já sei onde está a rima Do que não ouso pedir.
Quem lavra julga que lavra Mas quem lavra é o que acontece... Não me dás uma palavra E a palavra não me esquece.
Tinhas um pente espanhol No cabelo Português, Mas quando te olhava o sol, Eras só quem Deus te fez.
Boca de riso escarlate E de sorriso de rir... Meu coração bate, bate, Bate de te ver e ouvir.
Quem me dera, quando fores Pela rua sem me ver, Supor que há coisas melhores E que eu as pudera ter.
Acendeste uma candeia Com esse ar que Deus te deu. Já não é noite na aldeia E, se calhar, nem no céu.
Eu te pedi duas vezes Duas vezes, bem o sei, Que por fim me respondesses Ao que não te perguntei.
Não digas mal de ninguém Que é de ti que dizes mal. Quando dizes mal de alguém Tudo no mundo é igual.
Todas as coisas que dizes Afinal não são verdade. Mas, se nos fazem felizes, Isso é a felicidade.
Dás nós na linha que cose Para que pare no fim. Por muito que eu pense e ouse, Nunca dás nó para mim.
Não sei em que coisa pensas Quando coses sossegada... Talvez naquelas ofensas Que fazes sem dizer nada.
As gaivotas, tantas, tantas, Voam no rio pro mar... Também sem querer encantas, Nem é preciso voar.
As ondas que a maré conta Ninguém as pode contar. Se, ao passar, ninguém te aponta, Aponta-te com o olhar.
Todos os dias que passam Sem passares por aqui São dias que me desgraçam Por me privarem de ti.
Quando cantas, disfarçando Com a cantiga o cantar, Parece o vento mais brando Nesta brandura do ar.
Não sei que grande tristeza Me fez só gostar de ti Quando já tinha a certeza De te amar porque te vi.
A mantilha de espanhola Que trazias por trazer Não te dava um ar de tola Porque o não podias ter.
Boca de riso escarlate Com dentes brancos no meio, Meu coração bate, bate, Mas bate por ter receio.
Se há uma nuvem que passa Passa uma sombra também. Ninguém diz que é desgraça Não ter o que se não tem.
Tu, ao canto da janela Sorrias a alguém da rua, Porquê ao canto, se aquela Posição não é a tua?
Dá-me, um sorriso ao domingo, Para à segunda eu lembrar. Bem sabes: sempre te sigo E não é preciso andar.
Tens olhos de quem não quer Procurar quem eu não sei. Se um dia o amor vier Olharás como eu olhei.
Pobre do pobre que é ele E não é quem se fingiu! Por muito que a gente vele Descobre que já dormiu.
Não me digas que me queres Pois não sei acreditar. No mundo há muitas mulheres Mas mentem todas a par.
Água que não vem na bilha É como se não viesse. Como a mãe, assim a filha... Antes Deus as não fizesse.
Ó loura dos olhos tristes Que me não quis escutar... Quero só saber se existes Para ver se te hei de amar.
Há grandes sombras na horta Quando a amiga lá vai ter... Ser feliz é o que importa, Não importa como o ser!
O moinho de café Mói grãos e faz deles pó. O pó que a minh'alma é Moeu quem me deixa só.
Dizem que não és aquela Que te julgavam aqui. Mas se és alguém e és bela Que mais quererão de ti?
Tenho um livrinho onde escrevo Quando me esqueço de ti. É um livro de capa negra Onde inda nada escrevi.
Olhos tristes, grandes, pretos, Que dizeis sem me falar Que não há filhos nem netos De eu não querer amar.
Meu coração a bater Parece estar-me a lembrar Que, se um dia te esquecer, Será por ele parar.
Quantas vezes a memória Para fingir que inda é gente, Nos conta uma grande história Em que ninguém está presente
Trazes o vestido novo Como quem sabe o que faz. Como és bonita entre o povo, Mesmo ficando para trás!
A tua boca de riso Parece olhar para a gente Com um olhar que é preciso Para saber que se sente.
A laranja que escolheste Não era a melhor que havia. Também o amor que me deste Qualquer outra mo daria.
Se o sino dobra a finados Há de deixar de dobrar. Dá-me os teus olhos fitados E deixa a vida matar!
Por muito que pense e pense No que nunca me disseste, Teu silêncio não convence. Faltaste quando vieste.
Tome lá, minha menina, O ramalhete que fiz. Cada flor é pequenina, Mas tudo junto é feliz.
A vida é pouco aos bocados. O amor é vida a sonhar. Olho para ambos os lados E ninguém me vem falar.
Dei-lhe um beijo ao pé da boca Por a boca se esquivar. A idéia talvez foi louca, O mal foi não acertar.
Compras carapaus ao cento, Sardinhas ao quarteirão. Só tenho no pensamento Que me disseste que não.
Duas horas te esperei. Duas mais te esperaria. Se gostas de mim não sei... Algum dia há de ser dia ...
Tenho um desejo comigo Que me traz longe de mim. É saber se isto é contigo Quando isto não é assim.
Leve vem a onda leve Que se estende a adormecer, Breve vem a onda breve Que nos ensina a esquecer.
Quando a manhã aparece Dizem que nasce alegria. Isso era se Ela viesse. Até de noite era dia.
Nuvem alta, nuvem alta, Porque é que tão alta vais? Se tens o amor que me falta, Desce um pouco, desce mais!
Teu carinho, que é fingido, Dá-me o prazer de saber Que inda não tens esquecido O que o fingir tem de ser.
A luva que retiraste Deixou livre a tua mão. Foi com ela que tocaste, Sem tocar, meu coração.
O avental, que à gaveta Foste buscar, não terá Algibeira em que me meta Para estar contigo já?
Quando vieste da festa, Vinhas cansada e contente. A minha pergunta é esta. Foi da festa ou foi da gente?
Rouxinol que não cantaste, Galo que não cantarás, Qual de vós me empresta o canto Para ver o que ela faz?
Quando chegaste à janela Todos que estavam na rua Disseram: olha, é aquela, Tal é a graça que é tua!
Nuvem que passas no céu, Dize a quem não perguntou Se é bom dizer a quem deu: "O que deste, não to dou."
"Vou trabalhando a peneira E pensando assim assim. Eu não nasci para freira. Gosto que gostem de mim."
Roseiral que não dás rosas Senão quando as rosas vêm, Há muitas que são formosas Sem que o amor lhes vá bem.
Ribeirinho, ribeirinho, Que vais a correr ao léu Tu vais a correr sozinho, Ribeirinho, como eu.
"Vesti-me toda de novo E calcei sapato baixo Para passar entre o povo E procurar quem não acho."
Tua boca me diz sim, Teus olhos me dizem não. Ai, se gostasses de mim E sem saber a razão.
Quero lá saber por onde Andaste todo este dia! Nunca faz-bem quem se esconde Mas onde foste, Maria?
O vaso do manjerico Caiu da janela abaixo. Vai buscá-lo, que aqui fico A ver se sem ti te acho.
O cravo que tu me deste Era de papel rosado. Mas mais bonito era inda O amor que Me foi negado,
Trazes os sapatos, pretos Cinzentos de tanto pó. Feliz é quem tiver netos De quem tu sejas avó!
Vem de lá do monte verde A trova que não entendo. É um som bom que se perde Enquanto se vai vivendo.
Moreninha, moreninha, Com olhos pretos a rir. Sei que nunca serás minha, Mas quero ver-te sorrir.
Puseste a chaleira ao lume Com um jeito de desdém. Suma-te o diabo que sume Primeiro quem te quer bem!
Lá vem o homem da capa Que ninguém sabe quem é... Se o lenço os olhos te tapa Veio os teus olhos por fé.
Loura dos olhos dormentes, Que são azuis e amarelos, Se as minhas mãos fossem pentes, Penteavam-te os cabelos.
O sino dobra a finados. Faz tanta pena a dobrar! Não é pelos teus pecados Que estão vivos a saltar.
Traze-me um copo com água E a maneira de o trazer. Quero ter a minha mágoa Sem mostrar que a estou a ter.
Olha o teu leque esquecido! Olha o teu cabelo solto! Maria, toma sentido! Maria, senão não volto!
Já duas vezes te disse Que nunca mais te diria O que te torno a dizer E fica para outro dia.
Lavadeira a bater roupa Na pedra que está na água, Achas minha mágoa pouca? É muito tudo o que é mágoa.
O teu lenço foi mal posto Pela pressa que to pôs. Mais mal posto é o meu desgosto Do que não há entre nós.
Olhos de veludo falso E que fitam a entender, Vós sois o meu cadafalso A que subo com prazer.
Duas vezes eu tentei Dizer-te que te queria, E duas vezes te achei Só a que falava e ria.
Meu coração é uma barca Que não sabe navegar. Guardo o linha na arca Com um ar de o acarinhar.
Tenho um desejo comigo Que hoje te venho dizer: Queria ser teu amigo Com amizade a valer.
És Maria da Piedade Pois te chamaram assim. Sê lá Maria à vontade, Mas tem piedade de mim.
Tu És Maria da Graça, Mas a que graça é que vem Ser essa graça a desgraça De quem a graça não tem?
Caiu no chão o novelo E foi-se desenrolando. Passas a mão no cabelo. Não sei em que estás pensando.
A tua saia, que é curta, Deixa-te a perna a mostrar: Meu coração já se furta A sentir sem eu pensar.
Meu amor é fragateiro. Eu sou a sua fragata. Alguns vão atrás do cheiro, Outros vão só pela arreta.
Vai longe, na serra alta, A nuvem que nela toca... Dá-me aquilo que me falta — Os beijos da tua boca.
HÁ um doido na nossa voz Ao falarmos, que prendemos: É o mal-estar entre nós Que vem de nos percebermos.
Teu vestido porque é teu, Não é de cetim nem chita. É de sermos tu e eu E de tu seres bonita.
Entornaram-me o cabaz Quando eu vinha pela estrada. Como ele estava vazio, Não houve loiça quebrada.
O rosário da vontade, Rezei-o trocado e a esmo. Se vens dizer-me a verdade, Vê lá bem se é isso mesmo.
Castanhetas, castanholas — Tudo é barulho a estalar. As que ao negar são mais tolas São mais espertas ao dar.
O manjerico e a bandeira Que há no cravo de papel — Tudo isso enche a noite inteira, Ó boca de sangue e mel.
Tem A filha da caseira Rosas na caixa que tem. Toda ela é uma rosa inteira Mas não a cheira ninguém.
A moça que há na estalagem Ri porque gosta de rir. Não sei o que é da viagem Por esta moça existir.
Lenço preto de orla branca Ataste-o mal a valer À roda desse pescoço Que tem que se lhe dizer.
Aquela loura de preto Com uma flor branca ao peito, É o retrato completo De como alguém é perfeito.
A tua janela é alta, A tua casa branquinha. Nada lhe sobra ou lhe falta Senão morares sozinha.
Vem cá dizer-me que sim. Ou vem dizer-me que não. Porque sempre vens assim P'ra ao pé do meu coração,.
Cortaste com a tesoura O pano de lado a lado. Porque é que todo teu gesto Tem a feição de engraçado?
Ai, os pratos de arroz doce Com as linhas de canela! Ai a mão branca que os trouxe! Ai essa mão ser a dela!
Frescura do que é regado, Por onde a água inda verte... Quero dizer-te um bocado Do que não ouso dizer-te.
Ó pastora, ó pastorinha, Que tens ovelhas e riso, Teu riso ecoa no vale E nada mais é preciso.
A abanar o fogareiro Ela corou do calor. Ah, quem a fará corar De um outro modo melhor!
Manjerico que te deram, Amor que te querem dar... Recebeste o manjerico. O amor fica a esperar.
Dona Rosa, Dona Rosa. De que roseira é que vem, Que não tem senão espinhos Para quem só lhe quer bem?
O laço que tens no peito Parece dado a fingir. Se calhar já estava feito Como o teu modo de rir.
Dona Rosa, Dona Rosa, Quando eras inda botão Disseram-te alguma cousa De a flor não ter coração?
Tenho um segredo a dizer-te Que não te posso dizer. E com isto já to disse Estavas farta de o saber ...
Os ranchos das raparigas Vão a cantar pela estrada... Não oiço as suas cantigas Só tenho pena de nada.
Rezas porque outros rezaram, E vestes à moda alheia... Quando amares vê se amas Sem teres o amor na idéia.
A senhora da Agonia Tem um nicho na Igreja. Mas a dor que me agonia Não tem ninguém quem a veja.
Aparta o cabelo ao meio A do cabelo apartado. É a estrelinha em que leio Que estou a ser enganado.
Esse frio cumprimento Tem ironia p'ra mim. Porque é o mesmo movimento Com que a gente diz que sim...
Vejo lágrimas luzir Nos teus olhos de fingida. É como quando à janela Chegas, um pouco escondida.
Trincaste, para o partir, O retrós de costurar. Quem não soubesse diria Que o estavas a beijar.
Deixaste o dedal na mesa Só pelo tempo da ausência — Se eu to roubasse dirias Que eu não tinha consciência.
Dá-me um sorriso daqueles Que te não servem de nada Como se dá às crianças Uma caixa esvaziada.
O canário já não canta. Não canta o canário já. Aquilo que em ti me encanta Talvez não me encantará.
Rezas a Deus ao deitar-te Pedindo não sei o quê. Se rezasses ao Demônio, Eu saberia o que é.
Boca que tens um sorriso Como se fosse um florir, Teus olhos cheios de riso Dão-lhe um orvalho de rir.
Uma boneca de trapos Não se parte se, cair. Fizeste-me a alma em farrapos Bem: não se pode partir.
O que sinto e o que penso De ti é bem e é mal. É como quando uma xícara Tem o pires desigual.
Levas a mão ao cabelo Num gesto de quem não crê. Mas eu não te disse nada. Duvidas de mim? Porquê?
Compreender um ao outro É um jogo complicado. Pois quem engana não sabe Se não estava enganado.
A roda dos dedos juntos Enrolaste a fita a rir. Corações não são assuntos E falar não é sentir.
Chama-te boa, e o sentido Não é bem o que eu supunha. Boa não é apelido: É, quando muito, alcunha.
Tu És Maria das Dores, Tratam-te só por Maria. Está bem, porque deste as dores A quem quer que em ti se fia.
Se vais de vestido novo O teu próprio andar o diz, E ao passar por entre o povo Até teu corpo é feliz.
Tens um anel imitado Mas vais contento de o ter. Que importa o falsificado Se é verdadeiro o prazer.
Tenho ainda na lembrança Como uma coisa que veio, O quando inda eras criança. Nunca mais me dás um beijo!
O ar do campo vem brando, Faz sono haver esse ar. Já não sei se estou sonhando Nem de que serve sonhar.
Quando ela pôs o chapéu Como se tudo acabasse, Sofri de não haver véu Que inda um pouco a demorasse.
Quem te deu aquele anel Que ainda ontem não tinhas? Como tu foste infiel A certas idéias minhas!
Essa costura à janela Que lhe inclinou a cabeça Fez-me ver como era dela Que o coração tinha pressa.
O ribeiro bate, bate Nas pedras que nele estão, Mas nem há nada em que bata O meu pobre coração.
Nunca houve romaria Que se lembrassem de mim... Também quem se lembraria De quem se lamenta assim?
Comes melão às dentadas Porque assim não deve ser. Não sei se essas gargalhadas Me fazem rir ou sofrer.
Há dois dias que não vejo Modo de tornar-te a ver: Se outros também te não vissem, Desejava sem sofrer.
O teu cabelo cortado A maneira de rapaz Não deixa justificado Aquele amor que me faz.
Se te queres despedir Não te despidas de mim, Que eu não posso consentir Que tu me trates assim.
Quem te fez assim tão linda Não o fez para mostrar Que se é mais linda ainda Quando se sabe negar.
Floriu a roseira toda Com as rosas de trepar... Tua cabeça anda à roda Mas sabes-te equilibrar.
Morena dos olhos baços Velados de não sei quê, No mundo há falta de braços Para o que o teu olhar vê.
Quando compões o cabelo Com tua mão distraída Fazer-me um grande novelo No pensamento da vida.
Teus olhos de quem não fita Vagueiam, 'stão na distância. Se fosses menos bonita, Isso não tinha importância.
Tocam sinos a rebate E levantaste-te logo. Teu coração só não bate Por a quem puseste fogo.
O coração é pequeno, Coitado, e trabalha tanto! De dia a ter que chorar, De noite a fazer o pranto ...
Deram-me um cravo vermelho Para eu ver como é a vida. Mas esqueci-me do cravo Pela hora da saída.
Fiz estoirar um cartucho Contra a parede do lado. Assim farei eu à vida, Que o sonhar fez-me assoprado.
O malmequer que colheste Deitaste-o fora a falar. Nem quiseste ver a sorte Que ele te podia dar.
Comi melão retalhado E bebi vinho depois, Quanto mais olho p'ra ti Mais sei que não somos dois.
Trazes um lenço novinho Na cabeça e a descair, Se eu te beijar no cantinho Só saberá quem nos vir.
E ao acabar estes versos Feitos em modo menor Cumpre prestar homenagem À bebedeira do cantor.
Toda a noite, toda a noite, Toda a noite sem pensar... Toda a noite sem dormir E sem tudo isso acabar.
Puseste um vaso à janela. Foi sinal ou não foi nada, Ou foi p'ra que pense em ti Que te não importas nada?
Eu vi ao longe um navio Que tinha uma vela só, Ia sozinho no mar... Mas não me fazia dó.
Corre a água pelas calhas Lá segundo a sua lei. Pareces, vista de lado, Aquela que te julguei.
Lá por olhar para ti Não julgues que é por gostar. Eu gosto muito do sol, E nem o posso fitar.
Viraste-me a cara quando Ia a dizer-te, à chegada, Que, se voltasses a cara, Que eu não me importava nada.
Na quinta que nunca houve Há um poço que não há Onde há de ir encontrar água Alguém que te entenderá.
Voam débeis e enganadas As folhas que o vento toma. Bem sei: deitamos os dados Mas Deus é sue deita a soma.
Ribeirinho, ribeirinho, Que falas tão devagar, Ensina-me o teu caminho De passar sem desejar amar.
Do alto da torre da igreja Vê-se o campo todo em roda. Só do alto da esperança Vemos nós a vida toda.
Dá-me um sorriso a brincar, Dá-me uma palavra a rir, Eu me tenho por feliz Só de te ver e te ouvir.
Trazes um lenço apertado Na cabeça, e um nó atrás. Mas o que me traz cansado É o nó que nunca se faz.
Vi-te a dizer um adeus A alguém que se despedia, E quase implorei dos céus Que eu partisse qualquer dia.
Eu voltei-me para trás Para ver se te voltavas. Há quem dê favas aos burros, Mas eles comem as favas.
Deixaste cair no chão O embrulho das queijadas. Riste disso — E porque não? A vida é feita de nadas.
Deste-me um cordel comprido Para atar bem um papel. Fiquei tão agradecido Que inda tenho esse cordel.
No dia de Santo Antônio Todos riem sem razão. Em São João e São Pedro Como é que todos rirão?
Tenho uma pena que escreve Aquilo que eu sempre sinta. Se é mentira, escreve leve. Se é verdade, não tem tinta.
O capilé é barato E é fresco quando há calor. Vou sonhar o teu retrato Já que não tenho melhor.
Baila o trigo quando há vento Baila porque o vento o toca Também baila o pensamento Quando o coração provoca.
Fizeste molhos de flores Para não dar a ninguém. São como os molhos de amores Que foras fazer a alguém.
Se houver alguém que me diga Que disseste bem de mim, Farei uma outra cantiga, Porque esta não é assim.
Manjerico, manjerico, Manjerico que te dei, A tristeza com que fico Inda amanhã a terei.
Ris-te de mim? Não me importo. Rir não faz mal a ninguém. Teu rir é tão engraçado Que, quando faz mal, faz bem.
Ouves-me sem me entender. Sorris sem ser porque falo. É assim muita mulher. Mas nem por isso me calo.
Se eu te pudesse dizer O que nunca te direi, Tu terias que entender Aquilo que nem eu sei.
Bailaste de noite ao som De uma música estragada. Bailar assim só é bom Quando a alegria é de nada.
Não sei que flores te dar Para os dias da semana. Tens tanta sombra no olhar Que o teu olhar sempre engana.
Descasquei o camarão, Tirei-lhe a cabeça toda. Quando o amor não tem razão É que o amor incomoda.
Cabeça de ouro mortiço Com olhos de azul do céu, Quem te ensinou o feitiço De me fazer não ser eu?
São já onze horas da noite. Porque te não vais deitar? Se de nada serve ver-te, Mais vale não te fitar.
Tiraste o linho da arca, Da arca tiraste o linho. Meu coração tem a marca Que lhe puseste mansinho.
