Todos os Poetas

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Nocturno
em 10/09/2007 20:30:00 (4474 leituras)
Antero de Quental

"Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo – triste e lento –
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!"



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Ideal
em 09/09/2007 13:00:00 (10778 leituras)
Antero de Quental

"Aquela, que eu adoro, não é feita

De lírios nem de rosas purpurinas,

Não tem as formas lânguidas, divinas

Da antiga Vénus de cintura estreita...


Não é a circe, cuja mão suspeita

Compõe filtros mortais entre ruínas,

Nem a Amazona, que se agarra às crinas

D'um corcel e combate satisfeita...



A mim pergunto, e não atino

Com o nome que dê a essa visão,

Que ora amostra ora esconde o meu destino...



É como uma miragem, que entrevejo,

Ideal, que nasceu na solidão,

Núvem, sono impalpável do Desejo..."

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O nosso livro
em 08/09/2007 22:50:00 (4939 leituras)
Florbela Espanca

Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito...
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito...
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois!..."


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A nossa casa
em 08/09/2007 22:50:00 (4826 leituras)
Florbela Espanca

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constroi-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho...que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - Dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...


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A doida
em 08/09/2007 22:50:00 (8027 leituras)
Florbela Espanca

A noite passa, noivando.
Caem ondas de luar.
Lá passa a doida cantando
Num suspiro doce e brando
Que mais parece chorar!

Dizem que foi pela morte
D'alguém, que muito lhe quis,
Que endoideceu. Triste sorte!
Que dor tão triste e tão forte!
Como um doido é infeliz!

Desde que ela endoideceu
(Que triste vida, que mágoa!)
Pobrezinha, olhando o céu,
chama o noivo que morreu,
Com os olhos rasos d'água!

E a noite passa, noivando.
Passa noivando o luar:
"Num suspiro doce e brando,
Pobre doida vai cantando
Que esse teu canto, é chorar!"


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Amor sem tréguas
em 08/09/2007 22:50:00 (9820 leituras)
António Gedeão

É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não de vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá do que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
qua a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

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Braile
em 08/09/2007 22:48:15 (4306 leituras)
Nuno Júdice

Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.


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Cantiga
em 08/09/2007 22:47:40 (4005 leituras)
Nuno Júdice

É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,

que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.

É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,
e não precisa de ser dito quando amanhece.

Pode ser o amor tantas vezes sentido,
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.

Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,
e todas as folhas mortas reverdeceram.


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Noções
em 08/09/2007 22:40:00 (4157 leituras)
Cecília Meireles

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...



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Fanatismo
em 08/09/2007 19:20:00 (12433 leituras)
Florbela Espanca

“Minh’alma de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu amor, a ler,
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!….

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina, fala em mim!

E olhos postos em ti, digo de rastos
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”


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Vozes do mar
em 08/09/2007 14:50:00 (7171 leituras)
Florbela Espanca

Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...

Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d'epopeias?Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz,ó mar amigo?...
... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!


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Sem ti
em 31/08/2007 15:40:00 (8427 leituras)
Eugénio de Andrade

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.







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A construção do corpo
em 31/08/2007 15:40:00 (3375 leituras)
António Ramos Rosa

Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia,
Entre a calma e a luz o movimento é livre.

Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.

No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.



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A carta da paixão
em 31/08/2007 15:30:00 (8735 leituras)
Herberto Helder

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se
alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas ne desordem,
nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco
luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como
um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que
crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas

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Todo o tempo é de poesia
em 29/08/2007 19:00:00 (4653 leituras)
António Gedeão

Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.

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Níobre Transformada em Fonte
em 20/08/2007 15:14:01 (2918 leituras)
Sophia Andresen

(adaptado de Ovídio)

Os cabelos embora o vento passe
Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fonte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços.

Mas os olhos de pedra não esquecem.
Subindo do seu corpo arrefecido,
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.



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Rosto
em 20/08/2007 15:11:38 (3392 leituras)
Sophia Andresen

Rosto nu na luz directa.

Rosto suspenso, despido e permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.

Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na duvida do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.

