Nocturno |
em 10/09/2007 20:30:00 (4474 leituras) |
"Espírito que passas, quando o vento Adormece no mar e surge a Lua, Filho esquivo da noite que flutua, Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo – triste e lento – Que voga e subtilmente se insinua, Sobre o meu coração, que tumultua, Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva Um instinto de luz, rompendo a treva, Buscando, entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o meu mal sem nome, A febre de Ideal, que me consome, Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!"
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Ideal |
em 09/09/2007 13:00:00 (10778 leituras) |
"Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...
Não é a circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
D'um corcel e combate satisfeita...
A mim pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...
É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Núvem, sono impalpável do Desejo..."
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O nosso livro |
em 08/09/2007 22:50:00 (4939 leituras) |
Livro do meu amor, do teu amor, Livro do nosso amor, do nosso peito... Abre-lhe as folhas devagar, com jeito, Como se fossem pétalas de flor.
Olha que eu outro já não sei compor Mais santamente triste, mais perfeito... Não esfolhes os lírios com que é feito Que outros não tenho em meu jardim de dor!
Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu! Num sorriso tu dizes e digo eu: Versos só nossos mas que lindos sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente Dirá, fechando o livro docemente: "Versos só nossos, só de nós os dois!..."
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A nossa casa |
em 08/09/2007 22:50:00 (4826 leituras) |
A nossa casa, Amor, a nossa casa! Onde está ela, Amor, que não a vejo? Na minha doida fantasia em brasa Constroi-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela, Amor, a nossa casa, O bem que neste mundo mais invejo? O brando ninho aonde o nosso beijo Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho...que eu e tu, dois pobrezinhos, Andamos de mãos dadas, nos caminhos Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi... E que eu moro - tão bom! - Dentro de ti E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
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A doida |
em 08/09/2007 22:50:00 (8027 leituras) |
A noite passa, noivando. Caem ondas de luar. Lá passa a doida cantando Num suspiro doce e brando Que mais parece chorar!
Dizem que foi pela morte D'alguém, que muito lhe quis, Que endoideceu. Triste sorte! Que dor tão triste e tão forte! Como um doido é infeliz!
Desde que ela endoideceu (Que triste vida, que mágoa!) Pobrezinha, olhando o céu, chama o noivo que morreu, Com os olhos rasos d'água!
E a noite passa, noivando. Passa noivando o luar: "Num suspiro doce e brando, Pobre doida vai cantando Que esse teu canto, é chorar!"
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Amor sem tréguas |
em 08/09/2007 22:50:00 (9820 leituras) |
É necessário amar, qualquer coisa, ou alguém; o que interessa é gostar não importa de quem.
Não importa de quem, nem importa de quê; o que interessa é amar mesmo o que não de vê.
Pode ser uma mulher, uma pedra, uma flor, uma coisa qualquer, seja lá do que for.
Pode até nem ser nada que em ser se concretize, coisa apenas pensada, qua a sonhar se precise.
Amar por claridade, sem dever a cumprir; uma oportunidade para olhar e sorrir.
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Braile |
em 08/09/2007 22:48:15 (4306 leituras) |
Leio o amor no livro da tua pele; demoro-me em cada sílaba, no sulco macio das vogais, num breve obstáculo de consoantes, em que os meus dedos penetram, até chegarem ao fundo dos sentidos. Desfolho as páginas que o teu desejo me abre, ouvindo o murmúrio de um roçar de palavras que se juntam, como corpos, no abraço de cada frase. E chego ao fim para voltar ao princípio, decorando o que já sei, e é sempre novo quando o leio na tua pele.
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Cantiga |
em 08/09/2007 22:47:40 (4005 leituras) |
É pelo teu rosto em que as marés passam, pelos teus lábios em que voam gaivotas, pelos teus dedos em que a luz perpassa, pelos teus olhos que me traçam as rotas,
que este barco encontra o caminho, que este dia descobre que não é tarde, que as palavras se bebem como vinho, e o fogo não queima quando arde.
É no que me dizes quando a noite fala, no que perdura da manhã que se esquece, no que é dito em tudo o que se cala, e não precisa de ser dito quando amanhece.
Pode ser o amor tantas vezes sentido, ou só aquilo que vive no coração, pode ser o que pensava ter esquecido, e regressa agora pela tua mão.
Quantas vezes já foi primavera, e logo aí as flores morreram: até ao dia em que nada ficou como era, e todas as folhas mortas reverdeceram.
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Noções |
em 08/09/2007 22:40:00 (4157 leituras) |
Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...