Ao dobrar o guardanapo Para o meteres na argola Fizeste-me conhecer Como um coração se enrola.
Quando eu era pequenino Cantavam para eu dormir. Foram-se o canto e o menino. Sorri-me para eu sentir!
Meia volta, toda a volta, Muitas voltas de dançar... Quem tem sonhos por escolta Não é capaz de parar.
Fui passear no jardim Sem saber se tinha flores Assim passeia na vida Quem tem ou não tem amores.
No dia em que te casares Hei de te ir ver à Igreja Para haver o sacramento De amar-te alguém que ali esteja.
Quando apertaste o teu cinto Puseste o cravo na boca. Não sei dizer o que sinto Quando o que sinto me toca.
Toda a noite ouvi os cães P'ra manhã ouvi os galos. Tristeza — vem ter conosco. Prazeres — é ir achá-los.
Deram-me, para se rirem, Uma corneta de barro, Para eu tocar à entrada Do Castelo do Diabo.
Quando te apertei a mão Ao modo de assim-assim, Senti o meu coração A perguntar-me por mim.
Tinhas um vestido preto Nesse dia de alegria... Que certo! Pode pôr luto Aquele que em ti confia.
Só com um jeito do corpo Feito sem dares por isso Fazes mais mal que o demônio Em dias de grande enguiço.
Esse xaile que arranjaste, Com que pareces mais alta Dá ao teu corpo esse brio Que à minha coragem falta.
Tem um decote pequeno, Um ar modesto e tranqüilo; Mas vá-se lá descobrir Coisa pior do que aquilo!
Teus olhos poisam no chão Para não me olhar de frente. Tens vontade de sorrir Ou de rir? É tão dif'rente!
Quando passas pela rua Sem reparar em quem passa, A alegria é toda tua E minha toda a desgraça. A esmola que te vi dar Não me deu crença nem fé, Pois a que estou a esperar Não é esmola que se dê. Caiu no chão a laranja E rolou pelo chão fora. Vamos apanhá-la juntos, E o melhor é ser agora. Quando te vais a deitar Não sei se rezas se não. Devias sempre rezar E sempre a pedir perdão. É limpo o adro da igreja. É grande o largo da praça. Não há ninguém que te veja Que te não encontre graça. Quando agora me sorriste Foi de contente de eu vir, Ou porque me achaste triste, Ou já estavas a sorrir? Boca que o riso desata Numa alegria engraçada, És como a prata lavrada Que é mais o lavor que a prata. Por cima da saia azul Há uma blusa encarnada, E por cima disso os olhos Que nunca me dizem nada. Fazes renda de manhã E fazes renda ao serão. Se não fazes senão renda, Que fazes do coração? Todos te dizem que és linda. Todos to dizem a sério. Como o não sabes ainda Agradecer é mistério. Eu bem sei que me desdenhas Mas gosto que seja assim, Que o dendém que por mim tenhas Sempre é pensares em mim. A tua irmã é pequena, Quando tiver tua idade, Transferirei minha pena Ou fico só com metade? Quando me deste os bons dias Deste-mos como a qualquer. Mais vale não dizer nada Do que assim nada dizer. Tenho uma idéia comigo De que não quero falar. Se a idéia fosse um postigo Era pra te ver passar. Andorinha que vais alta, Porque não me vens trazer Qualquer coisa que me falta E que te não sei dizer? Tenho um lenço que esqueceu A que se esquece de mim. Não é dela, não é meu, Não é princípio nem fim. Duas horas vão passadas Sem que te veia passar. Que coisas mal combinadas Que são amor e esperar! Houve um momento entre nós Em que a gente não falou. Juntos, estávamos sós. Que bom é assim estar só! "Das flores que há pelo campo O rosmaninho é rei. . . " É uma velha cantiga... Bem sei, meu Deus, bem o sei. O moinho que mói trigo Mexe-o o vento ou a água, Mas o que tenho comigo Mexe-o apenas a mágoa. Aquela que tinha pobre A única saia que tinha, Por muitas roupas que dobre Nunca será mais rainha. Tens uns brincos, sem valia E um lenço que não é nada, Mas quem dera ter o dia De quem és a madrugada. Loura, teus olhos de céu Têm um azul que é fatal.. Bem sei: Foi Deus que tos deu. Mas então Deus fez o mal? Vai alta sobre a montanha Uma nuvem sem razão. Meu coração acompanha O não teres coração. Dizem que as flores são todas Palavras que a terra diz. Não me falas: incomodas. Falas: sou menos feliz. Duas vezes jurei ser O que julgo que sou, Só para desconhecer Que não sei para onde vou. O pescador do mar alto Vem contente de pescar. Se prometo, sempre falto: Receio não agradar. Todos lá vão para a festa Com um grande azul de céu. Nada resta, nada resta... Resta sim, que resta eu. Andei sozinho na praia Andei na praia a pensar No jeito da tua saia Quando lá estiveste a andar. Onda que vens e que vais Mar que vais e depois vens, Já não sei se tu me atrais, E, se me, atrais, se me tens. Quando há música, parece Que dormes, e assim te calas, Mas se a música falece, Acordo, e não me falas. Trazes uma cruz no peito. Não sei se é por devoção. Antes tivesses o jeito De ter lá um coração. O guardanapo dobrado Quer dizer que se não volta. Tenho o coração atado: Vê se a tua mão mo solta. "À tua porta está lama. Meu amor, quem na faria?" É assim a velha cantiga Que como tu principia. Menina de saia preta E de blusa de outra cor, Que é feito daquela seta Que atirei ao meu amor? Lavas a roupa na selha Com um vagar apressado, E o brinco na tua orelha Acompanha o teu cuidado. Duas vezes te falei De que te iria falar. Quatro vezes te encontrei Sem palavra p'ra te dar. Velha cadeira deixada No canto da casa antiga Quem dera ver lá sentada Qualquer alma minha amiga. Trazes a bilha à cabeça Como se ela não houvesse. Andas sem pressa depressa Como se eu lá não estivesse. Trazes um manto comprido Que não é xaile a valer. Eu trago em ti o sentido E não sei que hei de dizer. Olhas para mim às vezes Como quem sabe quem sou. Depois passam dias, meses, Sem que vás por onde vou. Quando tiraste da cesta Os figos que prometeste Foi em mim dia de festa, Mas foi a todos que os deste. Aquela que mora ali E que ali está à janela Se um dia morar aqui Se calhar não será ela. Mas que grande disparate É o que penso e o que sinto. Meu coração bate, bate E se sonho minto, minto. Puseste por brincadeira A touca da tua irmã. Ó corpo de bailadeira, Toda a noite tem manhã. Dizes-me que nunca sonhas E que dormes sempre a fio. Quais são as coisas risonhas Que sonhas por desfastio? O teu carrinho de linha Rolou pelo chão caído. Apanhei-o e dei-to e tinha Só em ti o meu sentido. A vida é um hospital Onde quase tudo falta. Por isso ninguém te cura E morrer é que é ter alta. Que tenho o coração preto Dizes tu, e inda te alegras. Eu bem sei que o tenho preto: Está preto de nódoas negras. Na praia de Monte Gordo. Meu amor, te conheci. Por ter estado em Monte Gordo É que assim emagreci. Saudades, só portugueses Conseguem senti-las bem. Porque têm essa palavra Para dizer que as têm. "Mau, Maria!" — tu disseste Quando a trança te caía. Qual "Mau, Maria", Maria! "Má Maria"' "Má Maria!" Era já de madrugada E eu acordei sem razão, Senti a vida pesada. Pesado era o coração. Boca de romã perfeita Quando a abres p'ra comer. Que feitiço é que me espreita Quando ris só de me ver? Tenho um segredo comigo Que me faz sempre cismar, É se quero estar contigo Ou quero contigo estar. Trazes já aquele cinto Que compraste no outro dia. Eui trago o que sempre sinto E que é contigo, Maria. Teu olhar não tem remorsos Não é por não ter que os ter. É porque hoje não é ontem E viver é só esquecer. Disseste-me quase rindo: "Conheço-te muito bem!" Dito por quem me não quer. Tem muita graça, não tem? Fica o coração pesado Com o choro que chorei. É um ficar engraçado O ficar com o que dei. . . Este é o riso daquela Em que não se reparou. Quando a gente se acautela Vê que não se acautelou. Tens vontade de comprar O que vês só porque o viste. Só a tenho de chorar Porque só compro o ser triste. Baila em teu pulso delgado Uma pulseira que herdaste... Se amar alguém é pecado. És santa, nunca pecaste. Teus olhos querem dizer Aquilo que se não diz... Tenho muito que fazer. Que sejas muito feliz. Água que passa e canta É água que faz dormir... Sonhar é coisa que encanta, Pensar é já não sentir. Deste-me um adeus antigo À maneira de eu não ser Mais que o amigo do amigo Que havia de poder ter. Linda noite a desta lua. Lindo luar o que está A fazer sombra na rua. Por onde ela não virá. O papagaio do paço Não falava — assobiava. Sabia bem que a verdade Não é coisa de palavra. Puseste a mantilha negra Que hás de tirar ao voltar. A que me puseste na alma Não tiras. Mas deixa-a estar! Trazes os brincos compridos, Aqueles brincos que são Como as saudades que temos A pender do coração. Deixaste cair a liga Porque não estava apertada... Por muito que a gente diga A gente nunca diz nada. Não há verdade na vida Que se não diga a mentir. Há quem apresse a subida Para descer a sorrir. No dia de S. João Há fogueiras e folias. Gozam uns e outros não, Tal qual como os outros dias. Santo Antônio de Lisboa Era um grande pregador, Mas é por ser Santo Antônio Que as moças lhe têm amor.
|
|
|
O Meu Soneto |
em 08/02/2012 15:01:27 (4432 leituras) |
Em atitudes e em ritmos fleumáticos, Erguendo as mãos em gestos recolhidos, Todos brocados fúlgidos, hieráticos, Em ti andam bailando os meus sentidos...
E os meus olhos serenos, enigmáticos Meninos que na estrada andam perdidos, Dolorosos, tristíssimos, extáticos, São letras de poemas nunca lidos...
As magnólias abertas dos meus dedos São mistérios, são filtros, são enredos Que pecados d´amor trazem de rastros...
E a minha boca, a rútila manhã, Na Via Láctea, lírica, pagã, A rir desfolha as pétalas dos astros!..
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas" |
|
|
Amai-vos... |
em 04/02/2012 22:33:35 (5722 leituras) |
Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor um grilhão.
Que haja, antes, um mar ondulante entre as praias de vossa alma.
Enchei a taça um do outro, mas não bebais da mesma taça.
Dai do vosso pão um ao outro, mas não comais do mesmo pedaço.
Cantai e dançai juntos, e sede alegres,
mas deixai cada um de vós estar sozinho.
Assim como as cordas da lira são separadas e, no entanto, vibram na mesma harmonia.
Dai vosso coração, mas não o confieis à guarda um do outro.
Pois somente a mão da Vida pode conter vosso coração.
E vivei juntos, mas não vos aconchegueis demasiadamente.
Pois as colunas do templo erguem-se separadamente.
E o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro.
Gibran Kahlil Gibran -
|
|
|
GRAFITO |
em 31/01/2012 20:09:57 (4101 leituras) |
neste lugar solitário o homem toda a manhã tem o porte estatuário de um pensador de Rodin neste lugar solitário extravasa sem sursis como um confessionário o mais íntimo de si neste lugar solitário arúspice desentranha o aflito vocabulário de suas próprias entranhas neste lugar solitário faz a conta doída: em lançamentos diários a soma de sua vida
|
|
|
L´AFFAIRE SARDINHA |
em 31/01/2012 19:49:58 (2877 leituras) |
O bispo ensinou ao bugre Que pão não é pão, mas Deus Presente na eucaristia.
E como um dia faltasse Pão ao bugre, ele comeu O bispo, eucaristicamente. |
|
|
Pobre velha música! |
em 28/01/2012 23:44:57 (3021 leituras) |
Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.
|
|
|
V |
em 26/01/2012 12:36:47 (3133 leituras) |
Não te quero senão porque te quero, e de querer-te a não te querer chego, e de esperar-te quando não te espero, passa o meu coração do frio ao fogo. Quero-te só porque a ti te quero, Odeio-te sem fim e odiando te rogo, e a medida do meu amor viajante, é não te ver e amar-te, como um cego.
Tal vez consumirá a luz de Janeiro, seu raio cruel meu coração inteiro, roubando-me a chave do sossego, nesta história só eu me morro, e morrerei de amor porque te quero, porque te quero amor, a sangue e fogo. |
|
|
Poetas Velhos |
em 19/01/2012 20:06:04 (2812 leituras) |
Bom dia, poetas velhos. Me deixem na boca o gosto dos versos mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba tão bem que vos cite como quem tê-los um tanto feito também, acredite. |
|
|
Primeira Conversa - Excerto - "A Erva do Diabo" |
em 17/01/2012 13:39:20 (2295 leituras) |
Primeira conversa: Sexta-feira, 23 de junho de 1961
- Quer-me ensinar alguma coisa a respeito do peiote, Dom Juan? – Por que quer saber disso? – Eu queria mesmo saber a respeito. Só querer saber não basta como motivo? – Não! Tem de procurar em seu íntimo para saber por que um rapaz como você quer empreender essa tarefa de aprendizagem. – Por que você mesmo aprendeu sobre isso, Dom Juan? – Por que quer saber? – Talvez nós dois tenhamos os mesmos motivos. – Duvido. Sou índio. Não temos os mesmos caminhos. – O único motivo que tenho é que desejo saber a respeito, só para aprender. Mas asseguro-lhe, Dom Juan, não tenho más intenções. – Acredito em você. Já o fumeguei. – Perdão? – Não importa agora. Sei quais são suas intenções. – Quer dizer que leu meus pensamentos? – Pode ser. – Então quer-me ensinar? – Não! – Por eu não ser índio? – Não. Porque você não conhece seu íntimo. O importante é você saber exatamente por que quer envolver-se. Aprender a respeito de Mescalito é uma coisa muito séria. Se você fosse índio, só o seu desejo seria suficiente. Muito poucos índios têm esse desejo. |
|
|
Poema em linha reta |
em 08/01/2012 12:29:10 (3275 leituras) |
Poema em Linha Reta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo. Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos |
|
|
Ainda ontem pensava que não era |
em 18/12/2011 20:57:11 (3629 leituras) |
Ainda ontem pensava que não era mais do que um fragmento trémulo sem ritmo na esfera da vida. Hoje sei que sou eu a esfera, e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim. Eles dizem-me no seu despertar: " Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia sobre a margem infinita de um mar infinito." E no meu sonho eu respondo-lhes: "Eu sou o mar infinito, e todos os mundos não passam de grãos de areia sobre a minha margem." Só uma vez fiquei mudo. Foi quando um homem me perguntou: "Quem és tu?"
Kahlil Gibran
|
|
|
Nothing |
em 18/12/2011 20:41:15 (2842 leituras) |
Nada nada nada Nada mais do que nada Porque vocês querem que exista apenas o nada Pois existe o só nada Um pára-brisa partido uma perna quebrada O nada Fisionomias massacradas Tipóias em meus amigos Portas arrombadas Abertas para o nada Um choro de criança Uma lágrima de mulher à-toa Que quer dizer nada Um quarto meio escuro Com um abajur quebrado Meninas que dançavam Que conversavam Nada Um copo de conhaque Um teatro Um precipício Talvez o precipício queira dizer nada Uma carteirinha de travel’s check Uma partida for two nada Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava Um cão rosnava na minha estrada Um papagaio falava coisas tão engraçadas Pastorinhas entraram em meu caminho Num samba morenamente cadenciado Abri o meu abraço aos amigos de sempre Poetas compareceram Alguns escritores Gente de teatro Birutas no aeroporto E nada.
|
|
|
A Erva do Diabo - (excertos) |
em 10/12/2011 12:00:00 (5685 leituras) |
– "Quando um homem começa a aprender, ele nunca sabe muito claramente quais são seus objetivos. Seu propósito é falho; sua intenção, vaga. Espera recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das dificuldades da aprendizagem."
"Devagar, ele começa a aprender... a princípio, pouco a pouco, e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente, sem ceder. Seu propósito toma-se um campo de batalha."
"E assim ele se depara com o primeiro de seus inimigos naturais: o medo! Um inimigo terrível, traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho, rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu inimigo terá posto um fim à sua busca."
(...)
– "E o que pode ele fazer para vencer o medo?"
– "A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o seguinte. Deve ter medo, plenamente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se sentir seguro de si. Seu propósito toma-se mais forte. Aprender não é mais uma tarefa aterradora. Quando chega esse momento feliz, o homem pode dizer sem hesitar que derrotou seu primeiro inimigo natural."
(...)
– "Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida, porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza... uma clareza de espírito que apaga o medo. Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O homem sente que nada se lhe oculta."
"E assim ele encontra seu segundo inimigo: a clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas também cega."
"Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque é claro; e não para diante de nada, porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-conta, terá sucumbido a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz de aprender qualquer coisa mais."
(...)
– "Mas o que tem de fazer para não ser vencido?"
– "Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder."
"Ele saberá a essa altura que o poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim. Pode fazer o que quiser com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é ordem. Vê tudo o que está em volta. Mas também encontra seu terceiro inimigo: o poder!"
"O poder é o mais forte de todos os inimigos. E, naturalmente, a coisa mais fácil é ceder; afinal de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor."
"Um homem nesse estágio quase nem nota que seu terceiro inimigo se aproxima. E de repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá transformado num homem cruel e caprichoso."
(...)
– "E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?"
– "Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender que o poder que parece ter adquirido na verdade nunca é seu. Deve controlar-se em todas as ocasiões, tratando com cuidado e lealdade tudo o que aprendeu. Se conseguir ver que a clareza e o poder, sem controle, são piores do que os erros, ele chegará a um ponto em que tudo está controlado. Então, saberá quando e como usar seu poder. E assim terá derrotado seu terceiro inimigo."
"O homem estará, então, no fim de sua jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá derrotar completamente, mas apenas afastar."
"É o momento em que o homem não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito... um momento em que todo o seu poder está controlado, mas também o momento em que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido a última batalha, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de se retirar dominará toda a sua clareza, seu poder e sabedoria."
"Mas se o homem sacode sua fadiga e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é o suficiente."
|
|
|
Uma Oração |
em 01/12/2011 14:34:17 (2904 leituras) |
Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.
Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.
|
|
|
Vida e Obra |
em 27/11/2011 13:57:17 (2374 leituras) |
Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Em 1914 sua família se mudou para Suíça, onde ele estudou e viajou para a Espanha. Em seu retorno à Argentina em 1921, Borges começou a publicar seus poemas e ensaios em revistas literárias surrealistas. Também trabalhou como bibliotecário e professor universitário público. Em 1955 foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina e professor de literatura na Universidade de Buenos Aires. Em 1961, destacou-se no cenário internacional quando recebeu o primeiro prêmio internacional de editores, o Prêmio Formentor. Seu trabalho foi traduzido e publicado extensamente no Estados Unidos e Europa. Borges era fluente em várias línguas. Sua obra abrange o "caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura".[1] Seus livros mais famosos, Ficciones (1944) e O Aleph (1949), são coletâneas de histórias curtas interligadas por temas comuns: sonhos, labirintos, bibliotecas, escritores fictícios e livros fictícios, religião, Deus. Seus trabalhos têm contribuído significativamente para o gênero da literatura fantástica.[2] Estudiosos notaram que a progressiva cegueira de Borges ajudou-o a criar novos símbolos literários através da imaginação, já que "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro".[3][4] Os poemas de seu último período dialogam com vultos culturais como Spinoza, Luís de Camões e Virgílio. Sua fama internacional foi consolidada na década de 1960, ajudado pelo "boom latino-americano" e o sucesso de Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez.[2] Para homenagear Borges, em O Nome da Rosa [5] um romance de Umberto Eco, há o personagem Jorge de Burgos, que além da semelhança no nome é cego assim como Borges, foi ficando ao longo da vida. Além da personagem, a biblioteca que serve como plano de fundo do livro é inspirada no conto de Borges A Biblioteca de Babel (Uma biblioteca universal e infinita que abrange todos os livros do mundo). O escritor e ensaísta John Maxwell Coetzee disse sobre ele: "Ele, mais do que ninguém, renovou a linguagem de ficção e, assim, abriu o caminho para uma geração notável de romancistas hispano-americanos".[6]
Vida
Jorge Luis Borges nasceu em uma família de classe média com boa educação. A mãe de Borges, Leonor Acevedo Suárez, veio de uma tradicional família uruguaia. Seu livro de 1929 Cuaderno San Martín incluiu um poema, "Isidoro Acevedo", em homenagem a seu avô materno, Isidoro de Acevedo Laprida, um soldado do exército de Buenos Aires que era contra o ditador Juan Manuel de Rosas. Um descendente do advogado e político argentino Francisco Narciso de Laprida, Acevedo lutou nas batalhas de Cepeda em 1859, Pavón em 1861 e Los Corrales em 1880. Isidoro de Acevedo Laprida morreu de congestão pulmonar na casa onde seu neto Jorge Luis Borges nasceu. Segundo um estudo de Antonio Andrade, Jorge Luis Borges tem ascendência portuguesa: o bisavô de Borges, Francisco, teria nascido em Portugal em 1770 e vivido na localidade de Torre de Moncorvo, situada no Norte de Portugal, antes de emigrar para a Argentina, onde teria casado com Cármen Lafinur. Aos sete anos de idade, Borges já teria revelado ao pai que seria escritor. Aos nove, escreve seu primeiro conto, "La visera fatal", inspirado em um episódio de Dom Quixote. Em 1914, muda-se, com os pais, para a Europa, morando inicialmente em Genebra, na Suíça, onde conclui seus estudos, e depois na Espanha. Em 1921, retorna a Buenos Aires, onde participa ativamente da efervescente vida cultural da cidade. Em 1923, publica seu primeiro livro de poemas, "Fervor de Buenos Aires". Iniciava-se, assim, uma das mais brilhantes carreiras literárias do século XX. Borges morreu em Genebra por um câncer de fígado e um enfisema, onde está sepultado, por opção pessoal. Borges foi um ávido leitor de enciclopédias. Em uma memorável palestra sobre O Livro em 1978, Borges comenta a felicidade em ganhar a enciclopédia alemã Enzyklopadie Brockhaus, edição de 1966. Lamenta não poder ver as letras góticas nem os mapas e ilustrações, entretanto sente uma relação amistosa com os livros. Sua preferida era a IX edição da Britânica, como disse em uma das inúmeras entrevistas que deu.