Rosto derivando lentamente,
Pressentindo que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem



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A invisibilidade de Deus
em 17/08/2007 18:20:00 (3990 leituras)
Al Berto

dizem que em sua boca se realiza a flor

outros afirmam:

a sua invisibilidade é aparente

mas nunca toquei deus nesta escama de peixe

onde podemos compreender todos os oceanos

nunca tive a visão de sua bondosa mão



o certo

é que por vezes morremos magros até ao osso

sem amparo e sem deus

apenas um rosto muito belo surge etéreo

na vasta insónia que nos isolou do mundo

e sorri

dizendo que nos amou algumas vezes

mas não é o rosto de deus

nem o teu nem aquele outro

que durante anos permaneceu ausente

e o tempo revelou não ser o meu


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Reconhecimento à loucura
em 17/08/2007 18:20:00 (8897 leituras)
Almada Negreiros

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.


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Dialética
em 17/08/2007 18:00:00 (8558 leituras)
Vinícius de Moraes

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples

É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...




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Chanson de la Plus Haute Tour
em 15/08/2007 19:30:00 (4544 leituras)
Arthur Rimbaud

Chanson de la Plus Haute Tour


Oisive jeunesse
À tout asservie;
Par délicatesse
J' ai perdu ma vie.
Ah! Que le temps vienne
Où les coeurs s' éprennent.

Je me suis dit: laisse,
Et qu' on ne te voi:
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t' arrête
Auguste retraite.

J' ai tant fait patience
Qu' a jamais j' oublie;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.

Ainsi la Prairie
À l' oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D' encens et d' ivraies
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.

Ah! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n' a que l' image
De la Notre-Dame!
Est-ce que l' on prie
La Vierge Marie?

Oisive jeunesse
À tout asservie
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah! Que le temps vienne
Où les coeurs s' éprennent!




Canção da Torre Mais Alta


Ociosa juventude
De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora.

Eu disse a mim: cessa,
Que eu não te veja:
Nenhuma promessa
De rara beleza.
E vá sem martírio
Ao doce exílio.

Foi tão longa a espera
Que eu não olvido.
O terror, fera,
Aos céus dedico.
E uma sede estranha
Corrói-me as entranhas.

Assim os Prados
Vastos, floridos
De mirra e nardo
Vão esquecidos
Na viagem tosca
De cem feias moscas.

Ah! A viuvagem
Sem quem as ame
Só têm a imagem
Da Notre-Dame!
Será a prece pia
À Virgem Maria?

Ociosa juventude
De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora!


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20 anos sem Drummond - Parte II
em 15/08/2007 19:23:01 (2358 leituras)
Carlos Drummond de Andrade

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade


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Ariane
em 14/08/2007 18:00:00 (7899 leituras)
Miguel Torga

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.



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Retrato
em 13/08/2007 22:10:00 (3214 leituras)
Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?



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Depois do Sol
em 11/08/2007 23:40:00 (6063 leituras)
Cecília Meireles

Fez-se noite com tal mistério,
Tão sem rumor, tão devagar,
Que o crepúsculo é como um luar
Iluminando um cemitério . . .

Tudo imóvel . . . Serenidades . . .
Que tristeza, nos sonhos meus!
E quanto choro e quanto adeus
Neste mar de infelicidades!


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Dez chamamentos ao amigo
em 11/08/2007 12:30:00 (3500 leituras)
Hilda Hilst

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água

Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.



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Ode descontínua e remota para flauta e oboé
em 11/08/2007 12:30:00 (5400 leituras)
Hilda Hilst

I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora



E sozinha supor

Que se estivesses dentro



Essa voz importante e esse vento

Das ramagens de fora



Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.

E o tempo de amanhã será riqueza:

A cada noite, eu Ariana, preparando

Aroma e corpo. E o verso a cada noite

Se fazendo de tua sábia ausência.



II

Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

Que a teu lado te amando,

Antes de ser mulher sou inteira poeta.

E que o teu corpo existe porque o meu

Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,

É que move o grande corpo teu



Ainda que tu me vejas extrema e suplicante

Quando amanhece e me dizes adeus.



III

A minha Casa é gurdiã do meu corpo

E protetora de todas minhas ardências.

E transmuta em palavra

Paixão e veemência



E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo

Para sorver a água da tua boca.



A minha Casa, Dionísio, te lamenta

E manda que eu te pergunte assim de frente:

À uma mulher que canta ensolarada

E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?



IV

Porque te amo

Deverias ao menos te deter

Um instante



Como as pessoas fazem

Quando vêem a petúnia

Ou a chuva de granizo.