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Fanatismo |
em 08/09/2007 19:20:00 (12433 leituras) |
“Minh’alma de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida… Passo no mundo, meu amor, a ler, No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida!….
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina, fala em mim!
E olhos postos em ti, digo de rastos “Ah! Podem voar mundos, morrer astros Que tu és como Deus: princípio e fim!…”
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Vozes do mar |
em 08/09/2007 14:50:00 (7171 leituras) |
Quando o sol vai caindo sobre as águas Num nervoso delíquio d’oiro intenso, Donde vem essa voz cheia de mágoas Com que falas à terra, ó mar imenso?...
Tu falas de festins, e cavalgadas De cavaleiros errantes ao luar? Falas de caravelas encantadas Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d'epopeias?Tens anseios D'amarguras? Tu tens também receios, Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz,ó mar amigo?... ... Talvez a voz do Portugal antigo, Chamando por Camões numa saudade!
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Sem ti |
em 31/08/2007 15:40:00 (8427 leituras) |
E de súbito desaba o silêncio. É um silêncio sem ti, sem álamos, sem luas.
Só nas minhas mãos ouço a música das tuas.
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A construção do corpo |
em 31/08/2007 15:40:00 (3375 leituras) |
Sempre a tentativa nunca vã... O equilíbrio musical dos instrumentos, a paciência do teu pulso suave e certo, o teu rosto mais largo e a calma força que sobe e que modelas palmo a palmo, rio que ascende como um tronco em plena sala. A tua casa habita entre o silêncio e o dia, Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia, erguê-la do fundo e solta propagá-la aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos e que a cabeça ascenda, cordial corola plena. Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível. Respiras lentamente. A terra inteira é viva. E sentes o teu sangue harmonioso e livre correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz, rigor suave e óleo, música de músculos, roda lenta girando das ancas ao busto ondeado e cada vez mais ampla a onda livre ondula a todo o corpo uno, num respirar de vela. Sobre a toalha de água, à luz de um sol real, dança e respira, respira e dança a vida, o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.
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A carta da paixão |
em 31/08/2007 15:30:00 (8735 leituras) |
Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça, que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a sua queimadura desde os recessos negros onde se formam as estações até ao cimo, nas sedas que se escoam com a largura fluvial da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas e o silêncio todo branco. Os dedos. A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua alumia-se. O mel escurece dentro da veia jugular talhando a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras, a lua tece as ramas de um sangue mais salgado e profundo. E o marfim amadurece na terra como uma constelação. O dia leva-o, a noite traz para junto da cabeça: essa raiz de osso vivo. A idade que escrevo escreve-se num braço fincado em ti, uma veia dentro da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta da figura cavada no espelho. Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal. Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens. E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo, um alimento violento cheio da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força desde a raiz dos braços, a força manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda fechada, a límpida ferida que me atravessa desde essa tua leveza sombria como uma dança até ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma estação é lenta quando te acrescentas ne desordem, nenhum astro é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros do teu vestido. As palavras que escrevo correndo entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso, arterial. E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado. A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo. Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem nos quartos. É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas, entre as mãos sumptuosas. A doçura mata. A luz salta às golfadas. A terra é alta. Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas
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Todo o tempo é de poesia |
em 29/08/2007 19:00:00 (4653 leituras) |
Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outro dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qu'a amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação ao caos à confusão da harmonia.
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Níobre Transformada em Fonte |
em 20/08/2007 15:14:01 (2918 leituras) |
(adaptado de Ovídio)
Os cabelos embora o vento passe Já não se agitam leves. O seu sangue, Gelando, já não tinge a sua face. Os olhos param sob a fonte aflita. Já nada nela vive nem se agita, Os seus pés já não podem formar passos, Lentamente as entranhas endurecem E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os olhos de pedra não esquecem. Subindo do seu corpo arrefecido, Lágrimas lentas rolam pela face, Lentas rolam, embora o tempo passe.
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Rosto |
em 20/08/2007 15:11:38 (3392 leituras) |
Rosto nu na luz directa.
Rosto suspenso, despido e permeável, Osmose lenta. Boca entreaberta como se bebesse, Cabeça atenta.