Obra
Sua obra se destaca por abordar temáticas como filosofia (e seus desdobramentos matemáticos), metafísica, mitologia e teologia, em narrativas fantásticas onde figuram os "delírios do racional" (Bioy Casares), expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos. Ao mesmo tempo, Borges também abordou a cultura dos Pampas argentinos, em contos como O morto, "Homem da esquina rosada" e "O sul". Lida com campanhas militares históricas, como a guerra argentina contra os índios durante a presidência, entre outros, do escritor Domingo Faustino Sarmiento; trata-as, porém, como pano de fundo para criações fictícias, como em História do Guerreiro e da Cativa. E rende homenagem à literatura pregressa de seu país em contos em que se apropria do mitológico Martín Fierro: Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874) e "O fim". Entre seus contos mais conhecidos e comentados podemos citar A Biblioteca de Babel, O Jardim de Veredas que se Bifurcam, "Pierre Menard, autor do Quixote" (para muitos a pedra angular de sua literatura) e Funes, o Memorioso, todos do livro Ficções (1944) - além de "O Zahir", "A escrita do Deus" e O Aleph (que dá seu nome ao livro de que consta, publicado em 1949). A partir da década de 50, afetado pela progressiva cegueira, Borges passou a se dedicar a poesia, produzindo obras notáveis como "A cifra" (1981), "Atlas" (um esboço de geografia fantástica, 1984) e "Os conjurados" (1985), sua última obra. Também produziu prosa ("Outras inquisições", ensaios, 1952; "O livro de areia", contos, 1975), notando-se o claro influxo da cegueira.
O conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" trata justamente de uma enciclopédia forjada por uma sociedade secreta ao longo de gerações, que visa inventar (como lembra o próprio Borges, "inventar" e "descobrir" são sinônimos em latim) todo um planeta imaginário, com seus idiomas, sua física, sua política, suas ciências, suas culturas. No fim do conto, sendo "acidentalmente" descoberta essa enciclopédia, Tlön (o planeta imaginário) passa a dominar, paulatinamente, todos os interesses terrenos…
Poesia
Elemento de lista com marcas Fervor de Buenos Aires (1923) Luna de enfrente (1925) Cuaderno San Martín (1929) Poemas (1923-1943) El hacedor (1960) Para las seis cuerdas (1967) El otro, el mismo (1969) Elogio de la sombra (1969) El oro de los tigres (1972) La rosa profunda (1975) Obra poética (1923-1976) La moneda de hierro (1976) Historia de la noche (1976) La cifra (1981) Los conjurados (1985)
Contos
El jardín de senderos que se bifurcan (1941) Ficciones (1944) El Aleph (1949) La muerte y la brújula (1951) El informe Brodie (1970) El libro de arena (1975)
Ensaios
Inquisiciones (1925) El tamaño de mi esperanza (1926) El idioma de los argentinos (1928) Evaristo Carriego (1930) Discusión (1932) Historia de la eternidad (1936) Aspectos de la poesía gauchesca (1950) Otras inquisiciones (1952) El congreso (1971) Libro de sueños (1976)
Não-classificados
Historia universal de la infamia (1935) El libro de los seres imaginarios (1968) Atlas (1985)
Em colaboração com Adolfo Bioy Casares
Seis problemas para don Isidro Parodi (1942) Un modelo para la muerte (1946) Dos fantasías memorables (1946) Los orilleros (1955). Roteiro cinematográfico El paraíso de los creyentes (1955). Roteiro cinematográfico Nuevos cuentos de Bustos Domecq (1977)
*Fonte: Wikipédia. |
|
|
Vida e Obra |
em 19/11/2011 20:16:22 (2898 leituras) |
Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo de Pagu, (São João da Boa Vista, 9 de junho de 1910 — Santos, 12 de dezembro de 1962, foi uma escritora e jornalista brasileira. Teve grande destaque no movimento modernista iniciado em 1922, embora não tivesse participado da Semana de Arte Moderna porque, na época, contava apenas com onze anos de idade. Militante comunista, foi a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas.
Bem antes de virar Pagu, apelido que lhe foi dado pelo poeta Raul Bopp, Zazá, como era conhecida em família, já era uma mulher avançada para os padrões da época, pois cometia algumas “extravagâncias” como fumar na rua, usar blusas transparentes, manter os cabelos bem cortados e eriçados e dizer palavrões. Ela não queria saber o que pensavam dela, tinha muitos namorados e causava polêmica na sociedade. Esse comportamento não era nada compatível com sua origem familiar, porque provinha de uma tradicional família e muito conservadora. Em 1925, com quinze anos, passa a colaborar no Brás Jornal, assinando Patsy (Infoescola). Embora tenha se tornado musa dos modernistas, Pagu não participou da Semana de Arte Moderna. Tinha apenas 12 anos em 1922, quando a Semana se realizou. Entretanto, com 18 anos, mal completara o Curso na Escola Normal da Capital (São Paulo, 1928) se integra ao movimento antropofágico, de cunho modernista, sob a influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. O apelido Pagu surgiu de um erro do poeta modernista Raul Bopp, autor de Cobra Norato. Bopp inventou este apelido, ao dedicar-lhe um poema, porque imaginou que seu nome fosse Patrícia Goulart e por isso fez uma brincadeira com as primeiras sílabas do nome.
Em 1930, um escândalo para a sociedade conservadora de então: Oswald separa-se de Tarsila e casa-se com Pagu. Especula-se que eles eram amantes desde a época que Oswald era casado. No mesmo ano, nasce Rudá de Andrade, segundo filho de Oswald e primeiro de Pagu. Os dois se tornam militantes do Partido Comunista. Ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos, Pagu é presa pela polícia política de Vargas. Era a primeira de uma série de 23 prisões, ao longo da vida. Logo depois de ser solta, em (1933), partiu para uma viagem pelo mundo, deixando no Brasil o marido e o filho. No mesmo ano, publica o romance Parque Industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo. Em 1935 é presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, e é repatriada para o Brasil. Separa-se definitivamente de Oswald, por conta de muitas brigas e ciúmes. Ela retoma sua atividade jornalística, mas é novamente presa e torturada pelas forças da Ditadura, ficando na cadeia por cinco anos. Nesses cinco anos, seu filho é criado por Oswald. Ao sair da prisão, em 1940, rompe com o Partido Comunista, passando a defender um socialismo de linha trotskista. Integra a redação de A Vanguarda Socialista junto com seu marido Geraldo Ferraz, o crítico de arte Mário Pedrosa, Hilcar Leite e Edmundo Moniz. Casa-se novamente com Geraldo Ferraz, e dessa união nasce seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, em 18 de junho de 1941. Passa a morar com os dois filhos e o marido. Oswald visita Rudá e eles passam a se relacionar como amigos. Nessa mesma época viaja à China e obtém as primeiras sementes de soja que foram introduzidas no Brasil. Em 1952 frequenta a Escola de Arte Dramática de São Paulo, levando seus espetáculos a Santos. Ligada ao teatro de vanguarda apresenta a sua tradução de A Cantora Careca de Ionesco. Traduziu e dirigiu Fando e Liz de Arrabal, numa montagem amadora onde estreava um jovem artista Plínio Marcos. É conhecida como grande animadora cultural em Santos, onde passa a residir com marido e os dois filhos. Dedica-se em especial ao teatro, particularmente no incentivo a grupos amadores. Em 1945 lança novo romance, A Famosa Revista, escrito em parceria com o maridoGeraldo Ferraz. Tenta, sem sucesso, uma vaga de deputada estadual nas eleições de 1950. Ainda trabalhava como crítica de arte, quando foi acometida de um câncer. Viaja a Paris para se submeter a uma cirurgia, sem resultados positivos. Decepcionada e desesperada por estar doente, Patrícia tenta suicídio, o que não se concretizou. Sobre o episódio, ela escreveu no panfleto "Verdade e Liberdade": "Uma bala ficou para trás, entre gazes e lembranças estraçalhadas". Volta ao Brasil e morre em 12 de dezembro de 1962, em decorrência da doença, para total tristeza de marido e filhos. Em 2004 a catadora de papel Selma Morgana Sarti, em Santos, encontrou no lixo uma grande quantidade de fotos e documentos da escritora e do jornalista Geraldo Ferraz, seu último companheiro. Estes fazem parte hoje do arquivo da UNICAMP. Em 2005, a cidade de São Paulo comemorou os 95 anos de nascimento de Pagu com uma vasta programação, que incluiu lançamento de livros, exposição de fotos, desenhos e textos da homenageada, apresentação de um espetáculo teatral sobre sua vida e inauguração de uma página na Internet. No dia exato de seu nascimento, convidados compareceram com trajes de época a uma festa Pagu, realizada no Museu da Imagem e do Som. Outra faceta de Pagu é como desenhista e ilustradora. Participou da Revista de Antropofagia, publicada entre 1928 e 1929, entre outras. Recentemente foi publicado o livro Caderno de Croquis de Pagu, com uma coletânea de trabalhos da artista, bem como foi realizada uma exposição de alguns de seus desenhos na Galeria Hermitage.
Pagu publicou os romances Parque Industrial (edição da autora, 1933), sob o pseudônimo Mara Lobo, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, e A Famosa Revista (Americ-Edit, 1945), em colaboração com Geraldo Ferraz. Parque Industrial foi publicado nos Estados Unidos em tradução de Kenneth David Jackson em 1994 pela Editora da University of Nebraska Press. Escreveu também contos policiais, sob o pseudônimo King Shelter, publicados originalmente na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, e depois reunidos em Safra Macabra (Livraria José Olympio Editora, 1998). Em seu trabalho junto a grupos teatrais, revelou e traduziu grandes autores até então inéditos no Brasil como James Joyce, Eugène Ionesco, Arrabal e Octavio Paz.
Sua literatura já foi tema de dissertações de mestrado. No livro A "moscouzinha" brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930 - 1954). São Paulo, Humanitas, 2007 é retratado um conflito em Santos em 1931 que contou com a participação de Patrícia Galvão e resultou na morte de um ensacador. Em 1988, a vida de Pagu foi contada no filme Eternamente Pagu (1987), no primeiro longa metragem dirigido por Norma Benguell, com Carla Camurati no papel-título, Antônio Fagundes como Oswald de Andrade e Esther Góes no papel de Tarsila do Amaral. Foi tema de dois documentários, um produzido por seu filho Rudá e outro pelo cineasta Ivo Branco, com o título Eh, Pagu!, Eh!. Aparece como personagem do filme O Homem do Pau Brasil. Foi retratada como personagem na minissérie Um Só Coração (2004), interpretada por Miriam Freeland. Há uma canção homônima, Pagu, composição de Rita Lee e Zélia Duncan. Já interpretada por Maria Rita (álbuns Maria Rita e Segundo: Ao Vivo ). A história de Pagu também chegou aos palcos do teatro. No ano do centenário de seu nascimento entrou em cartaz o espetáculo Dos Escombros de Pagu, baseado no livro homônimo assinado por Tereza Freire.
Bibliografia
ANDRADE, O. GALVAO, P.. Pagu, Oswald, Segall. Globo, 2009. CAMPOS, A. Pagu Vida-obra - Augusto De Campos. SP: Brasiliense. FREIRE, Tereza. Dos Escombros De Pagu. SENAC SP, 2008* GALVAO, Patricia. PAIXAO Pagu. a Autobiografia Precoce de Patricia Galvão. AGIR, 2005, 164 págs. GALVAO, Patricia. Parque Industrial – Edição particular – 1933 GALVAO, Patricia. A Famosa Revista – Americ-Edit – 1945 GALVAO, Patricia. Verdade e Liberdade – Edição da autora – 1950 GALVAO, Patricia. Safra Macabra – José Olympio Editora – 1998 GALVAO, Patricia. Croquis de Pagu (org. Lúcia Maria Teixeira Furlani e Geraldo Galvão Ferraz) – Editora Unisanta e Imprensa OFicial do Estado de São Paulo – 2004 GUEDES, Thelma. Pagu - Literatura e Revoluçao. ATELIE EDITORIAL, 2003 NEVES, Juliana. Geraldo Ferraz e Patricia Galvão. ANNABLUME, 2005, 214 págs. TAVARES, Rodrigo Rodrigues. A "Moscouzinha" brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos. São Paulo: HUMANITAS, 2007 ZATZ, Lia. Pagu - A Luta De Cada Um CALLIS, 2005.
Dez passos de Pagu
■ 1910 — Patrícia Rehder Galvão nasce em São João da Boa Vista. ■ 1912 — Sua família muda-se para a Rua da Liberdade, em São Paulo. ■ 1924 — Torna-se aluna da Escola Normal do Brás (no destaque). ■ 1930 — Pagu e Oswald fazem um pacto de casamento no Cemitério da Consolação. Três meses depois, simulam a foto da cerimônia diante da Igreja da Penha. No mesmo ano, nasce Rudá. ■ 1931 — Sofre a primeira de suas 23 prisões políticas. ■ 1933 — Publica o romance Parque Industrial. ■ 1939 — Escreve na prisão o romance Microcosmo. Trata-se de um livro cuja primeira parte Pagu enterrou em um terreno baldio em São Paulo para proteger da polícia. Ao tentar desenterrá-lo, três anos depois, a decepção. No local, havia um edifício. ■ 1940 — Casa-se com o jornalista Geraldo Ferraz. Seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz, nasce no ano seguinte. ■ 1952 — Estuda teatro na Escola de Arte Dramática (EAD). ■ 1954 — Muda-se para Santos e morre ali oito anos depois.
*Fontes: wikipédia e revista Veja. |
|
|
Natureza morta |
em 19/11/2011 20:05:59 (7514 leituras) |
Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas. Estou dependurada na parede feita um quadro. Ninguém me segurou pelos cabelos. Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova Espetaram, hein? a ave na parede Mas conservaram os meus olhos É verdade que eles estão parados Como os meus dedos, na mesma frase. Espicharam-se em coágulos azuis. Que monótono o mar! Os meus pés não dão mais um passo. O meu sangue chorando As crianças gritando, Os homens morrendo O tempo andando As luzes fulgindo, As casas subindo, O dinheiro circulando, O dinheiro caindo. Os namorados passando, passeando, O lixo aumentando, Que monótono o mar!
Procurei acender de novo o cigarro. Por que o poeta não morre? Por que o coração engorda? Por que as crianças crescem? Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas? Por que existem telhados e avenidas? Por que se escrevem cartas e existe o jornal? Que monótono o mar! Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo. Se eu ainda tivesse unhas Enterraria os meus dedos nesse espaço branco Vertem os meus olhos uma fumaça salgada Este mar, este mar não escorre por minhas faces. Estou com tanto frio, e não tenho ninguém ... Nem a presença dos corvos
‘Pagu’, Patrícia Rehder Galvão
|
|
|
Se eu morrer novo |
em 17/11/2011 16:54:56 (4067 leituras) |
Se eu morrer novo, Sem poder publicar livro nenhum, Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa, Peço que, se se quiserem ralar por minha causa, Que não se ralem. Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, Eles lá terão a sua beleza, se forem belos. Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir, Porque as raízes podem estar debaixo da terra Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. Fui gentio como o sol e a água, De uma religião universal que só os homens não têm. Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma, Nem procurei achar nada, Nem achei que houvesse mais explicação Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva — Ao sol quando havia sol E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa), Sentir calor e frio e vento, E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam, Mas não fui amado. Não fui amado pela única grande razão — Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e à chuva, E sentando-me outra vez à porta de casa. Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados Como para os que o não são. Sentir é estar distraído.
*Fernando Pessoa enquanto Alberto Caieiro em 7-11-1915 |
|
|
O ovo de galinha |
em 14/11/2011 00:17:08 (2768 leituras) |
I
Ao olho mostra a integridade de uma coisa num bloco, um ovo. Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo: é só miolo: o dentro e o fora integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra unânime em si mesmo, um ovo, a mão que o sopesa descobre que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedras, inanimado, frio, goro; que o seu é um peso morno, túmido, um peso que é vivo e não morto.
II
O ovo revela o acabamento a toda mão que o acaricia, daquelas coisas torneadas num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras que entretanto mão não fabrica: nos corais, nos seixos rolados e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra de mil inacabáveis lixas usadas por mãos escultoras escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar de pura forma concluída, não se situa no final: está no ponto de partida.
III
A presença de qualquer ovo, até se a mão não lhe faz nada, possui o dom de provocar certa reserva em qualquer sala.
O que é difícil de entender se se pensa na forma clara que tem um ovo, e na franqueza de sua parede caiada.
A reserva que um ovo inspira é de espécie bastante rara: é a que se sente ante um revólver e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas que conservando outras guardadas ameaçam mais com disparar do que com a coisa que disparam.
IV
Na manipulação de um ovo um ritual sempre se observa: há um jeito recolhido e meio religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito de quem qualquer ovo carrega vem da atenção normal de quem conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado em sua arquitetura hermética e quem o carrega, sabendo-o, prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira entre medrosa e circunspeta, quase beata, de quem tem nas mãos a chama de uma vela.
A poesia acima foi extraída do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 302. |
|
|
Humildade |
em 03/11/2011 02:26:26 (4354 leituras) |
Que a voz do poeta nunca se levante para ter ressonâncias nas alturas. Que o canto, das contidas amarguras, somente seja a gota transbordante. Que ele, através das solidões escuras do ser, deslize no preciso instante. Saia da avena do pastor errante, sem aplausos buscar de outras criaturas.
Que o canto simples, natural, rebente, água da fonte límpida, do fundo da alma, de amor e de humildade cheio.
Que o canto glorificará somente a origem, quando mais ninguém no mundo saiba ele de quem foi ou de onde veio. |
|
|
Emergência |
em 01/11/2011 22:37:17 (3639 leituras) |
Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo - para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado. |
|
|
Consoada |
em 20/10/2011 08:23:18 (2738 leituras) |
Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. |
|
|
O Bicho |
em 20/10/2011 08:20:13 (29485 leituras) |
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem. |
|
|
O Anel de Vidro |
em 20/10/2011 08:15:49 (6200 leituras) |
Aquele pequenino anel que tu me deste, - Ai de mim - era vidro e logo se quebrou Assim também o eterno amor que prometeste, - Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste, Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, - Aquele pequenino anel que tu me deste, - Ai de mim - era vidro e logo se quebrou
Não me turbou, porém, o despeito que investe Gritando maldições contra aquilo que amou. De ti conservo no peito a saudade celeste Como também guardei o pó que me ficou Daquele pequenino anel que tu me deste |
|
|
Poema do milho |
em 13/10/2011 15:24:33 (9161 leituras) |
Milho... Punhado plantado nos quintais. Talhões fechados pelas roças. Entremeado nas lavouras, Baliza marcante nas divisas. Milho verde. Milho seco. Bem granado, cor de ouro. Alvo. Às vezes vareia, - espiga roxa, vermelha, salpintada.