Porque te amo

Deveria a teus olhos parecer

Uma outra Ariana



Não essa que te louva



A cada verso

Mas outra



Reverso de sua própria placidez

Escudo e crueldade a cada gesto.



Porque te amo, Dionísio,

é que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente



E porisso talvez

Te aborreças de mim.

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(...)


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Amor da palavra, Amor do corpo
em 01/08/2007 17:30:00 (4886 leituras)
António Ramos Rosa

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.



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Chove
em 01/08/2007 17:29:18 (9727 leituras)
José Gomes Ferreira

Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


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Pernoitas em mim
em 01/08/2007 16:50:00 (4714 leituras)
Al Berto

pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória...amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes


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Arma secreta
em 09/09/2007 20:00:00 (8364 leituras)
António Gedeão

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.


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Amor vivo
em 08/09/2007 23:00:00 (10924 leituras)
Antero de Quental

Amar! Mas d'um amor que tenha vida...
Não sejam sempre tímido a arpejos,
Não sejam só delírios e desejos
D'uma douda cabeça escandecida...

Amor que viva e brilhe! Luz fundida
Que penetre o meu ser - e não só beijos
Dados no ar - delírios e desejos -
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! E já a luz do dia
Não virá Dissipá-lo nos meus braços
Como névoa de fantasia...

Nem murchará do sol à chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores... se têm vida?

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A Mulher
em 08/09/2007 22:50:00 (32882 leituras)
Florbela Espanca

I

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: "Olhem, vejam
É aquela a infame!" e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!


II

Ó Mulher! Como é fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma image
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!


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Eu
em 08/09/2007 22:50:00 (5063 leituras)
Florbela Espanca

Até agora eu não me conhecia,
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... E não me via!

Andava a procurar-me - pobre louca! -
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
as apagadas cinzas da minha alma!


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Rosas
em 08/09/2007 22:50:00 (7125 leituras)
Florbela Espanca

Rosa! És a flor mais bela e mais gentil!
Entre as flores que a natureza encerra!
Bendito sejas tu, Ó mês de Abril
Que de rosas inundas toda a terra!

Brancas, vermelhas ou da cor sombria
Do desespero e do pezar mais fundo,
Sois símbolo d'amor e d'alegria,
Vós sois a obra-prima deste mundo!

Ao ver-vos tão bonitas e mimosas,
Esqueço a minha dor, minha saudade,
P'ra só vos contemplar, ó orgulhosas!

Eu abençoo então a Natureza
E curvo-me ante vós com humildade,
Ó rainhas da graça e da beleza!


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Há palavras que nos beijam
em 08/09/2007 22:50:00 (9899 leituras)
Alexandre O´Neill

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transporta
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

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Viagem
em 08/09/2007 22:47:59 (4447 leituras)
Nuno Júdice

Se eu voltasse a nascer, e
as minhas mãos me ensinassem o caminho
que vai do coração ao mundo, e
os meus olhos me abrissem o círculo
que o mar desenha no horizonte,
e o meu nariz respirasse a luz que a manhã
solta de dentro da névoa, e os meus lábios
pedissem o pão de estrelas que as aves
trocam entre si, e os meus passos me conduzissem
para onde ninguém precisa de voltar,
o tecido da minha vida seria transparente
como o vidro da janela que não abro,
o fio que vou puxando seria eterno
como os números que contam os dias de um deus,
a tesoura da noite ficaria na caixa
que não precisei de abrir. Se eu voltasse
a nascer, e as velas do sonho me envolvessem
com o linho do seu vento.


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Alegoria floral
em 08/09/2007 22:47:23 (3176 leituras)
Nuno Júdice

Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira
que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem
desça do céu para vestir de névoa os seus
seios de flor: seguirei o caminho da água nos
canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei
pela terra em busca da raíz.
Nesse dia em que os cabelos da mulher se
confundirem com os fios luminosos que o sol
faz passar pela folhagem; e em que um perfume
de pólen se derramar no ar liberto da névoa:
procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre
uma tranparência de ribeiro.
Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor,
despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu
da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia,
desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e
empurrá-las-ei para o mar com o vento brando
da sua respiração.
Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira
com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como
um botão de rosa, esperando que a nuvem desça
do céu para a roubar ao sonho da flor.