Rosto desfeito, Rosto sem recusa onde nada se defende, Rosto que se dá na duvida do pedido, Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente, Pressentindo que os laranjais segredam, Rosto abandonado e transparente Que as negras noites de amor em si recebem
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A invisibilidade de Deus |
em 17/08/2007 18:20:00 (3990 leituras) |
dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam: a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão
o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu
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Reconhecimento à loucura |
em 17/08/2007 18:20:00 (8897 leituras) |
Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo? Já. E tomar a forma dos objectos? Sim. E acender relâmpagos no pensamento? Também. E às vezes parecer ser o fim? Exactamente. Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima? Tal e qual. E depois mostrar-nos o que há-de vir muito melhor do que está? E dar-nos a cheirar uma cor que nos faz seguir viagem sem paragem nem resignação? E sentirmo-nos empurrados pelos rins na aula de descer abismos e fazer dos abismos descidas de recreio e covas de encher novidade? E de uns fazer gigantes e de outros alienados? E fazer frente ao impossível atrevidamente e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe a ponto do impossível ficar possível? E quando tudo parece perfeito poder-se ir ainda mais além? E isto de desencantar vidas aos que julgam que a vida é só uma? E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais. Só tu és capaz de fazer que tenham razão tantas razões que hão-de viver juntas. Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta. Só tu tens asas para dar a quem tas vier buscar.
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Dialética |
em 17/08/2007 18:00:00 (8558 leituras) |
É claro que a vida é boa E a alegria, a única indizível emoção É claro que te acho linda Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
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Chanson de la Plus Haute Tour |
em 15/08/2007 19:30:00 (4544 leituras) |
Chanson de la Plus Haute Tour
Oisive jeunesse À tout asservie; Par délicatesse J' ai perdu ma vie. Ah! Que le temps vienne Où les coeurs s' éprennent.
Je me suis dit: laisse, Et qu' on ne te voi: Et sans la promesse De plus hautes joies. Que rien ne t' arrête Auguste retraite.
J' ai tant fait patience Qu' a jamais j' oublie; Craintes et souffrances Aux cieux sont parties. Et la soif malsaine Obscurcit mes veines.
Ainsi la Prairie À l' oubli livrée, Grandie, et fleurie D' encens et d' ivraies Au bourdon farouche De cent sales mouches.
Ah! Mille veuvages De la si pauvre âme Qui n' a que l' image De la Notre-Dame! Est-ce que l' on prie La Vierge Marie?
Oisive jeunesse À tout asservie Par délicatesse J'ai perdu ma vie. Ah! Que le temps vienne Où les coeurs s' éprennent!
Canção da Torre Mais Alta
Ociosa juventude De tudo pervertida Por minha virtude Eu perdi a vida. Ah! Que venha a hora Que as almas enamora.
Eu disse a mim: cessa, Que eu não te veja: Nenhuma promessa De rara beleza. E vá sem martírio Ao doce exílio.
Foi tão longa a espera Que eu não olvido. O terror, fera, Aos céus dedico. E uma sede estranha Corrói-me as entranhas.
Assim os Prados Vastos, floridos De mirra e nardo Vão esquecidos Na viagem tosca De cem feias moscas.
Ah! A viuvagem Sem quem as ame Só têm a imagem Da Notre-Dame! Será a prece pia À Virgem Maria?
Ociosa juventude De tudo pervertida Por minha virtude Eu perdi a vida. Ah! Que venha a hora Que as almas enamora!
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20 anos sem Drummond - Parte II |
em 15/08/2007 19:23:01 (2358 leituras) |
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade
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Ariane |
em 14/08/2007 18:00:00 (7899 leituras) |
Ariane é um navio. Tem mastros, velas e bandeira à proa, E chegou num dia branco, frio, A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de Sonho, fundeou Dentro da claridade destas grades... Cisne de todos, que se foi, voltou Só para os olhos de quem tem saudades...
Foram duas fragatas ver quem era Um tal milagre assim: era um navio Que se balança ali à minha espera Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos Sair desta prisão em corpo inteiro, E levantar âncora, e cair nos braços De Ariane, o veleiro.
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Retrato |
em 13/08/2007 22:10:00 (3214 leituras) |
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?
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Depois do Sol |
em 11/08/2007 23:40:00 (6063 leituras) |
Fez-se noite com tal mistério, Tão sem rumor, tão devagar, Que o crepúsculo é como um luar Iluminando um cemitério . . .
Tudo imóvel . . . Serenidades . . . Que tristeza, nos sonhos meus! E quanto choro e quanto adeus Neste mar de infelicidades!
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Dez chamamentos ao amigo |
em 11/08/2007 12:30:00 (3500 leituras) |
Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água
Desejasse Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.
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Ode descontínua e remota para flauta e oboé |
em 11/08/2007 12:30:00 (5400 leituras) |
I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.