Milho virado, maduro, onde o feijão enrama Milho quebrado, debulhado na festa das colheitas anuais.
Bandeira de milho levada para os montes largada pelas roças: Bandeiras esquecidas na fartura. Respiga descuidada dos pássaros e dos bichos.
Milho empaiolado. abastança tranqüila do rato, do caruncho. do cupim. Palha de milho para o colchão. Jogada pelos pastos. Mascada pelo gado. Trançada em fundos de cadeiras.
Queimada nas coivaras. Leve mortalha de cigarros. Balaio de milho trocado com o vizinho no tempo da planta. "- Não se planta, nos sítios, semente da mesma terra".
Ventos rondando, redemoinhando. Ventos de outubro.
Tempo mudado. Revôo de saúva. Trovão surdo, tropeiro. Na vazante do brejo, no lameiro, o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro. Acauã de madrugada marcando o tempo, chamando chuva. Roça nova encoivarada, começo de brotação. Roça velha destocada. Palhada batida, riscada de arado. Barrufo de chuva. Cheiro de terra; cheiro de mato, Terra molhada, Terra saroia. Noite chuvada, relampeada. Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais. Observatório: lua virada. Lua pendida... Circo amarelo, distanciado, marcando chuva. Calendário, Astronomia do lavrador.
planta de milho na lua-nova. Sistema velho colonial. Planta de enxada. Seis grãos na cova, quatro na regra, dois de quebra. Terra arrastada com o pé, pisada, incalcada, mode os bichos.
Lanceado certo-cabo-da-enxada... Vai, vem... sobe, desce... terra molhada, terra saroia... Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra Sobe. Desce... Camisa de riscado, calça de mescla Vai, vem... golpeando a terra, o plantador.
Na sombra da moita, na volta do toco - o ancorote d'água:
Cavador de milho, que está fazendo? A que milênios vem você plantando. Capanga de grãos dourados a tiracolo. Crente da Terra, Sacerdote da terra. Pai da terra. Filho da terra. Ascendente da terra. Descendente da terra. Ele; mesmo; terra.
Planta com fé religiosa. Planta sozinho, silencioso. Cava e planta. Gestos pretéritos, imemoriais... Oferta remota; patriarcal. Liturgia milenária. Ritual de paz. Em qualquer parte da Terra um homem estará sempre plantando, recriando a Vida. Recomeçando o Mundo.
Milho plantado; dormindo no chão, aconchegados seis grãos na cova. Quatro na regra, dois de quebra. Vida inerte que a terra vai multiplicar
Evém a perseguìção: o bichinho anônimo que espia, pressente. A formiga-cortadeira - quenquém. A ratinha do chão, exploradeira. A rosca vigilante na rodilha, O passo-preto vagabundo, galhofeiro, vaiando, sorrindo... aos gritos arrancando, mal aponta. O cupim clandestino roendo, minando, só de ruindade.
E o milho realiza o milagre genético de nascer: Germina. Vence os inimigos, Aponta aos milhares. - Seis grãos na cova. - Quatro na regra, dois de quebra, Um canudinho enrolado. Amarelo-pálido, frágil, dourado, se levanta. Cria sustância. Passa a verde. Liberta-se. Enraíza, Abre folhas espaldeiradas. Encorpa. Encana. Disciplina, com os poderes de Deus.
Jesus e São João desceram de noite na roça, botaram a bênção no milho, E veio com eles uma chuva maneira, criadeira, fininha, uma chuva velhinha, de cabelos brancos, abençoando a infância do milho.
O mato vem vindo junto, Sementeira.
As pragas todas, conluiadas. Carrapicho. Amargoso. Picão. Marianinha. Caruru-de-espinho. Pé-de-galinha. Colchão. Alcança, não alcança. Competição. Pac... Pac... Pac... a enxada canta. Bota o mato abaixo. arrasta uma terrinha para o pé da planta. "...- Carpa bem feita vale por duas..." Quando pode. Quando não... sarobeia. Chega terra O milho avoa.
Cresce na vista dos olhos. Aumenta de dia. Pula de noite. Verde Entonado, disciplinado, sadio.
Agora... A lagarta da folha, lagarta rendeira... Quem é que vê? Faz a renda da folha no quieto da noite. Dorme de dia no olho da planta, Gorda; Barriguda. Cheia. Expurgo: nada... força da lua.., Chovendo acaba - a Deus querê.
"O mio tá bonito..." "-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas." "-O mio tá marcando..." Condieionando o futuro: "- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto... Um refrigério" "- O mio lá tá verde qui chega a s'tar azur..." - Conversam vizinhos e compadres.
Milho crescendo, garfando, esporando nas defesas...
Milho embandeirado. Embalado pelo vento.
"Do chão ao pendão, 60 dias vão".
Passou aguaceiro, pé-de-vento. "- O milho acamou..." "- Perdido?"... Nada... Ele arriba com os poderes de Deus..." E arribou mesmo; garboso, empertigado, vertical
No cenário vegetal um engraçado boneco de frangalhos sobreleva, vigilante. Alegria verde dos periquitos gritadores... Bandos em seqüência... Evolução... Pouso... retrocesso.
Manobras em conjunto. Desfeita formação. Roedores grazinando, se fartando, foliando, vaiando os ingênuos espantalhos.
"Jesus e São João andaram de noite passeando na lavoura e botaram a bênção no milho". Fala assim gente de roça e fala certo. Pois não está lá na taipa do rancho o quadro deles, passeando dentro dos trigais? Analogias... Coerências.
Milho embandeirado bonecando em gestação. - Senhor!... Como a roça cheira bem! Flor de milho, travessa e festiva. Flor feminina, esvoaçante, faceira. Flor masculina - lúbrica, desgraciosa.
Bonecas de milho túrgidas, negaceando, se mostrando vaidosas. Túnicas, sobretúnicas... saias, sobre-saias... Anáguas... camisas verdes. Cabelos verdes... - Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas... - O milharal é desfile de beleza vegetal.
Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas. Cabelos prateados, verde-gaio. Cabelos roxos, lisos, encrespados. Destrançados. Cabelos compridos, curtos, queimados, despenteados. Xampu de chuvas... Flagrâncias novas no milharal. - Senhor, como a roça cheira bem!...
As bandeiras altaneiras vão se abrindo em formação. Pendões ao vento. Extravasão da libido vegetal. procissão fálica, pagã. Um sentido genésico domina o milharal. Flor masculina erótica, libidinosa, polinizando, fecundando a florada adolescente das bonecas:
Boneca de milho, vestida de palha... Sete cenários defendem o grão Gordas, esguias, delgadas; alongadas Cheias, fecundadas. Cabelos soltos excitantes. Vestidas de palha. Sete cenários defendem o grão, Bonecas verdes, vestidas de noiva Afrodisíacas, nupciais...
De permeio algumas virgens loucas... Descuidadas. Desprovidas. Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas.
Cabelos verdes. Cabelos brancos. Vermelho-amarelo-roxo, requeimado... E o pólen dos pendões fertilizando... Uma fragrância quente, sexual invade num espasmo o milharal. A boneca fecundada vira espiga. Amortece a grande exaltação. Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas A espiga cheia salta da haste. O pendão fálico vira ressecado, esmorecido, No sagrado rito da fecundação.
Tons maduros de amarelo. Tudo se volta para a terra-mãe. O tronco seco é um suporte, agora, onde o feijão verde trança, enrama, enflora.
Montes de milho novo, esquecidos, marcando claros no verde que domina a roça. Bandeiras perdidas na fartura das colheitas. Bandeiras largadas, restolhadas. E os bandos de passo-pretos galhofeiros gritam e cantam na respiga das palhadas.
"Não andeis a respigar" - diz o preceito bíblico O grão que cai é o direito da terra. A espiga perdida - pertence às aves que têm seus ninhos e filhotes a cuidar. Basta para ti, lavrador, o monte alto e a tulha cheia. Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem - O pobrezinho que passa. - Os bichos da terra e os pássaros do céu.
|
|
|
Os Sapos |
em 11/10/2011 20:10:00 (7116 leituras) |
Os Sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - "Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado.
Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos.
O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma.
Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei!"- "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é
Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio... |
|
|
Se houvesse degraus na terra... |
em 11/10/2011 13:42:37 (6698 leituras) |
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. No céu podia tecer uma nuvem toda negra. E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, e a fímbria do mar, e o meio do mar, e vermelhas se volveram as asas da águia que desceu para beber, e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo. Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata. Correram os rapazes à procura da espada, e as raparigas correram à procura da mantilha, e correram, correram as crianças à procura da maçã.
“A Faca Não Corta o Fogo”, Súmula & Inédita (2008)
|
|
|
Da Imparcialidade |
em 10/10/2011 17:00:00 (3709 leituras) |
O homem - eternamente escravo de suas paixões pessoais - Ë absolutamente incapaz de imparcialidade. Só Deus é imparcial. Só Ele é que pode, por exemplo, Abençoar, ao mesmo tempo, As bandeiras de dois exércitos inimigos que vão entrar em luta... |
|
|
Arte poética |
em 10/10/2011 16:53:29 (2844 leituras) |
Esses poetas que tudo dizem Nada conseguem dizer: Estão fazendo apenas relatórios... |
|
|
Da Amizade Entre Mulheres |
em 08/10/2011 20:31:11 (4531 leituras) |
Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual! Haverá quem nisso creia? Salvo se uma das duas, por sinal, For muito velha, ou muito feia... |
|
|
Belo Belo |
em 08/10/2011 18:25:43 (5121 leituras) |
Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.
A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos. Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado.
- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples. |
|
|
Poema Erótico |
em 08/10/2011 18:15:29 (8352 leituras) |
Teu corpo claro e perfeito, - Teu corpo de maravilha Quero possuí-lo no leito Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira... Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo branco e macio É como um véu de noivado... Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio, Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes A água clara que serpeja, Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo... Teu corpo... a única ilha No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha, Teu corpo é tudo o que cheira... Rosa, flor de laranjeira...
|
|
|
Porquinho-da-Índia |
em 08/10/2011 18:12:06 (16520 leituras) |
Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele prá sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada. |
|
|
Quadra |
em 04/10/2011 14:20:59 (2324 leituras) |
Gosto e preciso de ti, Mas quero logo explicar: Não gosto porque preciso. Preciso sim, por gostar. |
|
|
|
Minha Mãe |
em 08/05/2012 20:11:22 (3697 leituras) |
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo Tenho medo da vida, minha mãe. Canta a doce cantiga que cantavas Quando eu corria doido ao teu regaço Com medo dos fantasmas do telhado. Nina o meu sono cheio de inquietude Batendo de levinho no meu braço Que estou com muito medo, minha mãe. Repousa a luz amiga dos teus olhos Nos meus olhos sem luz e sem repouso Dize à dor que me espera eternamente Para ir embora. Expulsa a angústia imensa Do meu ser que não quer e que não pode Dá-me um beijo na fonte dolorida Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas Dorme em sossego, que tua mãe não dorme. Dorme. Os que de há muito te esperavam Cansados já se foram para longe. Perto de ti está tua mãezinha Teu irmão. que o estudo adormeceu Tuas irmãs pisando de levinho Para não despertar o sono teu. Dorme, meu filho, dorme no meu peito Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo Me apavora a renúncia. Dize que eu fique Afugenta este espaço que me prende Afugenta o infinito que me chama Que eu estou com muito medo, minha mãe.
O poema acima foi extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 186.
|
|
|
Mãe... |
em 04/05/2012 18:35:02 (2817 leituras) |
Mãe — que adormente este viver dorido, E me vele esta noite de tal frio, E com as mãos piedosas ate o fio Do meu pobre existir, meio partido...
Que me leve consigo, adormecido, Ao passar pelo sítio mais sombrio... Me banhe e lave a alma lá no rio Da clara luz do seu olhar querido...
Eu dava o meu orgulho de homem — dava Minha estéril ciência, sem receio, E em débil criancinha me tornava.
Descuidada, feliz, dócil também, Se eu podesse dormir sobre o teu seio, Se tu fosses, querida, a minha mãe!
Antero de Quental, in "Sonetos" |
|
|
O Operário Em Construção |
em 27/04/2012 11:44:58 (3389 leituras) |
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: - Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: - Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás. Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo Que a casa de um homem é um templo Um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão.
De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele o comia... Mas fosse comer tijolo! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente Um operário em construção.
Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa - Garrafa, prato, facão - Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário Soube naquele momento! Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia - Exercer a profissão - O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia Outro operário escutava.
E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção:
Notou que sua marmita Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não! E o operário fez-se forte Na sua resolução.
Como era de se esperar As bocas da delação Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. Mas o patrão não queria Nenhuma preocupação - "Convençam-no" do contrário - Disse ele sobre o operário E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário Ao sair da construção Viu-se súbito cercado Dos homens da delação E sofreu, por destinado Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado Mas quando foi perguntado O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia E todo o seu sofrimento Misturava-se ao cimento Da construção que crescia.
Sentindo que a violência Não dobraria o operário Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando Ao alto da construção E num momento de tempo Mostrou-lhe toda a região E apontando-a ao operário Fez-lhe esta declaração: - Dar-te-ei todo esse poder E a sua satisfação Porque a mim me foi entregue E dou-o a quem bem quiser. Dou-te tempo de lazer Dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via as casas E dentro das estruturas Via coisas, objetos Produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão. E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão Não vês o que te dou eu? - Mentira! - disse o operário Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração Um silêncio de martírios Um silêncio de prisão. Um silêncio povoado De pedidos de perdão Um silêncio apavorado Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção. |
|
|
No Fundo Somos Bons Mas Abusam de Nós |
em 23/04/2012 20:00:05 (2221 leituras) |
O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive. Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia, na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse colectivo é hoje o puro vazio.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2' |
|
|
Só nos pertence o gesto que fizemos |
em 18/04/2012 14:33:54 (2089 leituras) |
Só nos pertence o gesto que fizemos não o fazê-lo como, iludida, a divindade que em nós já trouxemos supõe errada (e não) por convencida.
Porque o traçado nosso em breve cessa, para que outro o recomece e não progrida; que um gesto em ser gesto real se meça, não está em nós fazê-lo, mas na Vida.
Assim o nada a sagra quando finda porque o que é, só é o não ainda.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1' |
|
|
A Defesa da Liberdade Humana |
em 17/04/2012 14:08:15 (2146 leituras) |
O problema da liberdade foi o que sempre mais me preocupou. Tento pôr ordem nas minhas ideias, mas não é fácil. Fui da esquerda e mesmo da sua direita (porque a direita da esquerda é a mais esquerda, como a direita da direita, a mais direita). Fui-o porque ela era a favor da liberdade humana e se parecia que era contra a liberdade humana, era só por defender a liberdade humana. Hoje sou contra a defesa da liberdade humana, porque sou a favor da liberdade humana. Esquerdas e direitas dizem-me que se eu sou contra a defesa da liberdade humana, por ser a favor da liberdade humana, sou realmente contra a liberdade humana e estou por isso fazendo o jogo de uns ou de outros, consoante aqueles que me acusam. Ah, por favor, não me peçam explicações - sou homem, não sou político. Defendo a liberdade porque sou pela liberdade e por isso não devo defender a liberdade, porque para defender a liberdade teria de atacar a liberdade, o que me obrigaria então a defendê-la por ser a favor dela - merda! Sou pela liberdade, sou contra a opressão, e isto é simples, é humano, é evidente - disse! E não me chateiem mais.
Vergílio Ferreira, in 'Estrela Polar' |
|
|
Questão de pontuação |
em 15/04/2012 18:51:55 (5133 leituras) |
Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca);
viva em ponto de interrogação (foi filosofia, ora é poesia); viva equilibrando-se entre vírgulas e sem pontuação (na política):
o homem só não aceita do homem que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive o inevitável ponto final.
|
|
|
A morte absoluta |
em 09/04/2012 22:44:22 (3066 leituras) |
Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne, A exangue máscara de cera, Cercada de flores, Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante... A caminho do céu? Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, A lembrança de uma sombra Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome. FONTE: JORNAL DE POESIA
|
|
|
Vestígios |
em 09/04/2012 22:32:11 (3182 leituras) |
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
“Horto de Incêndio” Assirio & Alvim, 1997
|
|
|
Nossa truculência |
em 09/04/2012 22:22:37 (2895 leituras) |
Quando penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando minhocas. Deveríamos não comê-las e ao seu sangue? Nunca. Nós somos canibais, é preciso não esquecer. E respeitar a violência que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue.
Minha falta de coragem de matar uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue. É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculência. É amor também.
|
|
|
O quotidiano “não” |
em 09/04/2012 21:51:28 (2444 leituras) |
Estamos todos bem servidos de solidão. De manhã a recolhemos do saco, em lugar de pão.
Pão é claro que temos (não sou exageradão) mas esta imagem do saco contendo um pequeno «não»
não figura nesta prosa assim do pé para a mão, pois o saco utilizado, que pode ser o do pão,
recebe modestamente a corriqueira fracção desse alimento que é tão distribuído, tão
a domicílio como o leite ou o pão. Mas esse leitor aí (bem real!) já diz que não,
que nunca viu no tal saco o tal «não». Ao que o poeta responde, sem maior desilusão:
- Para dizer a verdade, eu também não... Mas estava confiante na sua imaginação (ou na minha...) e que sentia como eu a solidão e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção
de quem hoje nos fornece o quotidiano «não», por todos os meios, desde a fingida distracção,
até ao entre-parêntesis de qualquer reclusão...
“Poesias Completas” Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983
|
|
|
Decálogo do artista |
em 07/04/2012 20:13:45 (1568 leituras) |
Gabriela Mistral
I. Amarás a beleza, que é a sombra de Deus sobre o Universo. II. Não há arte atéia. Embora não ames ao Criador, o afirmarás criando a sua semelhança. III. Não darás a beleza como isca para os sentidos, se não como o natural alimento da alma. IV. Não te será pretexto para a luxúria nem para a vaidade, se não exercício divino. V. Não a buscarás nas feiras nem levarás tua obra a elas, porque a Beleza é virgem, e a que está nas feiras não é Ela. VI. Subirá de teu coração a teu canto e te haverá purificado a ti o primeiro. VII. Tua beleza se chamará também misericórdia e consolará o coração dos homens. VIII. Darás tua obra como se dá um filho: tirando sangue de teu coração. IX. Não te será a beleza ópio adormecido, se não vinho generoso que te estimula para a ação, pois se deixas de ser homem ou mulher, deixarás de ser artista. X. De toda a criação sairás com vergonha, porque foi inferior a teu sonho e inferior a esse maravilhoso Deus que é Natureza.
|
|
|
Vida e Obra |
em 31/03/2012 13:48:12 (4694 leituras) |
Millôr Fernandes
"Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer".
"Millôr Fernandes nasceu. Todo o seu aprendizado, desde a mais remota infância. Só aos 13 anos de idade, partindo de onde estava. E também mais tarde, já homem formado. No jornalismo e nas artes gráficas, especialmente. Sempre, porém, recusou-se, ou como se diz por aí. Contudo, no campo teatral, tanto então quanto agora. Sem a menor sombra de dúvida. Em todos seus livros publicados vê-se a mesma tendência. Nunca, porém diante de reprimidos. De 78 a 89, janeiro a fevereiro. De frente ou de perfil, como percebeu assim que terminou seu curso secundário. Quando o conheceu em Lisboa, o ditador Salazar, o que não significa absolutamente nada. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi exatamente o contrário. Amigos e mesmo pessoas remotamente interessadas - sem temor nenhum. Onde e como, mas talvez, talvez — Millôr, porém, nunca. Isso para não falar em termos públicos. Mas, ao ser premiado, disse logo bem alto - e realmente não falou em vão. Entre todos os tradutores brasileiros. Como ninguém ignora. De resto, sempre, até o Dia a Dia”.
("Currículo" publicado por Millôr quando de sua estréia no jornal "O Dia", Rio (RJ).
Considerado "um dos poucos escritores universais que possuímos", na opinião do crítico Fausto Cunha, filho de Francisco Fernandes e de Maria Viola Fernandes, Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923 no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, com o nome de Milton Viola Fernandes. Só seria registrado no ano seguinte, tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924. Sua certidão de nascimento, grafada à mão, fazia crer que seu nome era Millôr e não Milton. Seu pai, engenheiro emigrante da Espanha, morre em 1925, com apenas 36 anos. A família começa a passar por dificuldades e sua mãe passa horas em frente a uma máquina de costura para poder sustentar os 4 filhos. Apesar do aperto, o autor teve uma infância feliz, ao lado de 10 tios, 42 primos e primas e da avó italiana D. Concetta de Napole Viola.