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Flores
em 08/09/2007 22:33:24 (4914 leituras)
Nuno Júdice

É nestas flores, em particular, que
vejo desenhar-se uma linha que me leva
de mim a ti, passando sobre um campo
invisível, onde já não se ouvem
os pássaros, e onde o vento não faz cair
as folhas. Estamos em frente de um canteiro
puramente abstracto, e cada uma destas flores
nasceu das frases em que o amor se manifesta,
e do movimento dos dedos sobre a pele,
traçando um fio de horizonte
em que os meus olhos se perdem. Por isso estão
vivas, e alimentam-se da seiva
que bebem nos teus lábios, quando os abres,
e por instantes a vida inteira se resume
ao sorriso que neles se esboça.


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Poetas
em 08/09/2007 14:50:00 (2796 leituras)
Florbela Espanca

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!


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Alcoólicas (trechos)
em 02/09/2007 01:50:00 (4029 leituras)
Hilda Hilst

I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

II


Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.


III


Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida


IX


Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida —
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado
vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso:
compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via
manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
O êxtase de te deitares contigo. Beba.
Estilhaça a tua própria medida.



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Amador sem coisa amada
em 31/08/2007 15:40:00 (7155 leituras)
António Gedeão

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.

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O amor é uma companhia
em 31/08/2007 15:30:00 (18773 leituras)
Fernando Pessoa

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo,
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro


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Dá-me a tua mão
em 31/08/2007 15:21:13 (9327 leituras)
José Gomes Ferreira

Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
atá o Abismo da Ternura Derradeira.


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O que me dói
em 26/08/2007 00:40:00 (13084 leituras)
Fernando Pessoa

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

Fernando Pessoa, 5-9-1933

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Musa
em 20/08/2007 15:12:47 (4516 leituras)
Sophia Andresen

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.



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A cor da rosa
em 17/08/2007 18:20:00 (11860 leituras)
Almeida Garrett

Alvejava de neve outrora a rosa,
Nem como agora, doce recendia;
Baixo voava Amor sem tento um dia,
E na rama espinhosa
De sua flor virgínea se feria.
Do sangue divina! gota amorosa
Da ligeira ferida lhe corria,
E as flores da roseira onde caía
Tomavam do encarnado a cor lustrosa.
Agora formosa
A rúbida flor
Recorda de Amor
A chaga ditosa.

Para os braços da mãe voou chorando;
Um beijo lhe acalmou penas e ardores:
E tão doce o remédio achou das dores,
Que Amor só desejou de quando em quando
Que assim penando,
Com seus clamores
Novos favores
Fosse alcançando.

Súbito voa, pelos ares fende;
As rosas viu de sua dor trajadas,
E que só de suas glórias namoradas
Nada dissessem com razão se ofende:
A mão lhe estende,
E delicioso
Cheiro amoroso
Nelas recende.

Vós que as rosas gentis buscais, amantes,
Nos jardins do prazer,
E, em vez da flor, espinhos penetrantes
Só chegais acolher,
Resignados sofrei, sede constantes,
Que a desventura,
Que a mágoa e dor
Sempre em doçura
Converte Amor.


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Ao rosto vulgar dos dias
em 17/08/2007 18:20:00 (5140 leituras)
Alexandre O´Neill

Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.



Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.

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Eu sou a concha das praias
em 17/08/2007 18:10:00 (6996 leituras)
Antero de Quental

Eu sou a concha das praias
Que anda batida da onda
E, de vaga em outra vaga,
Não tem aonde se esconda.
Mas se um menino, da areia
A colher e a for guardar
No seio... ali adormece
E é ali seu descansar.
Pois sou a concha da praia
Que anda batida da onda...
Sê tu esse seio infante,
Aonde a triste se esconda!

Eu sou quem vaga perdido,
Sob o sol, com passo incerto,
Contando por suas dores
As areias do deserto.
Mas se um palmar, no horizonte,
Se vê, súbito, surgir,
Tem ali a tenda e a fonte
E é ali o seu dormir.
Pois sou quem vaga perdido,
Sob o sol, com passo incerto...
Sê tu sombra de palmeira,
Sê-me tenda no deserto!

Sou o peito sequioso
E o viúvo coração,
Que em vão chama, em vão procura
Outro peito, seu irmão.
Mas se avista, um dia, a alma
Por quem andou a chamar,
Tem ali ninho e ventura
E é ali o seu amar.
Pois sou quem anda chorando
À procura dum irmão...
Sê tu a alma que me fale,
Inda uma hora ao coração!