III
A minha Casa é gurdiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.
Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana
Não essa que te louva
A cada verso
Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.
Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E porisso talvez
Te aborreças de mim.
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(...)
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Amor da palavra, Amor do corpo |
em 01/08/2007 17:30:00 (4886 leituras) |
A nudez da palavra que te despe. Que treme, esquiva. Com os olhos dela te quero ver, que te não vejo. Boca na boca através de que boca posso eu abrir-te e ver-te? É meu receio que escreve e não o gosto do sol de ver-te? Todo o espaço dou ao espelho vivo e do vazio te escuto. Silêncio de vertigem, pausa, côncavo de onde nasces, morres, brilhas, branca? És palavra ou és corpo unido em nada? É de mim que nasces ou do mundo solta? Amorosa confusão, te perco e te acho, à beira de nasceres tua boca toco e o beijo é já perder-te.
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Chove |
em 01/08/2007 17:29:18 (9727 leituras) |
Chove...
Mas isso que importa!, se estou aqui abrigado nesta porta a ouvir a chuva que cai do céu uma melodia de silêncio que ninguém mais ouve senão eu?
Chove...
Mas é do destino de quem ama ouvir um violino até na lama.
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Pernoitas em mim |
em 01/08/2007 16:50:00 (4714 leituras) |
pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória...amas ou finges morrer
pressinto o aroma luminoso dos fogos escuto o rumor da terra molhada a fala queimada das estrelas
é noite ainda o corpo ausente instala-se vagarosamente envelheço com a nómada solidão das aves
já não possuo a brancura oculta das palavras e nenhum lume irrompe para beberes
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Arma secreta |
em 09/09/2007 20:00:00 (8364 leituras) |
Tenho uma arma secreta ao serviço das nações. Não tem carga nem espoleta mas dispara em linha recta mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor, nem Snark ou outros que tais. É coisa muito melhor que todo o vasto teor dos Cabos Canaverais.
A potência destinada às rotações da turbina não vem da nafta queimada, nem é de água oxigenada nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida, em alerta permanente, espera o sinal da partida. Podia chamar-se VIDA. Chama-se AMOR, simplesmente.
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Amor vivo |
em 08/09/2007 23:00:00 (10924 leituras) |
Amar! Mas d'um amor que tenha vida... Não sejam sempre tímido a arpejos, Não sejam só delírios e desejos D'uma douda cabeça escandecida...
Amor que viva e brilhe! Luz fundida Que penetre o meu ser - e não só beijos Dados no ar - delírios e desejos - Mas amor... dos amores que têm vida...
Sim, vivo e quente! E já a luz do dia Não virá Dissipá-lo nos meus braços Como névoa de fantasia...
Nem murchará do sol à chama erguida... Pois que podem os astros dos espaços Contra débeis amores... se têm vida?
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A Mulher |
em 08/09/2007 22:50:00 (32882 leituras) |
I
Um ente de paixão e sacrifício, De sofrimento cheio, eis a mulher! Esmaga o coração dentro do peito, E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes Na luta: sê em Vénus sempre Marte; Sempre o mundo é vil e infame e os homens Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho, Essa brancura ideal de puro arminho Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então vis: "Olhem, vejam É aquela a infame!" e apedrejam a pobrezita, a triste, a desgraçada!
II
Ó Mulher! Como é fraca e como és forte! Como sabes ser doce e desgraçada! Como sabes fingir quando em teu peito A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma image Adorada que amaram doidamente! Quantas e quantas almas endoidecem Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm Sem nunca o confessarem a ninguém Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade Dum rei; amor de sonho e de saudade, Que se esvai e que foge num lamento!
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Eu |
em 08/09/2007 22:50:00 (5063 leituras) |
Até agora eu não me conhecia, Julgava que era Eu e eu não era Aquela que em meus versos descrevera Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia E, mesmo que o soubesse, o não dissera... Olhos fitos em rútila quimera Andava atrás de mim... E não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca! - E achei o meu olhar no teu olhar, E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma, É a chama da tua alma a esbrasear as apagadas cinzas da minha alma!
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Rosas |
em 08/09/2007 22:50:00 (7125 leituras) |
Rosa! És a flor mais bela e mais gentil! Entre as flores que a natureza encerra! Bendito sejas tu, Ó mês de Abril Que de rosas inundas toda a terra!
Brancas, vermelhas ou da cor sombria Do desespero e do pezar mais fundo, Sois símbolo d'amor e d'alegria, Vós sois a obra-prima deste mundo!