Estuda na Escola Ennes de Souza, de 1931 a 1935, por ele chamada de Universidade do Meyer, mas que na verdade era uma escola pública. Diz dever tudo o que sabe a sua professora, Isabel Mendes, depois diretora e hoje nome da escola. Se emociona ao falar sobre ela "...uma mulatinha magra e devotada, que me ensinou tudo que se deve aprender de um professor ou de uma escola: a gostar de estudar. Depois disso, pode-se ser autodidata. Escola, a não ser para campos técnicos/experimentais, é praticamente inútil".
A chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, em 1934, faz de Millôr um leitor assíduo dessas publicações, em especial de Flash Gordon, de autoria de Alex Raymond, e, com isso, dar vazão à sua criatividade. Sob a influência de seu tio Antônio Viola, tem seu primeiro trabalho publicado em um órgão da imprensa — "O Jornal", do Rio de Janeiro, tendo recebido o pagamento de 10 mil reis por ele. Era o início do profissionalismo, adotado e defendido para sempre.
Em 1935, também com 36 anos, falece sua mãe, o que faz com que os irmãos Fernandes passem a levar uma vida dificílima. Essa coincidência de datas leva Millôr a escrever um conto, "Agonia", publicado na revista "Cigarra" em janeiro de 1947, onde afirmava: "Tenho dia e hora marcada para me ir e o acontecimento se dará por volta de 1959". A morte da mãe o leva a morar em Terra Nova, subúrbio próximo ao Méier, com o tio materno Francisco, sua mulher Maria e quatro filhos.
Trabalha, em 1938, com o Dr. Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto, entregando o remédio para os rins "Urokava" em farmácias e drogarias. Durou pouco esse emprego. Logo vai ser contínuo, repaginador, factótum, na pequena revista "O Cruzeiro", que nessa época tinha, além de Millôr, mais dois funcionários: um diretor e um paginador. A revista, anos depois, chegou a vender mais de 750.000 exemplares. Com o pseudônimo "Notlim" ganha um concurso de crônicas promovido pela revista "A Cigarra". Com isso, é promovido e passa a trabalhar no arquivo.
O cancelamento de publicidade em quatro páginas de "A Cigarra" fez com que fosse chamado por Frederico Chateaubriand para preencher as páginas que ficaram em branco. Cria, então, o "Poste Escrito", onde assinava-se Vão Gôgo. O sucesso da seção faz com que ela passe a ser fixa. Com o mesmo pseudônimo, começa a escrever uma coluna no "Diário da Noite". Assume a direção de "A Cigarra", cargo que ocuparia por três anos. Dirigiu também "O Guri", revista em quadrinhos e "Detetive", que publicava contos policiais.
Ciente da necessidade de se aprimorar, estuda no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro de 1938 a 1943.
Em 1940, muda-se para o bairro da Lapa, centro da cidade, e passa a morar próximo a Alceu Pena, seu colega em "O Cruzeiro". Colabora na seção "As garotas do Alceu" como colorista e versejador.
Autodidata, faz sua primeira tradução literária: "Dragon seed", romance da americana Pearl S. Buck, com o título "A estirpe do dragão", em 1942.
No ano seguinte retorna, com Frederico Chateaubriand e Péricles, à revista "O Cruzeiro". Em dez anos, a tiragem foi um grande êxito editorial, passando de 11 mil para mais de 750 mil exemplares semanais.
Em 1945, inicia a publicação de seus trabalhos na revista "O Cruzeiro", na seção "O Pif-Paf", sob o pseudônimo de Vão Gôgo e com desenhos de Péricles.
No ano seguinte lança "Eva sem costela — Um livro em defesa do homem", sob o pseudônimo de Adão Júnior.
Sua colaboração para "O Cruzeiro", em 1947, atinge a marca de dez seções por semana.
Em 1948 viaja aos Estados Unidos, onde encontra-se com Walt Disney, Vinicius de Moraes, o cientista César Lates e a estrela Carmen Miranda. Casa-se com Wanda Rubino.
Publica "Tempo e Contratempo", com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo, em 1949. Assina seu primeiro roteiro cinematográfico, "Modelo 19". O filme, lançado com o título "O amanhã será melhor", ganha cinco prêmios Governador do Estado de São Paulo. Millôr é agraciado com o de melhores diálogos.
Em 1951, na companhia de Fernando Sabino, viaja de carro pelo Brasil, durante 45 dias. Lança a revista semanal "Voga", que teve apenas cinco números.
Viaja pela Europa por quatro meses, em 1952.
"Uma mulher em três atos", sua primeira peça, estréia no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo (SP), em 1953.
No ano seguinte, compra o imóvel que se tornaria famoso — "a cobertura do Millôr", no bairro de Ipanema, onde o escritor até hoje vive. Nasce seu filho Ivan.
Em 1955, divide com o desenhista norte-americano Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, Argentina. Escreve “Do tamanho de um defunto”, que estreou no Teatro de Bolso (Rio) e, depois, adaptado pelo próprio autor para o cinema, tendo o filme o título de “Ladrão em noite de chuva”. Nesse ano escreve “Bonito como um deus”, que estréia no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo (SP), e ainda “Um elefante no caos” e “Pigmaleoa”.
Em 1956, Millôr passa a ilustrar todos os seus textos publicados na revista "O Cruzeiro".
No ano de 1957, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebe exposição individual do biografado. Realiza a cenografia de “As guerras do alecrim e da manjerona”. Esse trabalho foi premiado pelo Serviço Nacional de Teatro no ano de 1958.
Nesse ano, conclui a primeira tradução teatral: “Good people”, então intitulada “A fábula de Brooklin — Gente como nós”. Fez parte do grupo que "implantou" o frescobol no posto 9, Ipanema, Rio de Janeiro.
Escreve o roteiro de “Marafa”, a partir do romance homônimo de Marques Rebello. Em 1959. No mesmo ano, apresenta na TV Itacolomi, de Belo Horizonte, a convite de Frederico Chateaubriand, uma série de programas intitulada “Universidade do Méier”, na qual desenhava enquanto fazia comentários. Posteriormente, o programa foi transferido para a TV Tupi do Rio de Janeiro, com o título de “Treze lições de um ignorante” e suspenso por ordem do governo Juscelino Kubitschek após uma crítica à primeira dama do país: Disse Millôr: "Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de 5 meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho." Nasce sua filha, Paula.
Nos anos seguintes, já integrado à intelectualidade carioca, convive com Péricles, criador de "O Amigo da Onça", Nelson Rodrigues, David Nasser, Jean Manson, Alfredo Machado, Fernando Chateaubriand, Emil Farhat e Accioly Netto, entre outros.
Em 1960, depois de resolvidos os problemas com a censura, estréia no Teatro da Praça, no Rio, ”Um elefante no caos”. O título original da peça era “Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país” rendeu a Millôr o prêmio de “Melhor Autor” da Comissão Municipal de Teatro. O filme “Amor para três”, com roteiro do biografado, baseado em “Divórcio para três”, de Victorien Sardou, é dirigido por Carlos Hugo Christensen. Millôr colaboraria com esse diretor em mais três filmes: “Esse Rio que eu amo”, 1962, Crônica da cidade amada”, 1965, e O menino e o vento, 1967.
Expõe, em 1961, desenhos na Petit Galerie, no Rio. Viaja ao Egito e retorna antes do previsto, tendo em vista a renúncia do presidente Jânio Quadros. Trabalha por 7 dias no jornal "Tribuna da Imprensa", Rio, que mais tarde pertenceu a seu irmão Hélio Fernandes. Foi demitido por ter escrito um artigo sobre a corrupção na imprensa. Os editores, o poeta Mário Faustino e o jornalista Paulo Francis pediram também demissão em solidariedade.
No ano seguinte, na edição de 10 de março de “O Cruzeiro”, “demite” Vão Gôgo e passa a assinar Millôr. A Amstutz & Herder Graphic Press, importante publicação de Zurique, dedica uma página de seu anuário ao autor. “Pigmaleoa” é apresentada, sob a direção de Adolfo Celi, no Teatro Rio.
Em 1963, escreve a peça teatral “Flávia, cabeça, tronco e membros”. Viaja a Portugal e, durante sua ausência, a revista “O Cruzeiro” publica editorial no qual se isenta de responsabilidade pela publicação de “História do Paraíso”, que obteve repercussão negativa por parte dos leitores católicos da revista. Millôr deixa a revista e começa a trabalhar no jornal “Correio da Manhã”, lá ficando até o ano seguinte.
A partir de 1964, e até 1974, colabora semanalmente no jornal Diário Popular, de Portugal. A página mereceria o seguinte comentário de um ministro de Salazar: "Este tem piada, pena que escreva tão mal o português". Lança a revista “Pif-Paf”, considerada o início da imprensa alternativa no Brasil. Foi fechada em seu oitavo número, por problemas financeiros.
Volta à TV, em 1965, como apresentador na TV Record, ao lado de Luis Jatobá e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), do “Jornal de Vanguarda”. “Liberdade liberdade” estréia no Teatro Opinião, no Rio, musical escrito em parceria com Flávio Rangel.
Composta pelo biografado, a canção “O homem” é defendida no II Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record, por Nara Leão, em 1966. Monta, ao ar livre, no Largo do Boticário, Rio, só com atores negros, sua adaptação de “Memórias de um sargento de milícias”.
Em 1968 atua, ao lado de Elizeth Cardoso e do Zimbo Trio, em “Do fundo do azul do mundo”, espetáculo musical de sua autoria. Passa a colaborar com a revista “Veja”.
Na sua estréia, apresentou-se com o texto que abaixo reproduzimos parcialmente:
SUPERMERCADO MILLÔR ANO I - N.º 1
(Autobiografia De Mim Mesmo À Maneira De Mim Próprio)
"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras — reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.”
”... Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela....Aos quinze (anos) já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil. Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conhas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes ciclames. Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo. Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu.”
”Sou um crente, pois creio firmemente na descrença. ...Creio que a terra é chata. Procuro não sê-lo. ...Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos.”
”A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado. É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a idéia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo. Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar.”·
Ainda em 1968 escreve o texto do show “Momento 68”, promovido pela empresa Rhodia, que contou com a participação de Caetano Veloso, Walmor Chagas e Lennie Dale, entre outros.
No ano seguinte, participa do grupo fundador de “O Pasquim”.
Fernanda Montenegro estrela “Computa, computador, computa”, no Teatro Santa Rosa, no Rio, em 1972. Lança o livro “Esta é a verdadeira história do Paraíso” e também “Trinta anos de mim mesmo”, numa sessão de autógrafos denominada “Noite da contra-incultura”.
Em 1975, faz exposição de 25 quadros “em branco, mas com significado”, na Galeria Grafitti, no Rio.
No ano seguinte, escreve para Fernanda Montenegro a peça “É...”, que se tornou o grande sucesso teatral de Millôr ao ser encenada no Teatro Maison de France, no Rio.
Em 1977, realiza nova exposição de seus trabalhos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Adapta, no ano seguinte, para o formato de musical a peça “Deus lhe pague”, de Joracy Camargo, que contou com Bibi Ferreira na direção e com músicas de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. É homenageado pelo 5º Salão de Humor de Piracicaba (SP), mas “exige” que a honraria seja “para todos os humoristas na pessoa de Millôr Fernandes”. Em Brasília, para o Museu da Moeda, localizado no Banco Central do Brasil, produz quatro painéis que contam a história do dinheiro.
Estréia no Teatro dos Quatro, Rio, a peça “Os órfãos de Jânio”, em 1980.
Publica “Desenhos”, uma compilação de seus trabalhos gráficos, com textos de apresentação de Pietro Maria Bardi e Antônio Houaiss, em 1981.
O ano de 1982 é de muito trabalho. O autor escreve e publica a peça “Duas tábuas e uma paixão”. Traduz a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lear, apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tetê Medina monta “A eterna luta entre o homem e a mulher”, no Teatro Clara Nunes – Rio. Escreve a adaptação de “A chorus line”, encenado por Walter Clark. Estréia “Vidigal: Memórias de um sargento de milícias”. São dele, nessa peça, os cenários, figurinos e letras, musicadas por Carlos Lyra. Com Flávio Rangel, escreve e representa o espetáculo “O gesto, a festa, a mensagem”, na TV Record de São Paulo. Deixa a revista “Veja”.
Em 1983, é homenageado pela Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, de Niterói (RJ). Millôr não comparece ao desfile. Passa a colaborar com a revista “Istoé”.
Lança “Poemas”, em 1984. Estréia o musical “O MPB4 e o dr. Çobral vão em busca do mal”.
No ano seguinte, colabora com o Jornal do Brasil. Lança o “Diário da Nova República”. É montada a peça “Flávia, cabeça, tronco e membros” no Teatro Ginástico – Rio.
Passa a usar o computador para escrever e desenhar, em 1986. Escreve, com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, o roteiro do filme “O judeu”, dirigido por Jom Tob Azulay, baseado na vida de António José da Silva. Rodado em Portugal, só seria concluído em 1995.
”L’anné 82 au Brésil: le regard critique de Millôr Fernandes” (O ano de 82 no Brasil: o olhar crítico de Millôr Fernandes), é o tema de tese de doutoramento de Françoise Duprat na Universidade de Toulouse-Le Mirail II, França, em 1987.
No ano seguinte, lança “The cow went to the swamp / A vaca foi para o brejo”. Na Universidade de São Paulo (USP), Branca Granatic defende, na dissertação de mestrado, “Os recursos humorísticos de Millôr Fernandes”.
Em 1990, nasce seu neto, Gabriel, filho de Ivan.
Deixa a revista “Istoé” e o Jornal do Brasil, em 1992.
No ano de 1994, lança “Millôr definitivo — A bíblia do caos”.
Escreve a peça “Kaos”, Adapta para a Rede Globo “Memórias de um sargento de milícias”. A partir de um argumento de Walter Salles, escreve o roteiro “Últimos diálogos”, em 1995.
Em 1996, passa a colaborar nos jornais “O Dia” (RJ), “O Estado de São Paulo” (SP) e “Correio Braziliense” (DF). Neste último, trabalharia somente até o fim do ano.
Em 1998, em parceria com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay, assina o roteiro de “Mátria”.
No ano seguinte, começa a adaptar “Os três mosqueteiros”, de Dumas, para o formato de musical, trabalho que não chegou a ser concluído.
Em 2000, escreve o roteiro de “Brasil! Outros 500 — Uma PoopÓpera”, que teve sua estréia no Teatro Municipal de São Paulo. O espetáculo contava com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro e arranjos de Wagner Tiso. Deixa de colaborar com “O Estado de São Paulo” e “O Dia”. Passa a colaborar com coluna semanal na “Folha de São Paulo”. Lança o site “Millôr On Line” (http://www.millor.com.br) .
No ano seguinte, deixa a “Folha de São Paulo” e volta ao “Jornal do Brasil”.
Em 2002, publica “Crítica da razão impura ou O primado da ignorância”, em que analisa as obras “Brejal dos Guajas e outras histórias”, de José Sarney, e “Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso. Deixa de colaborar, em novembro, com o “Jornal do Brasil”.
Em 2003, ilustra “O menino”, volume de contos de João Uchoa Cavalcanti Netto, e faz cem desenhos para uma nova compilação das “Fábulas fabulosas”.
Em 2004, lança pela Editora Record, “Apresentações”.
Em meados de agosto de 2004 é anunciado seu retorno às folhas da revista semanal “Veja”, a partir de setembro daquele ano.
Tempos atrás um jornal publicou que Millôr estava todo cheio de si por ter recebido, em sua casa, uma carta de um leitor com o seguinte endereçamento:
"Millôr Ipanema"
É a glória!
Mestre Millôr Fernandes, 88 anos, deixou a Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, onde havia sido internado no início de fevereiro, devido a um AVC. Se recupera em sua casa.
Textos extraídos de livros do autor, da Internet, do CD "Em busca da Imperfeição", de 1999, produzido pela Neder & Associados e dos “Cadernos de Literatura Brasileira – Instituto Moreira Salles.
Esse gênio brasileiro faleceu no dia 27/03/2012 na cidade do Rio de Janeiro.
LIVROS DO AUTOR:
Prosa:
- "Eva sem costela – Um livro em defesa do homem" (sob o pseudônimo de Adão Júnior) - 1946 - Editora O Cruzeiro.
- "Tempo e contratempo" (sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogô) - 1949 - Editora O Cruzeiro.
- "Lições de um ignorante" - 1963 - J. Álvaro Editor
- "Fábulas Fabulosas" - 1964 - J. Álvaro Editor. Edição revista e ilustrada – 1973 - Nórdica
- "Esta é a verdadeira história do Paraíso" - 1972 - Livraria Francisco Alves
- "Trinta anos de mim mesmo" - 1972 - Nórdica
- "Livro vermelho dos pensamentos de Millôr" - 1973 – Nórdica. Edição revista e ampliada: Senac – 2.000.
- "Compozissõis imfãtis" - 1975 - Nórdica
- "Livro branco do humor" - 1975 – Nórdica
- "Devora-me ou te decifro" – 1976 – L&PM
- "Millôr no Pasquim" - 1977 – Nórdica
- "Reflexões sem dor" - 1977 - Edibolso.
- "Novas fábulas fabulosas" - 1978 – Nórdica
- "Que país é este?" - 1978 – Nórdica
- "Millôr Fernandes – Literatura comentada". Organização de Maria Célia Paulillo – 1980 Abril Educação
- "Todo homem é minha caça" - 1981 - Nórdica
- "Diário da Nova República" - 1985 – L&PM
- "Eros uma vez" – 1987 – Nórdica – Ilustrações de Nani
- "Diário da Nova República,v. 2" - 1988 – L&PM
- "Diário da Nova República, v. 3" – 1988 – L&PM
- "The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo" – 1988 - Record
- "Humor nos tempos do Collor" (com L. F. Veríssimo e Jô Soares) – 1992 – L&PM
- "Millôr definitivo - A bíblia do caos" - 1994 – L&PM
- "Amostra bem-humorada" – 1997 – Ediouro – Seleção de textos de Maura Sardinha
- "Tempo e contratempo (2ª edição) – Millôr revisita Vão Gogô" - 1998 - Beca.
- "Crítica da razão impura ou O primado da ignorância – Sobre Brejal dos Guajas, de José Sarney, e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso" – 2002 – L&PM
- "100 Fábulas Fabulosas" – 2003 – Record
- "Apresentações" – 2004 – Record.
- "Abecedário do Millôr para crianças" - 2004 - Nova Fronteira, com Guto Lins e Susan Johnson
- "Pif Paf 40 anos depois" - 2005 - Argumento, com Ziraldo, Claudius e outros
Poesia:
- "Papaverum Millôr" – 1967 – Prelo. Edição revista e ilustrada: 1974 – Nórdica
- "Hai-kais" – 1968 – Senzala
- "Poemas" – 1984 – L&PM
Artes visuais:
- "Desenhos" – 1981 – Raízes Artes Gráficas. Prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss.
PEÇAS DE TEATRO:
Publicadas em livros:
- "Teatro de Millôr Fernandes (inclui Uma mulher em três atos [1953], Do tamanho de um defunto [1955], Bonito como um deus [1955] e A gaivota [1959])" – 1957 –Civilização Brasileira
- "Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país" – 1962 – Editora do Autor
- "Pigmaleoa" – 1965 – Brasiliense
- "Computa, computador, computa" – 1972 – Nórdica
- "É..." – 1977 – L&PM
- "A história é uma istória" – 1978 – L&PM
- "O homem do princípio ao fim" – 1982 – L&PM
- "Os órfãos de Jânio" – 1979 – L&PM
- "Duas tábuas e uma paixão" – 1982 – L&PM (nunca encenada)
Não editadas:
- "Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal" - 1955
- "Pif, tac, zig, pong"– 1962
- "A viúva imortal" – 1967
- "A eterna luta entre o homem e a mulher" – 1982
- "Kaos" – 1995 (leitura pública em 2001 – nunca encenada)
ESPETÁCULOS MUSICAIS:
- "Pif-Paf – Edição extra!" – 1952 (com músicas de Ary Barroso)
- "Esse mundo é meu" – 1965 (em parceria com Sérgio Ricardo)
- "Liberdade liberdade" – 1965 (em parceria com Flávio Rangel)
- "Memórias de um sargento de milícias" - 1966 (com músicas de Marco Antonio e Nelson Lins e Barros)
- Momento 68 – 1968
- Mulher, esse super-homem – 1969
- Bons tempos, hein?! – 1979 (publicada pela L&PM - 1979 - Porto Alegre)
- Vidigal: Memórias de um sargento de milícias – 1982 (com músicas de Carlos Lyra)
- De repente – 1984
- O MPB-4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal – 1984
- Brasil! Outros 500 – Uma PopÓpera (com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro)
TRADUÇÕES:
Romances:
- A estirpe do dragão (Dragon seed), de Pearl S. Buck - 1942 - José Olympio Editora - Rio de Janeiro.