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Resposta a Vinícius de Moraes
em 17/08/2007 18:00:00 (6949 leituras)
João Cabral de Melo Neto

Camarada diamante!

Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz de vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.




(João Cabral de Melo Neto, p.390)


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20 anos sem Drummond - Parte III
em 15/08/2007 19:23:32 (2643 leituras)
Carlos Drummond de Andrade

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade


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20 anos sem Drummond
em 15/08/2007 19:22:30 (6058 leituras)
Carlos Drummond de Andrade

TRECHOS DA ÚLTIMA ENTREVISTA que Carlos Drummond de Andrade concedeu ao jornalista Geneton Moares Neto (Jornal do Brasil).

Dezessete dias antes de dar adeus ao mundo, Carlos Drummond de Andrade confessava que tinha um único e prosaico medo: o de escorregar, levar uma queda boba e quebrar o fêmur. A confissão é exemplar do temperamento do maior poeta brasileiro. Quem batesse à porta do apartamento 701 do prédio de número 60 da Rua Conselheiro Lafayette, em Copacabana, à procura de declarações grandiloqüentes sobre a vida, a arte e a eternidade iria se deparar com um homem teimosamente prosaico, despido de todo e qualquer traço de vaidade e orgulho diante de uma obra que começou a brotar em Itabira para o mundo em 1918, ano da publicação de um poema chamado Prosa, num jornalzinho que só saiu uma vez.

O Drummond que se revela de corpo inteiro na longa entrevista que nos concedeu em duas sessões - nos dias 20 e 30 de julho - é um homem desiludido com o mundo. Agnóstico. Confessadamente solitário. Cético diante da posteridade. Injustamente rigoroso no julgamento da obra que produziu. Para todos os efeitos, Drummond considerava-se apenas o pacífico mineiro de Itabira portador da carteira de identidade no 803.412. E só. Tinha uma íntima esperança: queria ver a filha única, a escritora Maria Julieta, recuperada da doença. Tanto é que tentou adiar a entrevista para ‘quando as coisas melhorassem’. Não melhoraram. Os azares de agosto desabaram sobre os ombros frágeis do poeta. O câncer ósseo levou Maria Julieta. E tirou do poeta a vontade de viver. A imagem do Drummond cambaleante nas alamedas do cemitério no enterro da filha única era um mau presságio.

Reprodução das páginas centrais do suplemento 'Idéias', do JB, com trechos da última entrevista de Drummond. Menos de uma semana antes da morte da filha, Drummond, enfim, cedera à nossa insistência em obter um longo depoimento - não sem, antes, brindar-nos com o dúbio qualitativo de ‘implacável’. A entrevista fazia parte do projeto de publicação de um livro de depoimentos sobre os 60 anos do célebre poema No meio do caminho, no próximo ano. Drummond, naturalmente, não concordava nem de longe com a idéia de homenagear a data. ‘Não vale a pena; a data não merece consideração alguma’. Mas, provocado, falou como em poucas vezes: o depoimento, transcrito, rendeu cerca de mil linhas datilografadas. Um trecho - que antecipava a decisão do poeta de deixar de escrever - foi publicado no Idéias há duas semanas. Depois da morte da filha, Drummond tentou sustar a publicação da entrevista porque a considerava ‘muito festiva’. Acabou permitindo, sob a condição de que o editor avisasse que ela tinha sido concedida antes da morte de Maria Julieta. Em poucos dias, a entrevista transformou-se na cerimônia de adeus do maior poeta brasileiro. Mais do que nunca, neste depoimento, Drummond insiste que será esquecido em pouco tempo. Não será. E não terá sido por acaso que o clima no seu enterro não era propriamente de comoção. Porque todo mundo ali sabia que, nos versos, Drummond vive. E, na morte, encontrou o que tanto queria: a paz.

O MEDO

“A maior chateação da velhice é você ficar privado do uso completo de suas faculdades. A pessoa velha tem de moderar o ritmo do andar, porque, do contrário, o coração começa a pular. Não pode fazer grandes excessos. Não tomar um pileque de vez em quando porque isso provocará consequências maléficas. Ela tem de ser moderada até nos amores.
“O medo que tenho é levar uma queda, me machucar, quebrar a cabeça, coisas assim, porque, na idade em que estou, a primeira coisa que acontece numa queda é a fratura do fêmur. Isso eu receio”.

“...Cantaremos o medo da morte/ depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (Congresso Internacional do Medo - trecho)

A QUEIXA

“Antes, as pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Mas hoje há escritores premiados que não conhecem a língua natal...
“Quem hoje não sabe a língua e se manifesta mal é que aprendeu de maus professores. A decadência do ensino no Brasil é uma coisa que tem pelo menos trinta a quarenta anos - e talvez mais”.

“Precisamos educar o Brasil/ Compraremos professores e livros/ assimilaremos finas culturas/ abriremos dancings e subvencionaremos as elites/ Cada brasileiro terá sua casa/ com fogão e aquecedor elétrico, piscina/ salão para conferências científicas./ E cuidaremos do Estado Técnico” (Hino Nacional - trecho)

A VIDA

“Minha vida? Acho que foi pouco interessante. O que é que eu fui? Fui um burocrata, um jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance importante na minha vida. Nunca exerci um cargo que me permitisse tomar uma grande decisão política ou social ou econômica. Nunca nenhum destino ficou dependendo da minha vida ou do meu comportamento ou da minha atitude.
“Eu me considero - e sou realmente - um homem comum. Não dirijo nenhuma empresa pública ou privada. A sorte dos trabalhadores não depende de mim”.

“Sou apenas um homem/ Um homem pequenino à beira de um rio/ Vejo as águas que passam e não as compreendo/ ...Sou apenas o sorriso na face de um homem calado” (América - trecho)

O PAÍS

“Eu lamento que haja pouco consumo de livro no Brasil. Mas aí é um problema muito mais grave. É o problema da deseducação, o problema da pobreza - e, portanto, o da falta de nutrição e da falta de saúde. Antes de um escritor se lamentar porque não é lido como são lidos os escritores americanos ou europeus, ele deve se lamentar de pertencer a um país em que há tanta miséria e tanta injustiça social”.

“Precisamos descobrir o Brasil/ Escondido atrás das florestas/ com a água dos rios no meio/ o Brasil está dormindo, coitado” (Hino Nacional - trecho)

O VOTO

“Acho o Partido Verde muito limitado. Por que somente verde? Eu seria partidário de todas as cores do arco-íris - do vermelho vivo do sangue que palpita nas artérias ao azul do céu. O Partido que gostaria de ver implantado no Brasil, com condições de assumir o poder ou de partilhar o poder com partidos mais burgueses seria o Partido Socialista.
“Quando há eleição, não voto mais. Deixei de votar, porque me desinteressei. Deixei de votar porque a lei me faculta deixar de votar aos setenta anos. Ainda votei, até os oitenta e poucos. Depois, verifiquei que o quadro político não agradava nem me seduzia. As opções não eram agradáveis para mim”.

“Eu também já fui brasileiro/ moreno como vocês/ Ponteei viola, guiei forde/ e aprendi na mesa dos bares/ que o nacionalismo é uma virtude/ Mas há uma hora em que os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro - trecho)

A BELEZA

“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime”.

“Amar um passarinho é uma coisa louca/ Gira livre na longa azul gaiola/ que o peito me constrange/ enquanto a pouca liberdade de amar logo se evola... O passarinho baixa a nosso alcance/ e na queda submissa o vôo segue/ e prossegue sem asas, pura ausência” (Sonetos do pássaro - trecho)

A SOLIDÃO

“Se eu me sinto solitário? Em parte, sim, porque perdi meus pais e meus irmãos todos. Nós éramos seis irmãos. E, em parte, porque perdi também amigos da minha mocidade, como Pedro Nava, Mílton Campos, Emílio Moura, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Gustavo Capanema e outros que faziam parte da minha vida anterior, a mais profunda. Isso me dá um sentimento de solidão. Por outro lado, a solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está sozinha. Ela terá sempre uma companhia: a companhia imensa de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.

“Precisava de um amigo/ desses calados, distantes,/ que lêem verso de Horácio/ mas secretamente influem/ na vida, no amor, na carne/ Estou só, não tenho amigo/ E a essa hora tardia/ como procurar um amigo?” (A bruxa - trecho)

A POESIA

“Não lamento, na minha carreira intelectual, nada que tenha deixado de fazer. Não fiz muita coisa. Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Não tendo tido nenhuma ambição literária, fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético. Não tive a pretensão de ganhar prêmios ou de brilhar pela poesia ou de me comparar com meus colegas poetas. Pelo contrário. Sempre admirei muito os poetas que se afinavam comigo. Mas jamais tive a tentação de me incluir entre eles como um dos tais famosos. Não tive nada a me lamentar. Também não tenho nada do que me gabar. De maneira nenhuma. Minha poesia é cheia de imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública.
“Mas eu acho que chega. Não quero inundar o mundo com minha poesia. Seria uma pretensão exagerada”.