- Nunca saí de casa (I never left home), de Bob Hope - 1945 - O Cruzeiro - Rio de Janeiro.
Textos teatrais:
1958 – "A fábula de Brooklin – Gente como nós", de Irwin Shaw.
1960 - "O prodígio do mundo Ocidental", de John M. Synge.
1961 - "Megera domada", de W. Shakespeare.
1961 – "O velho ciumento", de Miguel de Cervantes.
1963 – "Mary, Mary", de Jean Kerr.
1963 – "Pigmaleão", de G. Bernard Shaw.
1963 – "As preciosas ridículas", de Molière.
1965 - "Pequenos assassinatos", de Jules Feiffer.
1965 – "A mulher de todos nós", de Henri Becque.
1965 - "Escola de mulheres", de Molière.
1967 - "Lisistrata", de Aristófanes.
1967 – "Negra meobem", de François Campaux.
1967 – "O assassinato da irmã Geórgia", de Frank Marcus.
1967 - "Marat Sade", de Peter Weiss.
1967 - "A volta ao lar", de Harold Pinter.
1967 - "Blecaute", de Frederic Knott.
1968 - "A cozinha", de Arnold Wesker.
1970 – "Rapazes da banda", de Mart Crowley.
1971 - "As eruditas", de Molière.
1972 - "Antigamente", de Harold Pinter.
1974 - "Antígona", de Sófocles.
1975 - "Os filhos de Kennedy", de Robert Patrick.
1976 - "Senhor Puntila e seu criado Matti", de Bertold Brechet.
1976 – "Vivaldino, servidor de dois amos", de Carlo Goldoni.
1977 - "A calça", de Carl Sternheim.
1978 - "Quem tem medo de Virginia Wolf?", de Edward Albee.
1979 - "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder.
1979 - "Palhaços de ouro", de Neil Simon.
1980 – "O rei Lear", de W. Shakespeare.
1980 - "De quem é a vida, afinal?", de Brian Clark.
1980 - "Gata em telhado de zinco quente", de Tennessee Williams.
1980 - "A carta", de Somerset Maugham.
1980 - "Ó, Calcutá!", de Kenneth Tynan.
1981 - "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder.
1981 – Bunny’s Bar, de Josiane Balasko.
1981 - "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare.
1981 - "A senhorita de Tacna", de Mario Vargas Llosa.
1982 - "Chorus line", de de Michael Bennet.
1982 – "Casamento branco", de Tadeusz Rozewicz.
1982 – "Hedda Gabler", de Henrik Ibsen.
1982 - "A viúva alegre", de Franz Lehar.
1983 - "A falecida senhora sua mãe", de George Feydeau.
1983 - "Piaf", de Pam Gems.
1983 - "O jardim das cerejeiras", de Anton Tchekov.
1983 - "Boa noite, mãe", de Marsha Norman.
1984 - "Grande e pequeno", de Botho Strauss.
1984 - "Pô, Romeu!", de Efraim Kishon.
1984 - "Hamlet", de W. Shakespeare.
1984 - "Tio Vânia", de Anton Tchekov.
1984 – "Dédalo e Ícaro", de Dario Fo.
1984 – "O sacrifício de Isaac", de Dário Fo.
1984 – "A tigresa", de Dário Fó.
1984 – "Gilda, um projeto de vida", de Noel Coward.
1984 - "Madame Vidal", de Georges Feydeau.
1985 - "Fedra", de Jean Racine.
1985 - "O feitichista", de Michel Tournier.
1985 - "Imaculada", de Franco Scaglia.
1985 - "Sábado, domingo e segunda", de Edoardo de Filippo.
1985 - "Assim é, se lhe parece", de Luigi Pirandello.
1986 - "Quarteto", de Heiner Müller.
1986 – "Quatro vezes Beckett", de Samuel Beckett.
1986 – "Ensina-me a viver", de Collin Higgins.
1987 - "O preço", de Arthur Miller.
1987 - "Filumena Marturano", de Edoardo de Filippo.
1987 - "Vestir os nus", de Pirandello.
1988 - "Encontrarse", de Pirandello.
1987 – "La mamma ou O belo Antônio", de Vitaliano Francatti.
1994 - "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière.
1996 - "Anna Magnani", de Armand Meffre.
1996 – "Paloma", de Jean Anouilh.
1996 – "Master class", de Terence McNally.
1999 - "Últimas luas", de Furio Bordon.
2001 – "Fim de jogo", de S. Beckett.
Traduções para o teatro publicadas:
- "A megera domada", de W.Shakespeare - 1965 - Letras e Artes
- "Sr. Puntila e seu criado Matti", de B.Brecht - 1966 - Civilização.Brasileira
- "O prodígio do mundo ocidental", de John M. Synge - 1968 – Braziliense
- "Escola de mulheres", de Molière - 1973 – Nórdica
- "Os filhos de Kennedy", de R. Patrick - 1975 – Nórdica
- "A volta ao lar", de Harold Pinter – 1976 – Abril Cultural
- "Lisistrata", de Aristófanes – 1977 – Abril Cultural
- "O rei Lear", de W. Shakespeare – 1981 – L&PM
- "A senhorita de Tacha", de Mário Vargas Llosa – 1981 – Francisco Alves
- "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM
- "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM
- "Hamlet", de W. Shakespeare – 1984 – L&PM
- "Fedra", de J. Racine – 1985 – L&PM
- "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière – 1994 – L&PM
- "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare – 1995 – L&PM
- "Antígona", de Sófocles – 1996 – Paz e Terra
- "As eruditas", de Molière – 2003 – L&PM.
FÁBULA:
- "A ovelha negra e outras fábulas", de Augusto Monterroso – 1983 – Record, ilustrações de Jaguar.
HUMOR:
- "A completa lei de Murphy", de Arthur Bloch – 1996 – Record – ilustrações de Jaguar.
EXPOSIÇÕES:
1957 - Exposição no Museu de Arte Moderna - Rio.
1961 - Exposição na Petite Galerie - Rio.
1975 - Exposição de desenhos na Galeria Grafitti - Rio.
1977 - Exposição "Visão da Terra" no Museu de Arte Moderna - Rio.
MULTIMÍDIA:
2000 - "Em Busca da Imperfeição" - CD-Rom - Neder & Associados / Oficina / Universo Online (UOL).
ROTEIROS PARA O CINEMA:
Individuais:
1952 – "Modelo 19". Lançado como “O amanhã será melhor”, também conhecido como “Uma ponte de esperança”. Direção de Armando Couto.
1960 – "Amor para três". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1960 – "Ladrão em noite de chuva". Direção de Armando Couto.
1962 – "Esse Rio que eu amo". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1965 – "Crônica da cidade amada". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1967 – "O menino e o vento". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1995 – "Últimos diálogos". Ainda não filmado (2004).
Em parceria:
1995 - "O judeu". Com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira. Direção de Jom Tob Azulay.
1998 - "Matria”. Com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay (Ainda não filmado – 2004).
Colaboração:
1995 – "Terra estrangeira". Direção de Walter Salles e Daniela Thomas (diálogos adicionais).
ADAPTAÇÃO PARA A TELEVISÃO:
- "Memórias de um sargento de milícias". Baseado no musical “Vidigal”. Direção de Mauro Mendonça Filho, Rede Globo de Televisão – 1995.
INTERNET:
2000 – Millôr Online (http://www.millor.com.br).
ILUSTRAÇÕES:
- "Maurício, o leão de menino", de Flávia Mari. São Paulo - 1981 – Summus.
- "Sapomorfose ou O príncipe que coaxava", de Cora Rónai. Rio de Janeiro – 1983 – Salamandra.
- "O caderno rosa de Lori Lamby", de Hilda Hilst. São Paulo – 1990 – Massao Ohno.
- "Retrato do artista quando coisa", de Manuel de Barros. Rio de Janeiro - 1998 - Editora Record
- "O menino", de João Uchoa Cavalcanti Netto. Rio de Janeiro – 2003 – Editora Rio.
COMPOSIÇÃO MUSICAL:
1966 – "O homem". Apresentada por Nara Leão no II Festival de Música Brasileira, da TV Record de São Paulo.
Textos extraídos de livros do autor, da Internet , do CD "Em busca da Imperfeição", de 1999, produzido pela Neder & Associados e dos “Cadernos de Literatura Brasileira – Instituto Moreira Salles.
Fonte: http://www.releituras.com/ |
|
|
Mudança |
em 03/03/2012 14:45:43 (5810 leituras) |
Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa. Mais tarde, mude de mesa. Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua. Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa. Tome outros ônibus. Mude por uns tempos o estilo das roupas. Dê os seus sapatos velhos. Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos. Veja o mundo de outras perspectivas. Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da cama... Depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de tv, compre outros jornais... leia outros livros. Viva outros romances. Não faça do hábito um estilo de vida. Ame a novidade. Durma mais tarde. Durma mais cedo. Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua. Corrija a postura. Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias. Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor. A nova vida. Tente. Busque novos amigos. Tente novos amores. Faça novas relações. Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria. Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa. Escolha outro mercado... outra marca de sabonete, outro creme dental... Tome banho em novos horários. Use canetas de outras cores. Vá passear em outros lugares. Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes. Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias. Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores. Abra conta em outro banco. Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus. Mude. Lembre-se de que a Vida é uma só. E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano. Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as. Seja criativo. E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino. Experimente coisas novas. Troque novamente. Mude, de novo. Experimente outra vez. Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa. O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia. Só o que está morto não muda ! Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
|
|
|
Primeiros cem anos de uma eternidade |
em 28/02/2012 22:40:37 (2128 leituras) |
A semana passada, fomos largamente informados, por todos os meios de comunicação, do centenário do nascimento de Charlie Chaplin. A Rádio Televisão Portuguesa levou a todas as casas o eco da sua homenagem, transmitindo uma pequena série dos primeiros e difíceis passos do querido Charlot e repondo um dos seus filmes mais celebrados – AS LUZES DA RIBALTA. Não exagero se lhes disser que senti todas as manifestações de carinho e homenagem como se fossem feitas a uma pessoa de família. É que… o meu espírito jamais se desligou de Charlie Chaplin desde que, em pequenino, os meus olhos se alegraram e a minha boca se encheu de riso à sua custa. Ao longo da vida, fui vendo todos os seus filmes e lendo todas as suas biografias. E nunca no meu sentir foi menos luminosa a sua figura de artista inigualável. Tenho dele um grande poster ao fundo do corredor. É uma espécie de ícone dessa estranha religião que é o humor universal. O riso é a mais inequívoca expressão de felicidade. Enquanto o homem ri, nada lhe pode enegrecer a alma e o espírito. Nunca dois homens se odiaram, ao rir do mesmo riso. Mais do que a política ou a religião o riso é capaz de irmanar os homens, ainda que por uns segundos… Charlie Chaplin foi o maior e mais completo artista cómico da história do cinema. Do gesto mais simples à mais complicada montagem, tudo nele é intenção de fazer rir. Mas nunca é alvar o riso ou o sorriso que nos liberta, por momentos, do peso da vida. No riso de Charlot há sempre conteúdo humano. Por vezes tão humano que a comoção chega primeiro que o riso. Tantas, tantas cenas em que nos fica no peito uma estranha sensação de alegre sofrimento… Durante dezenas de anos Charlie Chaplin fez rir as crianças de todo o mundo. As crianças e os adultos. Adulto que não ri com Charlot só cresceu por fora. Vamos fechar as luzes e passar uma fita de Charlot. É bem capaz de partir quando estiver no melhor da fita. Mas não faz mal. Vale sempre a pena! Charlot aparece com aquele cão esbranquiçado que às vezes o acompanha. A rua é escura, sórdida e deserta… Diante da porta iluminada de um cabaret Charlot hesita entre seguir ou entrar. Dois passinhos à frente… dois passinhos atrás… Depois de uns segundos de reflexão, toma um ar resoluto e tenta atravessar a porta. Mas o porteiro, que é uma abantesma, faz-lhe ver que não pode entrar com o cão. Charlot parece compreender e afasta-se. De repente pára de rosto iluminado por uma ideia. A ideia foi meter o cão no fole das calças e voltar ao cabaret com um ar muito digno. O porteiro, assim, sem cão, deixa-o entrar, embora intrigado com tão rápida mudança… Ao passar por entre as mesas, Charlot puxa as calças acima, mas tem tanto azar que o rabo do cão lhe sai pela braguilha, muito teso… Já com muita gente a rir e a morrer de espanto, Charlot quer salvar a situação, tentando meter o rabo para dentro, com ar pudico e circunspecto de quem acaba de urinar. A mão esquerda metida no fole das calças faz festas ao cão para o sossegar. Foi pior! O cão, com as festas, desata a dar ao rabo, tornando ainda mais insólito o que se passa na braguilha… Tomado de pânico, Charlot corre para a orquestra e tenta esconder-se atrás do bombo. Consegue ali sossegar um pouco, mas logo tudo se agita porque o cão volta a dar ao rabo e a bater no bombo… pom!... pom!... pom!... A fita parte, acendem-se as luzes e Charlot regressa em passinhos curtos de botas cambadas ao cantinho da nossa memória.”
“Crónicas do meu vagar” de Camilo de Araújo Correia
|
|
|
Monólogo de Orfeu |
em 19/02/2012 16:43:48 (3146 leituras) |
Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços Te enrustiste em minha vida, e cada hora que passa É mais por que te amar a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada.
E sabes de uma coisa? Cada vez que o sofrimento vem, essa vontade de estar perto, se longe ou estar mais perto se perto Que é que eu sei? Este sentir-se fraco, o peito extravasado o mel correndo, essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu; Tudo isso que é bem capaz de confundir o espírito de um homem.
Nada disso tem importância Quando tu chegas com essa charla antiga, esse contentamento, esse corpo E me dizes essas coisas que me dão essa força, esse orgulho de rei.
Ah, minha Eurídice Meu verso, meu silêncio, minha música. Nunca fujas de mim. Sem ti, sou nada. Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada. Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível! A existência sem ti é como olhar para um relógio Só com o ponteiro dos minutos. Tu és a hora, és o que dá sentido E direção ao tempo, minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada Milhões amada! Ah! Criatura! Quem poderia pensar que Orfeu, Orfeu cujo violão é a vida da cidade E cuja fala, como o vento à flor Despetala as mulheres - que ele, Orfeu, Ficasse assim rendido aos teus encantos?
Mulata, pele escura, dente branco Vai teu caminho que eu vou te seguindo no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia Para os braços sem fim do teu amigo
Vai tua vida, pássaro contente Vai tua vida que estarei contigo.
|
|
|
Primeiro motivo da rosa |
em 12/02/2012 22:10:10 (7234 leituras) |
Vejo-te em seda e nácar, e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera, toda a Beleza em lágrimas por ser bela e ser frágil.
Meus olhos te ofereço: espelho para face que terás, no meu verso, quando, depois que passes, jamais ninguém te esqueça.
Então, de seda e nácar, toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero o rosto meu, nas lágrimas do teu orvalho… E frágil.
|
|
|
Alma a sangrar |
em 08/02/2012 14:58:20 (4763 leituras) |
Quem fez ao sapo o leito carmesim De rosas desfolhadas à noitinha? E quem vestiu de monja a andorinha, E perfumou as sombras do jardim?
Quem cinzelou estrelas no jasmim? Quem deu esses cabelos de rainha Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha Alma a sangrar? Quem me criou a mim?
Quem fez os homens e deu vida aos lobos? Santa Teresa em místicos arroubos? Os monstros? E os profetas? E o luar?
Quem nos deu asas para andar de rastros? Quem nos deu olhos para ver os astros - Sem nos dar braços para os alcançar?!...
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor" |
|
|
Vida e Obra |
em 02/02/2012 13:14:34 (17559 leituras) |
José Paulo Paes (Taquaritinga, 1926 — São Paulo, São Paulo, 9 de outubro de 1998) foi um poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta brasileiro. Tendo estudado química industrial na cidade de Curitiba (entre 1945 e 1948), durante muitos anos José Paulo trabalhou em laboratório farmacêutico. Todavia, paralelo a essa profissão jamais deixou de lado a literatura, cujo interesse foi lhe passado pelo avô que era livreiro, sendo que ainda nos tempos de aluno em Curitiba, já colaborava com a revista Joaquim, dirigida por Dalton Trevisan. Dessa temporada paranaense nasce seu livro de estréia, O aluno, de 1947, fortemente influenciado pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, o qual o respondeu com o conselho de evitar a imitação de vozes alheias. Em 1949, transfere-se para São Paulo, quando passa a colaborar com os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Tempo, Jornal de Notícias e Revista Brasiliense, aproximando-se de escritores modernistas como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Oswald de Andrade. Conhece também Dora, sua mulher por toda a vida a quem dedicou Cúmplices, de 1951, seu segundo livro. Por falta de um estudo melhor, sua obra foi comparada às dos poetas da Geração de 45, tendo inclusive participado de uma antologia na companhia de Haroldo de Campos e Décio Pignatari, quando eram chamados de “Novíssimos”, ou seja antes da eclosão da poesia concreta, à qual Zé Paulo soube com inteligência absorver, cujos resultados apareceram em seu livro Anatomias de 1967, apresentado justamente por Augusto de Campos. Mais que poesia concreta seu livro aproveitava um ritmo mais oswaldiano, como nos poemas “L'affaire Sardinha” (que fora publicado em 1962 na antologia Violão de Rua, da UNE) e o conhecido “Epitáfio para um Banqueiro” Por volta de 1963, Zé Paulo dá início a um trabalho editorial intenso à frente da Editora Cultrix, abandonando o trabalho como químico, dedicando-se a partir de então integralmente à literatura. Na companhia de Massaud Moisés foi organizador do Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, publicado pela Editora Cultriz em 1967. Em 1981,José Paulo aposenta-se como editor, dando início a um dos mais competentes trabalhos de tradução entre os escritores brasileiros, verteu para o português autores de diversas línguas, como Charles Dickens, Joseph Conrad, Pietro Aretino, Konstantínos Kaváfis, Laurence Sterne, W. H. Auden, William Carlos Williams, J.K. Huysmans, Paul Éluard, Hölderlin, Paladas de Alexandria, Edward Lear, Rilke, Seféris, Lewis Carroll, Ovídio, Níkos Kazantzákis, entre outros tantos. Seu reconhecimento na matéria resultou em sua nomeação como Diretor da oficina de tradução de poesia no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 1986 vem a público o livro Um por todos, reunião de seu trabalho até então, apresentado pelo crítico Alfredo Bosi. Vem ainda da década de 1980 seu interesse pela poesia infantil, com a qual alcançou grande êxito entre as crianças. Em 1989, Zé Paulo lança pela coleção Claro Enigma, organizada por Augusto Massi, o livro "A poesia está morta mas eu juro que não fui eu", título extraído do poema "Acima de qualquer suspeita". Na década de 1990 dá seqüência ao seu trabalho, lançando diversos livros de ensaios, poemas infantis, traduções e poesia, sendo um dos mais bem recebidos "Prosas seguidas de odes mínimas", livro no qual reflete um momento difícil de sua vida, quando tem uma perna amputada, como pode-se ler no poema "Ode à minha perna esquerda": Ao falecer em 1998, deixou inédito o livro "Socráticas" que veio a público em 2001.
Entrevista por Rodrigo de Souza Leão com José Paulo Paes jun/98
Jornal de Poesia - O que o poeta deve ter, de menino, para realizar o seu trabalho?
José Paulo Paes - Uma pequena objeção: poesia não é trabalho, é vocação. Para realizar a sua vocação, todo e qualquer poeta deve preservar o menino que todos trazemos dentro de nós mas que a vida dita prática nos obriga freqüentemente a renegar. O poeta é aquele que se recusa a renegá-lo. E, paradoxalmente, é esse menino que o torna o poeta o mais agudo dos adultos.
Jornal de Poesia - O que busca na sua infância para elaboração dos seus poemas?
JPP - Não creio que se trate de uma busca deliberada. A rigor, o poeta não escreve o poema: o poema é que se escreve através dele. Não que o poeta escreva às cegas, como um medium em transe. Mas a minha experiência me indica que o embrião do poema nasce por si, fruto de uma intuição ou inspiração. À artesania do poeta compete levar o embrião até o fruto final. As mais das vezes, tal embrião é feito de uma ou mais proteínas da infância. Todavia, só as descobrimos a posteriori, quando o poema se completa.
Jornal de Poesia - Como brincar de poesia sem ser infantil?
JPP - Sendo apenas e tão-somente poeta, tipo de homem que se orgulho de ser um adulto infantil ou uma criança adulta.