“Não serei o poeta de um mundo caduco/ Também não cantarei o mundo futuro/ Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças” (Mãos dadas - trecho)

A CRIAÇÃO

“Pelo menos na minha experiência pessoal, há uma emoção grande e uma alegria no momento de escrever o poema. Uma vez feito, é como o ato amoroso. Você sente o orgasmo, sai a poluição e depois aquilo acabou. Fica a lembrança agradável, mas você não pode dizer que aquele orgasmo foi melhor do que o outro! O mecanismo não é o mesmo, a reação não é a mesma”.

“É sempre no passado aquele orgasmo/ é sempre no presente aquele duplo/ é sempre no futuro aquele pânico/ É sempre no meu peito aquela garra/ É sempre no meu tédio aquele aceno/ É sempre no meu sono aquela guerra” (O enterrado vivo - trecho)

A NOVA REPÚBLICA

“Não teria cabimento eu escrever uma Constituição (ri). Não tenho a menor intenção e esta idéia nunca me passou pela cabeça. A Constituição de que eu mais gostaria é esta - ‘Artigo primeiro: Não há artigo primeiro. Artigo segundo: também não há artigo segundo. Parágrafo. Revogam-se as disposições em contrário’. Nem sei quem é o autor desta idéia.
“O Brasil está vivendo um fase de profunda inquietação e transformação de valores. É cedo para julgar um político, um presidente, um ministro. Nós estamos - ao mesmo tempo - participando da ação e querendo ser juízes. O observador, o participante, nunca é o juiz. A gente pode julgar o marechal Deodoro da Fonseca porque nós já sabemos no que deu a República com quase cem anos. Então, é uma figura histórica. Mas julgar historicamente e moralmente um nosso contemporâneo me parece uma das coisas mais difíceis de fazer. Não tenho opinião a respeito.
“O poeta não se situa em nenhuma república. O poeta se situa como poeta”.

“O que desejei é tudo/ Retomai minhas palavras/ meus bens, minha inquietação/ fazei o canto ardoroso/ cheio de antigo mistério/ mas límpido e resplendente” (Cidade prevista - trecho)

O ESTADO NOVO

“A minha relação com o poder foi uma relação amistosa com o ministro Gustavo Capanema, pelo fato de nós sermos companheiros antigos. Nunca participei do poder. Nunca desejei. Nunca teria vocação. Eu era da estrita confiança do ministro. Esculhambavam-me e acusavam-me de fazer favoritismo político e de arranjar nomeação de pessoas para falarem bem de mim nos jornais, o que é absolutamente falso. Eu não tinha poder! E eu não trairia a confiança de Gustavo Capanema (ministro da Educação do primeiro governo de Getúlio Vargas) fazendo coisas assim. Nunca tive a oportunidade de conversar com Getúlio, embora fosse acusado de poeta ligado ao Estado Novo. Eu não tinha nada com o Estado Novo. Nunca participei de homenagens ao governo. E saí de lá com as mãos abanando”.

“Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo/ mas estou cheio de escravos” (Sentimento do mundo - trecho)

A ACADEMIA

“A Academia nunca me inspirou desprezo. Não posso desprezá-la porque não acho que é uma instituição digna de desprezo. O que há é o seguinte: não tenho espírito acadêmico, não tenho a tendência para ser acadêmico. A Academia, então, não me produz uma sensação de desprezo nem de desgosto. Apenas relativo distanciamento. Mas devo assinalar que, dentro da Academia, estão alguns dos meus melhores amigos. São companheiros de juventude, como Afonso Arinos, Abgar Renaut, Ciro dos Anjos - que não é só meu amigo: é meu compadre. Não tenho nada individualmente contra os acadêmicos. Acredito que - sendo uma instituição composta por quarenta pessoas - dificilmente, em qualquer lugar do mundo, essas quarenta pessoas serão bons escritores. Haverá, sempre, uma parcela de escritores menores e, até, de maus escritores”.

“Ah, não me tragam originais/ para ler, para corrigir, para louvar/ sobretudo, para louvar/ Não sou leitor nem espelho/ de figuras que amam refletir-se no outro/ à falta de retrato interior” (Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)

O JORNALISMO

“Trabalhei na imprensa durante a minha vida toda, com um ligeiro intervalo em que me dediquei só à burocracia do Ministério da Educação. Sempre tive muita consideração dos meus companheiros. E muita liberdade. Mas me recordo que, há tempos atrás, num momento de molecagem, para testar a resistência do copy-desk, no Jornal do Brasil, escrevi a palavra bunda. Cortaram e botaram a palavra traseiro. Hoje, a palavra bunda circula até em fotografia, em desenho, por toda parte. Uma das coisas mais celebradas pela grande imprensa é a bunda. A televisão está lá - mostrando bunda de homem, o que, a nós, não interessa...
“Não participei da elaboração do grande jornal diário e intenso. Como cronista, escrevia em casa. O jornal, gentilmente, mandava apanhar a minha matéria. Como jornalista, não tive a emoção da grande reportagem e dos grandes acontecimentos que eu teria de enfrentar numa fração de segundo para que a matéria saísse no dia seguinte”.

“O fato ainda não acabou de acontecer/ E já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia/ O marido está matando a mulher/ A mulher ensanguentada grita/ Ladrões arrombam o cofre/ A polícia dissolve o meeting/ A pena escreve/ Vem da sala de linotipos a doce música mecânica” (Poema do jornal)

A VOCAÇÃO

“Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.

“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (Poema de Sete Faces - trecho)

ADEUS

“Quem é que fala hoje em Humberto de Campos? Quem é que fala em Emílio de Menezes? Quem é que fala em Goulart de Andrade? Quem é que fala em Luís Edmundo? Ninguém se recorda deles! Não fica nada! É engraçado. Mas não fica, não. Não tenho a menor ilusão. E não me aborreço: acho muito natural. É assim mesmo que é a vida.
“Não vou dizer como o Figueiredo: ‘Quero que me esqueçam!’ Podem falar. Não me interessa, porque não acredito na vida eterna. Para mim, é indiferente.
“Nenhum poema meu entrou para a História do Brasil. O que aconteceu foi o seguinte: ficaram como modismos e como frases feitas: ‘tinha uma pedra no meio do caminho’ e ‘e agora, José?’. Que eu saiba, só. Mais nada.
“Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos eu já estarei no Cemitério de São João Baptista. Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.

“Quero a paz das estepes/ a paz dos descampados/ a paz do Pico de Itabira/ quando havia Pico de Itabira/ A paz de cima das Agulhas Negras/ A paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho/ A paz da paz” (Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)


Fonte: Memória Viva de Carlos Drummond de Andrade


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Meu ser evaporei na lida insana
em 14/08/2007 18:00:00 (24355 leituras)
Bocage

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.


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Atitude
em 13/08/2007 22:10:00 (6145 leituras)
Cecília Meireles

Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa,

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.


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O Poeta Inventa Viagem, retorno e Morre de Saudade
em 11/08/2007 12:50:00 (4428 leituras)
Hilda Hilst

Se for possível, manda-me dizer:

- É lua cheia. A casa está vazia -

Manda-me dizer, e o paraíso

Há de ficar mais perto, e mais recente

Me há de parecer teu rosto incerto.

Manda-me buscar se tens o dia

Tão longo como a noite. Se é verdade

Que sem mim só vês monotonia.

E se te lembras do brilho das marés

De alguns peixes rosados

Numas águas

E dos meus pés molhados, manda-me dizer:

- É lua nova -

E revestida de luz te volto a ver.



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Árias Pequenas.para Bandolim
em 11/08/2007 12:30:00 (3021 leituras)
Hilda Hilst

Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores



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Plano
em 03/08/2007 19:50:00 (4027 leituras)
Nuno Júdice


Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


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O amor é o amor
em 01/08/2007 17:30:00 (5455 leituras)
Alexandre O´Neill

O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?


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Redacção
em 01/08/2007 17:00:00 (3394 leituras)
Alexandre O´Neill

Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas «de amor, de amor».

À parte aquelas
trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.


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Dos Milagres
em 01/08/2007 16:10:00 (5865 leituras)
Mario Quintana

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,

Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...

Nem mudar água pura em vinho tinto...

Milagre é acreditarem nisso tudo






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