Jornal de Poesia - Qual a diferença entre brincar com palavras e brincar simplesmente? A poesia é uma brincadeira?
JPP - Você está levando ao pé da letra o que “Convite” diz. Nunca se deve levar um poema ao pé da letra. A poesia está sempre além da letra. O que eu quis dizer em “Convite” é quem se não se deleita, passiva ou ativamente, no convívio com as palavras, jamais conseguirá descobrir o que seja poesia. A quel é, no meu entender, a festa das palavras. Festa no sentido de alegria gratuita, em contraposição a utilização interesseira.
Jornal de Poesia - Como se fundem, num mesmo escritor, o ensaísta, o tradutor e o poeta?
JPP - Nenhum de nós é um só. Se o fôssemos, a vida seria insuportável. Já imaginou alguém que pudesse ser, por exemplo, funcionário público 24 horas por dia? Alguém que também também não fosse pai que brinca com os filhos, torcedor que sofre e se alegra pelo seu time, dançarino ou ouvinte de música? No meu caso, o poeta é o ponto de partida. Não acredito em poeta que não pense acerca do seu ofício: daí o ensaísta. Nem acredito em poeta que não aprenda com outros poetas, principalmente de outras línguas que não a sua própria: daí o tradutor.
Jornal de Poesia - Em “Acima de qualquer suspeita” o senhor jura que não matou a poesia. Quem a matou?
JPP - A poesia morre toda vez que se publica um mau poema. Por isso mesmo, só publico um poema quando acho que estou de mãos limpas. Se me enganei, perdão: mandem-me para a guilhotina.
Jornal de Poesia - Sobre os poetas que o influenciaram, alguns dos quais estão citados em “Acima de qualquer suspeita”. Fale um pouco de cada um.
JPP - Em vez de responder à sua pergunta, que exigiria todo um ensaio para ser respondida, prefiro remetê-lo à leitura dos poetas citados e, se ainda tiver interesse, da minha poesia. Aí você verá em que medida me influenciaram e em que medida lhes sublimei a influência numa dicção diferenciada.
Jornal de Poesia - Considera-se injustiçado, esquecido ou eclipsado por talentos duvidosos?
JPP - Não, pelo contrário. Acho que mereci mais atenção do que talvez merecesse.
Jornal de Poesia -. Em “Elegia holandesa” você utiliza a linguagem concreta. Que balanço faz desse movimento?
JPP - Não sou contabilista literário e não tenho a menor vocação para balanços -- a menos que seja balanço de samba. Tampouco creio que haja uma linguagem concreta. O que há são alguns procedimentos verbais e visuais desenvolvidos pela poesia concreta. Deles me vali, a uma certa altura, para levar avante o gosto pelo humor que sempre foi consubstancial à minha dicção de poeta.
Jornal de Poesia - Acredita em poesia sem linguagem poética?
JPP - Depende. Se por linguagem poética se entender linguagem enfeitada, repleta de metáforas que não sejam consubstanciais ao que o poeta intenta dizer, ela em nada adianta à poesia. Poesia, para mim, é a capacidade de iluminar a linguagem de todos os dias, aprofundando-lhe os significados, tornando-os de tal modo memoráveis que eles nunca mais consigam separar-se do modo por que foram ditos.
Jornal de Poesia - Como definiria poesia?
JPP - Não tenho nenhuma definição de bolso. Aliás, sou cético quanto às definições de bolso. Mas poderia dizer que, ao longo da minha experiência pessoal, deparei-me com três concepções de poesia. Os professores do curso primário me incutiram a idéia de que ela era um tipo especial de linguagem rimada, metrificada e enfeitada, para ser declamada, mão no peito, durante as festas escolares. Mas os versos metafísicos de Augusto dos Anjos, com que travei contacto aos l5 ou 16 anos, abalaram essa idéia primeva ao convencer-me, pela força do exemplo, de que poesia é a linguagem de descoberta do mundo e das perplexidades que ele podia suscitar em nós. Tanto o mundo fora como o mundo dentro de nós. Um pouco mais tarde, com os seus poemas desafetados que estilizavam a linguagem coloquial, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade me ensinaram que poesia é a redescoberta da novidade perene da vida nas pequenas/grandes coisas do dia a dia. Desde então, em maior ou menor grau, venho tentando ser fiel, em quanto escrevo, a essas duas últimas concepções. Meu ideal poético é a desafetação, a concisão e a intensidade postas todas a serviço da minha própria visão de mundo.
Jornal de Poesia - “Lisboa: aventuras” é um poema-piada. Em que condições o escreveu?
JPP - Certa vertente da geração de 45 via com maus olhos o poema-piada. Pessoalmente, acho que o humor é um dos ingredientes de base do sentimento poético. Esse poema eu o escrevi por ocasião de minha primeira viagem a Portugal, quando me diverti com as discrepâncias vocabulares entre o falar brasileiro e o lusitano. Explorei caricaturalmente essas discrepâncias sob a égide alusiva da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que exprimiu emblematicamente, para além das similitudes de origem, a diferencialidade de base entre o sentir brasileiro e o português.
Jornal de Poesia - Seu poema “O engenheiro” é um exemplo de concisão. Como enriquecer o poema, cortando, lapidando, buscando a palavra exata?
JPP - Acho que é uma questão de temperamento. Sempre tive, da poesia, uma concepção epigramática. O multum in parvo, o muito no pouco. Quanto menos palavras se use para dizer algo, maiores as possibilidades de dizê-lo melhor. Nesse poema especificamente, através de umas poucas notações, tentei exprimir as minhas esperanças juvenis (escrevi-o aos 19 ou 20 anos) de um mundo construído com limpeza e solidariedade pela inteligência humana que fosse mais justo do que o mundo injusto em que eu próprio nascera.
Jornal de Poesia - Em “O poeta e seu mestre”, o poeta veste-se de mestre? É preciso ser um pouco outro poeta para ser um grande poeta também?
JPP - Ao contrário do que você diz, nesse poema eu sou apenas o aprendiz da humilde grandeza humana de Carlitos. “O poeta e seu mestre” apareceu no meu livro de estréia cujo título era O aluno. Por si só, tal título responde à sua segunda pergunta. O discípulo precisa de um mestre para deixar de ser discípulo e adquirir voz própria. A esse voz própria sempre aspirei. Mas nunca ambicionei ser um grande poeta. Ser poeta tout court já é para mim dignidade bastante.
Jornal de Poesia - “Canção do afogado” é belíssima. Não acha que a poesia está viva e muito?
JPP - Esse poema é também um poema de juventude, com evidente influência bandeiriana, desde logo declarada no vocativo “Maninha” que se repete ao longo dele. Concordo em que a poesia está sempre viva, mesmo porque é uma forma essencial de experiência humana, que só poderia desaparecer com a extinção da nossa espécie. Quanto a estar “muito viva”, não sei dizer. Contento-me em saber que não morreu.
Jornal de Poesia - No soneto “O aluno”, o senhor mostra mestria. Qual a semelhança entre o poeta e um aluno?
JPP - Respondi implicitamente a essa pergunta mais acima, no item 4. Pelos poemas que você cita, vejo que, através da Internet, teve acesso apenas a poemas do meu livro de estréia, O aluno, publicado em 1947, e a A poesia está morta mais juro que não fui eu, de 1988. Mas depois de O aluno, e antes e depois de A poesia está morta mas juro que não fui eu, publiquei várias outras coletâneas de poemas. Nesse sentido, atrevo-me a recomendar-lhe ler os meus livros de poemas, em vez de procurá-los apenas na Internet. Não escrevo para internautas; escrevo para leitores de livros. Se me permite uma sugestão, por que não lê Prosas seguidas de Odes mínimas, publicado pela Cia. das Letras e ainda hoje encontrável nas boas livrarias? Através dele, você e outros freqüentadores do endereço eletrônico do seu “Jornal de Poesia” poderão ter uma idéia mais cabal da natureza e dos propósitos da minha atividade poética.
Fontes: wikipédia e Jornal de Poeisa. |
|
|
TERMO DE RESPONSABILIDADE |
em 31/01/2012 19:53:32 (2916 leituras) |
mais nada a dizer: só o vício de roer os ossos do ofício já nenhum estandarte à mão enfim a tripa feita coração silêncio por dentro sol de graça o resto literatura às traças! |
|
|
CANÇÃO DO ADOLESCENTE |
em 31/01/2012 19:44:25 (5142 leituras) |
Se mais bem olhardes notareis que as rugas umas são postiças outras literárias. Notareis ainda o que mais escondo: a descontinuidade do meu corpo híbrido. Quando corto a rua para me ocultar as mulheres riem (sempre tão agudas!) do meu pobre corpo. Que força macabra misturou pedaços de criança e homem para me criar? Se quereis salvar-me desta anatomia, batizai-me depressa com as inefáveis as assustadoras águas do mundo. |
|
|
Capitães da Areia - excerto |
em 27/01/2012 23:20:14 (5775 leituras) |
Logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava logo uma idéia ruim de Sem-Pernas. Porque ele logo botava um apelido, ria de um gesto, de uma frase do novato.Ridicularizava tudo era dos que mais brigavam.Tinha mesmo uma fama de malvado.Muitos do grupo não gostavam dele, mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele era um "sujeito bom". No mais fundo de seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. No rosto do que rezava ia uma exaltação, qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem-Pernas pensou que fosse alegria ou felicidade. Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que não sabia definir. E pensou, contraindo seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca tenha pensado em rezar, em se voltar para o céu.O que ele queria era fugir da sua angústia, que estrangulava. Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. No bando,não tardou a se destacar porque sabia como ninguém como afetar a dor. |
|
|
Criança Desconhecida |
em 24/01/2012 14:17:47 (3648 leituras) |
por Alberto Caeiro Criança desconhecida e suja brincando à minha porta, Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos. Acho-te graça por nunca te ter visto antes, E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança, Nem aqui vinhas. Brinca na poeira, brinca! Aprecio a tua presença só com os olhos. Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la, Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez, E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar. O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas. Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão, Sabes que te cabe na mão. Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior? Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta. |
|
|
Da nossa semelhança |
em 18/01/2012 16:52:34 (4106 leituras) |
(Ricardo Reis)
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.
Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para, esquecer o estio.
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
|
|
|
Datilografia |
em 13/01/2012 17:57:56 (2573 leituras) |
Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano, Firmo o projeto, aqui isolado, Remoto até de quem eu sou. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tique-taque estalado das máquinas de escrever. Que náusea da vida! Que abjeção esta regularidade! Que sono este ser assim! Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros (Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância), Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho, Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve, Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes. Outrora. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tique-taque estalado das máquinas de escrever. Temos todos duas vidas: A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, Que é a prática, a útil, Aquela em que acabam por nos meter num caixão. Na outra não há caixões, nem mortes, Há só ilustrações de infância: Grandes livros coloridos, para ver mas não ler; Grandes páginas de cores para recordar mais tarde. Na outra somos nós, Na outra vivemos; Nesta morremos, que é o que viver quer dizer; Neste momento, pela náusea, vivo na outra ... Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever
Fernando Pessoa ( Álvaro de Campos)
|
|
|
Saudade |
em 04/01/2012 22:50:28 (9886 leituras) |
Saudade
Guarda estes versos que escrevi chorando Como um alívio à minha saudade, Como um dever de meu amor; e quando Houver em ti um eco de saudade, Beija estes versos que escrevi chorando. Único em meio das paixões vulgares, Fui a teus pés queimar minh’alma ansiosa, Como se queima o óleo ante os altares; Tive a paixão indômita e fogosa, Única em meio das paixões vulgares. Cheio de amor, vazio de esperança, Dei para ti os meus primeiros passos; Minha ilusão fez-me, talvez, criança; E pretendi dormir aos teus abraços, Cheio de amor, vazio de esperança. Refugiado à sombra do mistério, Pude cantar meu hino doloroso; E o mundo ouviu o som doce ou funéreo Sem conhecer o coração ansioso, Refugiado à sombra do mistério, Mas eu que posso contra a sorte esquiva? Vejo que em teus olhares de princesa Transluz uma alma ardente e compassiva, Capaz de reanimar minha incerteza; Mas eu que posso contra a sorte esquiva? Como um réu indefeso e abandonado, Fatalidade, curvo-me ao teu gesto; E se a perseguição me tem cansado, Embora, escutarei o teu aresto, Como um réu indefeso e abandonado. Embora fujas aos meus olhos tristes, Minh’alma irá saudosa, enamorada, Acercar-se de ti lá onde existes; Ouvirás minha lira apaixonada, Embora fujas aos meus olhos tristes. Talvez um dia meu amor se extinga, Como fogo de Vestal mal cuidado, Que sem o zelo da Vestal não vinga; Na ausência e no silêncio condenado, Talvez um dia meu amor se extinga. Então não busques reavivar a chama, Evoca apenas a lembrança casta Do fundo amor daquele que não ama; Esta consolação apenas basta; Então não busque reavivar a chama. Guarda estes versos que escrevi chorando, Como um alívio à minha saudade, Como um dever do meu amor; e quando Houver em ti um eco de saudade, Beija estes versos que escrevi chorando.
Machado de Assis - do livro Crisálidas
|
|
|
Depois do jantar |
em 18/12/2011 20:45:02 (3877 leituras) |
Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
— Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
— Como?
— Já disse. Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
— Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.
Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54 |
|
|
Uma estranha realidade (excerto) |
em 15/12/2011 14:34:50 (2861 leituras) |
- Sabe alguma coisa do mundo que o rodeia? — perguntou. - Sei muitas coisas diferentes — respondi. - Quero dizer, sente o mundo em volta de você? - Sinto tanto do mundo em volta de mim quanto posso. - Isso não basta. Tem de sentir tudo, senão o mundo perde o sentido. |
|
|
O álbum de Pagu |
em 07/12/2011 13:59:42 (3340 leituras) |
O álbum de Pagu - Nascimento, vida, Paixão e morte.
Nascimento...
Além...muito além do Martinelli... martinellamente escancara as cento e cinquenta e quatro guelas...
Era filha da lua... Era filha do sol...
Da lua que aparece serena e suave no céu , amamentando eternamente o Cavaleiro de S. Jorge...Barrigudinha
Do pai sol, amado D. decorador de quadros futuristas... O pai dela gosta de bolinar nos outros... E Pagu nasceu...
de olhos terrivelmente molengos e boca de cheramy...
E o guerreiro cantou. E Freud desejou...
Mandioca braba faz mal. Pagu era selvagem Inteligente E besta...
Comeu da mandioca braba... E fez mal.
Pagu / 1929 |
|
|
As Coisas |
em 28/11/2011 13:25:50 (3643 leituras) |
A bengala, as moedas, o chaveiro, A dócil fechadura, as tardias Notas que não lerão os poucos dias Que me restam, os naipes e o tabuleiro. Um livro e em suas páginas a seca Violeta, monumento de uma tarde Sem dúvida inesquecível e já esquecida, O rubro espelho ocidental em que arde Uma ilusória aurora. Quantas coisas, Limas, umbrais, atlas, taças, cravos, Nos servem como tácitos escravos, Cegas e estranhamente sigilosas! Durarão para além de nosso esquecimento; Nunca saberão que nos fomos num momento.
*O texto acima foi extraído do livro "Elogio da Sombra", Editora Globo/MEC - Porto Alegre, 1971, pág. 24 (tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques; revisão da tradução: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz). |
|
|
Elogio da sombra |
em 27/11/2011 13:48:39 (2534 leituras) |
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser La Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul. Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade. Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno. Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas. Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou.
|
|
|
Um Apólogo |
em 19/11/2011 20:06:40 (3221 leituras) |
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59
|
|
|
Bifurcados de "Habitar o tempo" |
em 17/11/2011 17:13:25 (5161 leituras) |
Viver seu tempo: para o que ir viver num deserto literal ou de alpendres; em ermos, que não distraiam de viver a agulha de um só instante, plenamente. Exceç~so aos desertos: o da Caatinga, que não libera o homem, como outros, para que ele imagine ouvir-se mundos ouvindo-se a máquina bicho do corpo; para que, só e entre coisas de vazio, de vidro igual ao do que não existe, o homem, como lhe sucede num deserto, imagine sentir outras coisas ao sentir-se; embora um deserto, a Caatinga atrai, ata a imaginação; não a deixa livre, para deixar-se, ser; a Caatinga a fere e a ideia-fixa: com seu vazio riste. . Ele ocorre vazio, o tal tempo ao vivo; e, como além de vazio, transparente, habitar o invisível dá em habitar-se: a ermida corpo, no deserto ou alpendre.
Desertos onde ir ver para habitar-se, mas que logo surgem como viciosamente a quem foi ir ao da Caatinga nordestina: que não se quer deserto, reage a dentes.
João Cabral de Melo Neto, em; "A educação pela Pedra e outros poemas" |
|
|
Os Três Mal-Amados |
em 15/11/2011 17:00:00 (3080 leituras) |
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59. |
|
|
O pássaro cativo |
em 09/11/2011 14:11:35 (3407 leituras) |
Armas, num galho de árvore, o alçapão E, em breve, uma avezinha descuidada, Batendo as asas cai na escravidão. Dás-lhe então, por esplêndida morada, Gaiola dourada;
Dás-lhe alpiste, e água fresca, e ovos e tudo. Por que é que, tendo tudo, há de ficar O passarinho mudo, Arrepiado e triste sem cantar? É que, criança, os pássaros não falam.
Só gorjeando a sua dor exalam, Sem que os homens os possam entender; Se os pássaros falassem, Talvez os teus ouvidos escutassem Este cativo pássaro dizer:
"Não quero o teu alpiste! Gosto mais do alimento que procuro Na mata livre em que voar me viste; Tenho água fresca num recanto escuro
Da selva em que nasci; Da mata entre os verdores, Tenho frutos e flores Sem precisar de ti!
Não quero a tua esplêndida gaiola! Pois nenhuma riqueza me consola, De haver perdido aquilo que perdi... Prefiro o ninho humilde construído
De folhas secas, plácido, escondido. Solta-me ao vento e ao sol! Com que direito à escravidão me obrigas? Quero saudar as pombas do arrebol! Quero, ao cair da tarde, Entoar minhas tristíssimas cantigas! Por que me prendes? Solta-me, covarde! Deus me deu por gaiola a imensidade! Não me roubes a minha liberdade... Quero voar! Voar!
Estas cousas o pássaro diria, Se pudesse falar, E a tua alma, criança, tremeria, Vendo tanta aflição, E a tua mão tremendo lhe abriria A porta da prisão... |
|
|
Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio |
em 02/11/2011 22:10:00 (11143 leituras) |
Canção I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
Canção II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.
Canção III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
Canção IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.
Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana
Não essa que te louva
A cada verso
Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.
Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E por isso talvez
Te aborreças de mim.
Canção V
Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada No entendimento de tua mãe e irmã.
A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado Porque é palavra de luta e despudor. E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor
Canção VI
Três luas Dionísio Não te vejo Três luas percorro a casa minha E entre o pátio e a figueira Converso e passeio com meus cães E fingindo altivez Digo a minha estrela, essa que é inteira prata dez mil sóis
Sírios pressagam que Ariana pode estar sozinha sem Dionísio Sem riqueza ou fama porque há dentro dela um som maior Amor que se alimenta de uma chama Movediça e lunada Mais luzente alta quando tu Dionísio não estás
Três luas, Dionísio, não te vejo Três luas percorro a casa minha E entre o pátio e a figueira Converso e passeio com meus cães E fingindo altivez Digo a minha estrela, essa que é inteira prata dez mil sóis
Três luas, Dionísio, não te vejo
Canção VII
É licito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem
Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloqüência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa,
Um ciúme venenoso e derradeiro.
Canção VIII
Se Clódia desprezou Catulo E teve Rufus, Quintius, Gelius, Inacius e Ravidus Tu podes muito bem, Dionísio, Ter mais cinco mulheres E desprezar Ariana Que é centelha e âncora E refrescar tuas noites Com teus amores breves. Ariana e Catulo, luxuriantes Pretendem eternidade, e a coisa breve A alma dos poetas não inflama. Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta Que seja sempre terra o que é celeste E que terrestre não seja o que é só terra.
Canção IX
Tenho meditado e sofrido Irmanada com esse corpo E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não me deram Esplêndida beleza Deram-me a garganta Esplandecida: palavra de ouro A canção imantada O sumarento gozo de cantar Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto. Tendo-me a mim Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas Ariana suspensa nas suas águas.
Canção X
Se todas as tuas noites fossem minhas Eu te daria, Dionísio, a cada dia Uma pequena caixa de palavras Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias Compor incendiado a tua canção E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus Eu te daria, Dionísio, a cada noite O meu tempo lunar, transfigurado e rubro E agudo se faria o gozo teu.
[Júbilo memória noviciado da paixão (1974)]
[in Poesia: 1959-1979/ Hilda hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.] |
|
|
Frase |
em 23/10/2011 06:04:41 (4011 leituras) |
...E que fique muito mal explicado. Não faço força para ser entendido. Quem faz sentido é soldado...
(Mário Quintana) |
|
|
Canção da Parada do Lucas |
em 20/10/2011 08:21:51 (3095 leituras) |
Parada do Lucas - O trem não parou.
Ah, se o trem parasse Minha alma incendida Pediria à Noite Dois seios intactos.
Parada do Lucas - O trem não parou.
Ah, se o trem parasse Eu iria aos mangues Dormir na escureza Das águas defuntas.
Parada do Lucas - O trem não parou.
Nada aconteceu Senão a lembrança Do crime espantoso Que o tempo engoliu. |
|
|
Belo Belo II |
em 20/10/2011 08:18:48 (2324 leituras) |
Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto Quero quero Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero.
|
|
|
Neologismo |
em 16/10/2011 11:19:48 (19934 leituras) |
"Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora" |
|
|
José |
em 11/10/2011 20:21:49 (2665 leituras) |
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, Você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, Você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja do galope, você marcha, José! José, para onde? |
|
|
Eu fiz... |
em 11/10/2011 13:47:35 (3640 leituras) |
Eu fiz um acordo com o tempo... Nem ele me persegue, nem eu fujo dele... Qualquer dia a gente se encontra e, Dessa forma, vou vivendo Intensamente cada momento... |
|
|
As tias |
em 10/10/2011 17:06:32 (4056 leituras) |
Sempre estão nos acusando de alguma coisa, Com o dedo em riste: "Meninos, não façam isto! Não presta deixar os sapatos virados no chão com a sola para cima, Nem nunca puxar dessa maneira as tranças da Adalgisa!" No entanto não sabem Que as crianças no fundo gostam disso E que a violência é uma das formas mais deliciosas do amor... A gente grande só tem ridículas briguinhas conjugais Apenas para poderem se reconciliar depois! Ai de nós, de nossa vida com elas... As nossas intrometidas tias são eternas e de todos os sexos! |
|
|
Bucólica |
em 10/10/2011 16:57:02 (2682 leituras) |
Na solidão da noite uma vaca, uma abençoada vaca muge: o seu mugido é um rio de veludo morno, voz de mãe e de amante: quente e cariciosa... - à mesma voz que tu, antes de me abandonares, Tinhas sempre comigo! |
|
|
Vida e Obra |
em 09/10/2011 15:09:07 (6227 leituras) |
Mário Lago.
Ele nasceu na histórica Rua do Resende, no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 1911, filho único de Antônio Lago, um jovem compositor, maestro e violinista de sucesso, de uma família de músicos; e de Francisca Maria Vicência Croccia Lago, jovem descendente de calabreses, oriunda também de família de músicos.
Mário Lago foi criado no bairro da Lapa, no Rio. Formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. Chegou a trabalhar como jornalista e estatístico, mas por pouco tempo. Desde criança, a arte exerceu absoluto fascínio sobre ele; uma atração igualada apenas pela política, pela boemia e pela família. A todas elas se dedicou com igual empenho e paixão.
Falecido em 30 de maio de 2002, Mario Lago foi casado por quase 50 anos com Zeli Cordeiro Lago. O ator deixou cinco filhos (Vanda, Antonio Henrique, Graça, Luiz Carlos – falecido em 2010 – e Mário).
Breve currículo
Autor - A estréia de Mário Lago aconteceu em março de 33, como autor teatral. A maior parte de suas peças foi escrita nas décadas de 40 e de 50, para o chamado Teatro de Revista e para atores como Araci Côrtes, Elza Gomes, André Villon, Oscarito e Armando Nascimento. No início dos anos 1970, escreveu a sua última peça teatral: "Foru Quatro Tiradentes na Conjuração Baiana", sobre a Revolução dos Alfaiates, na Bahia. Proibida pela Censura, teve uma única leitura pública, com participação do próprio Mário, ao lado dos atores Oswaldo Loureiro, Wanda Lacerda, Francisco Milani e Milton Gonçalves, entre outros.
Também escreveu roteiros e argumentos para o cinema, entre eles, o do filme Banana da Terra (1939), em parceria com João de Barro, o Braguinha.
Compositor - Na música, estreou em 1936, com a marchinha Menina, eu sei de uma coisa, primeira parceria com Custódio Mesquita. O sucesso viria dois anos depois, com Nada além, da mesma dupla, na gravação de Orlando Silva. Sozinho, ou em parceria com nomes como Ataulfo Alves, Chocolate, Roberto Roberti, Roberto Martins, Benedito Lacerda, Elton Medeiros e João Nogueira, Mário compôs sucessos como Amélia, Atire a primeira pedra, Aurora, Dá-me tuas mãos, Enquanto houver saudade, Fracasso, Será e Número um.
Ator - Em 1942, estreou como ator de teatro, onde criou personagens de grande repercussão, como o Aprígio, no clássico O Beijo no asfalto, de Nélson Rodrigues. No cinema, atuou em alguns dos principais filmes brasileiros, como O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, Os Herdeiros, de Cacá Diegues, O Bravo guerreiro, de Gustavo Dahl, e Terra em transe, de Glauber Rocha.
A popularização do ator veio com as novelas, a partir de 1966, destacando-se suas atuações em O Casarão, de Lauro César Muniz, Nina, de Walter George Durst, e Dancing Days, de Gilberto Braga, trabalhos que lhe renderam dois prêmios de Melhor Ator da Associação Paulista de Críticos de Artes e um Golfinho de Ouro.
Seus últimos papéis na TV foram a minissérie Hilda Furacão (1998), de Glória Perez, interpretando o velho boêmio Olavo; o especial Enquanto a Noite não Chega, em dezembro de 2000, e uma participação especial na novela O Clone, de Glória Perez, revivendo o personagem Dr. Molina, de Barriga de Aluguel, da mesma autora. Mário Lago gravou a novela no final de 2001, seis meses antes de falecer.
Radialista - No rádio, foi ator, autor de novelas, produtor e diretor. Seu trabalho mais conhecido foi a série Presídio de Mulheres, que escreveu para a Rádio Nacional e que liderou a audiência da emissora durante cinco anos seguidos. Em 1964, com o golpe militar, Mário Lago foi demitido da Nacional.
Escritor – Autor de 11 livros, Mário estreou com a coletânea de poemas políticos O Povo Escreve a História nas Paredes. Poeta e escritor - Sua produção literária inclui os títulos Chico Nunes das Alagoas, Na Rolança do Tempo, Bagaço de Beira Estrada, Rabo da Noite, Meia Porção de Sarapatel, Manuscrito do Heróico Empregadinho de Bordel, Segredos de Família e o infantil Monstrinho Medonhento, seu maior sucesso editorial. Deixou um livro inconcluso, dedicado às memórias das boas “molecagens” que praticou ao longo da vida.
Militância - Desde jovem, Mário se dividiria entre o trabalho artístico, uma intensa atividade política e a boemia. A participação política lhe rendeu seis prisões, a primeira em janeiro de 1932, e a demissão da Rádio Nacional, em 1964, o que resultou em quase um ano de desemprego. Na época do golpe militar, era procurador do Sindicato dos Radialistas do Rio de Janeiro, um dos mais combativos do país.
Mário participou de várias campanhas em defesa dos direitos humanos e do patrimônio do país, como O Petróleo é Nosso, Contra as Armas Nucleares, Campanha da Paz (durante a II Guerra), Anistia (décadas de 40 e 70), Contra a Censura, Diretas Já, Pela Condenação dos Assassinos de Chico Mendes etc. No século XX, não há registro de movimento político do gênero que não tenha tido o apoio e a participação direta de Mário Lago. Curiosamente, jamais foi filiado a qualquer partido. A partir de 1989, passou a dar apoio e militância ao PT, mas sem vínculo de filiação.
Cronologia:
26/ 11/ 1911 – Mário Lago nasce, na Rua do Resende, no Rio, filho do maestro e violinista Antônio Lago e de Francisca Maria Vicencia Croccia Lago.
1918 – É internado na Santa Casa, como uma das primeiras vítimas no Brasil da gripe espanhola. Começa a estudar piano com Lucila Villa-Lobos, mulher do maestro Heitor Villa-Lobos.
1920 – Iniciado o desmonte do Morro do Castelo, local que se destinaria às exposições do 1º Centenário da Independência do Brasil e à Exposição Internacional. Mário acompanha toda a obra levado pelo avô, o anarquista Giuseppe Croccia, defensor de ideias desenvolvimentistas.
1923 – Entra para o Colégio Pedro II, tradicional colégio carioca, que, naquele mesmo ano admitiu, pela primeira vez, a presença de mulheres: a professora Maria da Glória Moss, de Física, e uma aluna. Mário lidera uma greve de estudantes contra o uso obrigatório de canecas; é o começo de sua militância política.
1924 – Desiste do piano, pois o estudo lhe exige muita disciplina.
1926 – Publica seu primeiro poema, "Revelação", na revista "Fon-Fon". Começa a trabalhar no jornal "O Radical".
1930 – Entra para a faculdade de Direito da Universidade do Brasil, onde conhece a filosofia comunista. Integra o Socorro Vermelho, grupo que presta assistência a presos políticos.
1932 – Em 21 de janeiro, já na Juventude Comunista, é preso pela primeira vez. Após um comício na porta da fábrica de tecidos Mavilis, da América Fabril. Adota o codinome de Pádua Correia, uma homenagem ao nome com o qual sua mãe queria batizá-lo – Mário de Pádua Jovita Correia do Lago – e que acabou encurtado para Mário Lago, por decisão pai. Ao ser solto, é conduzido por policiais até a fronteira com o Uruguai e ameaçado de morte. Passa dois meses como clandestino no Uruguai, e retorna ao Brasil. Na volta ao Brasil, entra para o Cordão da Bola Preta, um dos mais populares do Rio. Mário carregava a flâmula da Bola, para o qual fez o hino "Braço é braço", em parceria com Nelson Barbosa.
1933 – Em fevereiro, estreia como autor de Teatro de Revista, com a peça "Flores à Cunha", um sucesso imediato. Termina a faculdade de Direito e estagia em um escritório de advogados por três meses; desiste da profissão.
1935 – Estreia como compositor com a marcha de Carnaval "Menina, Eu Sei de Uma Coisa", primeira parceria com Custódio Mesquita. A música é gravada por Mário Reis, no ano seguinte.
1936 – Mário e Custódio escrevem a peça "Sambista da Cinelândia", que alcança 200 apresentações. Lago trabalha como redator-chefe do Departamento de Estatística do Estado do Rio de Janeiro Chega a ser nomeado membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas não toma posse.
1938 – A música "Nada Além", parceria com Custódio Mesquita, torna-se sucesso na voz de Orlando Silva.
1939 – Escreve, em parceria com o compositor e amigo João de Barro, o Braguinha, argumento e roteiro do filme "Banana da Terra", no qual Carmem Miranda reinventa o traje de baiana e canta "O que é que a baiana tem?", do até então desconhecido Dorival Caymmi. O sucesso é tão grande que Carmem adota a baiana estilizada e, meses depois, segue para Hollywood.
1940 – Uma de suas mais famosas composições, em parceria com Roberto Roberti, "Aurora" é gravada pela dupla Joel e Gaúcho. A música tem repercussão internacional na interpretação de Carmem Miranda. O filme Segure o Fantasma (Hold that ghost), da dupla Abbot & Costello, inclui versão em inglês da marchinha apresentada pelas Andrew Sisters.
1942 – O diretor teatral Joracy Camargo convida Lago a subir ao palco no lugar do galã principal da peça "O Sábio". Assim, por acaso, Mário Lago torna-se ator. Compõe, em parceria com Ataulfo Alves, o samba "Ai, que Saudade da Amélia", um dos maiores sucessos da música brasileira. Amélia acaba virando verbete de dicionário, sinônimo de mulher submissa, uma interpretação rechaçada pelo autor, que considerava a personagem muito mais como um sinônimo de solidariedade.
1944 – Entra para o rádio, a convite de Oduvaldo Vianna. Trabalha como autor, ator, diretor e apresentador na recém-criada Radio Pan-Americana, de São Paulo.
1945 – Volta ao Rio e é contratado pela Rádio Nacional.
1947 – Em 23 de março, conhece Zeli Cordeiro, filha do dirigente comunista Henrique Cordeiro, em um comício do Partido Comunista no Largo da Carioca, no Rio. Em novembro, os dois se casam. Estreia como ator de cinema no filme "Asas do Brasil", de Raul Roulien. A música "Atire a Primeira Pedra", parceria com Ataulfo Alves, é gravada e faz enorme sucesso.
1948 – Por questões políticas, é demitido pela primeira vez da Rádio Nacional. Começa a trabalhar na rádio Mayrink Veiga. Publica o primeiro livro - "O povo escreve a história nas paredes" -, de poemas políticos, que reforça a campanha "O nosso petróleo é nosso" (mais tarde, a palavra de ordem seria resumida para "O petróleo é nosso"). Nasce o primeiro filho, Antonio Henrique.
1949 – É preso na redação do jornal clandestino "A Classe Operária" e afastado da rádio Mayrink Veiga. Em julho, começa a trabalhar na rádio Bandeirantes, em São Paulo, a convite de Dias Gomes.
1950 – Com o PCB na ilegalidade, é candidato a deputado estadual pelo PST (Partido Social Trabalhista) paulista, como candidato de Luiz Carlos Prestes. Durante a campanha, faz um discurso inflamado, no qual chama o governador de São Paulo, Ademar de Barros, de calhorda. Acaba demitido, pois Ademar é dono da rádio Bandeirantes. Volta ao Rio e à Rádio Nacional.
1951 – Ao lado de Paulo Gracindo, é um dos narradores da famosa novela cubana "O Direito de Nascer". Começa a escrever o seriado "Presídio de Mulheres", que vai ao ar diariamente, durante cinco anos.
1954 – Estreia como ator de TV no programa "Câmera Um", na TV Rio. Na emissora, atua ainda no Teatro Moinho de Ouro. Mais tarde, participa do elenco do Grande Teatro Tupi.
1962 – Integra a diretoria do Sindicato dos Radialistas do Rio de Janeiro, um dos mais combativos à época.
1964 – Em abril, é preso em sua casa, em Copacabana, no Rio, pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e levado para a ilha das Flores. É transferido para o presídio Fernandes Viana, na Frei Caneca, e fica preso por 58 dias. É demitido da Rádio Nacional pelo Ato Institucional n° 1, junto com mais 35 colegas da emissora. Passa por situação financeira difícil. Para sustentar a família, começa a trabalhar em fotonovelas.
1966 – Estreia como ator na TV Globo, vivendo um coronel nazista, na novela "O Sheik de Agadir", da cubana Gloria Magadan. Anticomunista ferrenha, a autora tentou vetar o nome de Mário. Foi derrotada pela insistência do diretor da novela, Henrique Martins, e do diretor da emissora, Walter Clark. Trabalha no filme "O Padre e a Moça", de Joaquim Pedro, abrindo uma sequência de atuações marcantes no cinema.
1967 – Faz o papel de um oficial do Exército no filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
1968 – Adapta, para a TV Tupi de São Paulo, o seriado "Presídio de Mulheres". Atua no filme "Bravo Guerreiro", de Gustavo Dahl, e na peça "Os Inconfidentes", que tem direção de Flávio Rangel, poesia de Cecília Meireles e música de Chico Buarque. No dia 14 de dezembro, um dia após a edição do AI-5, é preso antes de entrar em cena, na peça "Inspetor, Venha Comigo". É libertado no dia 31 de dezembro.
1969 – Em 25 de fevereiro, é preso por ter feito a tradução de um livro sobre a Guerra do Vietnã. Volta à prisão meses depois, quando da visita do senador norte-americano Nelson Rockfeller ao Brasil.
1973 – Atua no filme "São Bernardo", de Leon Hirszman.
1974 – Escreve a peça "Foru Quatro Tiradente na Conjuração Mineira", que é proibida pela Censura.
1975 – Intensifica a sua produção como memorialista. Publica a obra de pesquisa folclórica "Chico Nunes das Alagoas".
1976 – Por sua atuação como o personagem Atílio, na novela "O Casarão", de Lauro César Muniz, recebe o prêmio de melhor ator pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Publica o livro autobiográfico "Na rolança do tempo". Inventada por Mário, a palavra rolança também vira verbete de dicionário.
1977 – Lança o livro "Bagaço de Beira-Estrada", sequência de "Na rolança ...". Com o personagem Antônio Galba, na novela "Nina", de Walter George Durst, recebe o prêmio de melhor ator da Associação Paulista de Críticos de Arte.
1978 – Participa da novela "Dancing Days", de Gilberto Braga. Sua atuação como Alberico lhe rende o Golfinho de Ouro, prêmio do Museu da Imagem e do Som (MIS). Volta aos palcos, contando casos e histórias, em um espetáculo ao lado do compositor João Nogueira.
1980 – Mário Lago e 35 companheiros são anistiados (alguns "in memorian") e reintegrados à Rádio Nacional.
1984 – Escreve o livro infantil "O Monstrinho Medonhento", seu maior sucesso editorial.
1989 – No segundo turno da campanha para a Presidência da República, declara apoio a Luiz Inácio Lula da Silva e passa a militar no PT.
1991 – Para comemorar seus 80 anos, cria e protagoniza o show "Mário Lago - Causos e canções", dirigido pelo filho caçula e xará Mário Lago Filho. Por quase dez anos, percorreu inúmeras cidades brasileiras. Nas homenagens, é lançado o disco "Nada Além"; recebe o título de Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro, e lança o livro "Segredos de família", uma coletânea de poesias, crônicas e fotografias dele e dos filhos. Volta a compor – sozinho ou em parcerias com o filho, com João Nogueira e com Elton Medeiros.
1997 – Em 10 de junho, quatro meses antes de completarem 50 anos de casamento, morre a sua mulher, Zeli.
2000 – Em dezembro, participa do especial de TV "Enquanto a noite não vem", conto de Josué Guimarães, adaptado por Emanuel Carneiro. Sai do hospital direto para o estúdio, acompanhado de seu médico, Léo Benjamin.
2001 – Em novembro, grava uma participação especial na novela "O clone", revivendo o personagem Dr. Molina, da novela "Barriga de aluguel", da mesma autora, Gloria Perez. Em 26 de novembro, a Rua Júlio de Castilho, em Copacabana, é fechada para homenagear o seu morador mais ilustre nos seus 90 anos. Lago diz estar "torcendo para chegar aos 100 anos". O então candidato Luiz Inácio Lula da Silva interrompe a campanha para participar das homenagens ao amigo e companheiro.
2002 – Em 16 de janeiro, recebe em sua casa, das mãos do então presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves, a medalha do Mérito Legislativo. Uma delegação pluripartidária participa da cerimônia.
30 de maio de 2002 – No início da noite, Mário Lago morre em casa, como queria, junto dos filhos e netos, depois de três meses de internação domiciliar. Foi velado no Teatro João Caetano, onde estreou como autor, numa despedida regada a samba e cerveja, de acordo com a antiga tradição da boemia.
"Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo; nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia, a gente se encontra".
*Fonte: http://www.mariolago.com.br
|
|
|
Das Idéias |
em 08/10/2011 20:28:51 (4096 leituras) |
Qualquer idéia que te agrade, Por isso mesmo... é tua. O autor nada mais fez que vestir a verdade Que dentro em ti se achava inteiramente nua... |
|
|
Auto-Retrato |
em 08/10/2011 18:17:53 (3723 leituras) |
Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional. |
|
|
Pneumotórax |
em 08/10/2011 18:12:49 (4576 leituras) |
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. |
|
|
Se um dia a juventude voltasse |
em 08/10/2011 14:28:06 (3423 leituras) |
se um dia a juventude voltasse na pele das serpentes atravessaria toda a memória com a língua em teus cabelos dormiria no sossego da noite transformada em pássaro de lume cortante como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida
sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras porque só aquele que nada possui e tudo partilhou pode devassar a noite doutros corpos inocentes sem se ferir no esplendor breve do amor
depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos mas aconteça o que tem de acontecer não estou triste não tenho projectos nem ambições guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos espalho a saliva das visões pela demorada noite onde deambula a melancolia lunar do corpo
mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim com suas raízes de escamas em forma de coração e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu humilde e cansado piloto que só de te sonhar me morro de aflição
“Rumor dos Fogos” Assirio & Alvim, 1983
|
|
|
Do Amoroso Esquecimento |
em 04/10/2011 14:13:38 (4787 leituras) |
Eu, agora - que desfecho! Já nem penso mais em ti... Mas será que nunca deixo De lembrar que te esqueci?
|
|
|
|