Ao ver-vos tão bonitas e mimosas, Esqueço a minha dor, minha saudade, P'ra só vos contemplar, ó orgulhosas!
Eu abençoo então a Natureza E curvo-me ante vós com humildade, Ó rainhas da graça e da beleza!
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Há palavras que nos beijam |
em 08/09/2007 22:50:00 (9899 leituras) |
Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras de amor, esperança, De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto; Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas inesperadas Como poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído No papel abandonado)
Palavras que nos transporta Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.
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Viagem |
em 08/09/2007 22:47:59 (4447 leituras) |
Se eu voltasse a nascer, e as minhas mãos me ensinassem o caminho que vai do coração ao mundo, e os meus olhos me abrissem o círculo que o mar desenha no horizonte, e o meu nariz respirasse a luz que a manhã solta de dentro da névoa, e os meus lábios pedissem o pão de estrelas que as aves trocam entre si, e os meus passos me conduzissem para onde ninguém precisa de voltar, o tecido da minha vida seria transparente como o vidro da janela que não abro, o fio que vou puxando seria eterno como os números que contam os dias de um deus, a tesoura da noite ficaria na caixa que não precisei de abrir. Se eu voltasse a nascer, e as velas do sonho me envolvessem com o linho do seu vento. |
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Alegoria floral |
em 08/09/2007 22:47:23 (3176 leituras) |
Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem desça do céu para vestir de névoa os seus seios de flor: seguirei o caminho da água nos canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei pela terra em busca da raíz. Nesse dia em que os cabelos da mulher se confundirem com os fios luminosos que o sol faz passar pela folhagem; e em que um perfume de pólen se derramar no ar liberto da névoa: procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre uma tranparência de ribeiro. Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor, despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia, desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e empurrá-las-ei para o mar com o vento brando da sua respiração. Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como um botão de rosa, esperando que a nuvem desça do céu para a roubar ao sonho da flor.
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Flores |
em 08/09/2007 22:33:24 (4914 leituras) |
É nestas flores, em particular, que vejo desenhar-se uma linha que me leva de mim a ti, passando sobre um campo invisível, onde já não se ouvem os pássaros, e onde o vento não faz cair as folhas. Estamos em frente de um canteiro puramente abstracto, e cada uma destas flores nasceu das frases em que o amor se manifesta, e do movimento dos dedos sobre a pele, traçando um fio de horizonte em que os meus olhos se perdem. Por isso estão vivas, e alimentam-se da seiva que bebem nos teus lábios, quando os abres, e por instantes a vida inteira se resume ao sorriso que neles se esboça.
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Poetas |
em 08/09/2007 14:50:00 (2796 leituras) |
Ai as almas dos poetas Não as entende ninguém; São almas de violetas Que são poetas também.
Andam perdidas na vida, Como as estrelas no ar; Sentem o vento gemer Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito Dores amargas e secretas É que em noites de luar Pode entender os poetas
E eu que arrasto amarguras Que nunca arrastou ninguém Tenho alma pra sentir A dos poetas também!
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Alcoólicas (trechos) |
em 02/09/2007 01:50:00 (4029 leituras) |
I
É crua a vida. Alça de tripa e metal. Nela despenco: pedra mórula ferida. É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
II
Também são cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. Sussurras: ah, a vida é líquida.
III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as E pairamos as duas, eu e a Vida No carmim da borrasca. Embriagadas Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa. Que estilosa galhofa. Que desempenados Serafins. Nós duas nos vapores Lobotômicas líricas, e a gaivagem se transforma em galarim, e é translúcida A lama e é extremoso o Nada. Descasco o dementado cotidiano E seu rito pastoso de parábolas. Pacientes, canonisas, muito bem-educadas Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida
IX
Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida — Bebe por mim paixão e turbulência, caminha Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as) Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio. Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta. Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica: O êxtase de te deitares contigo. Beba. Estilhaça a tua própria medida.
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Amador sem coisa amada |
em 31/08/2007 15:40:00 (7155 leituras) |
Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Sou amador da existência, não chego a profissional.
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O amor é uma companhia |
em 31/08/2007 15:30:00 (18773 leituras) |
O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo, E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona. Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
Alberto Caeiro
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Dá-me a tua mão |
em 31/08/2007 15:21:13 (9327 leituras) |
Dá-me a tua mão, Deixa que a minha solidão prolongue mais a tua - para aqui os dois de mãos dadas nas noites estreladas, a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira, atá o Abismo da Ternura Derradeira.
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O que me dói |
em 26/08/2007 00:40:00 (13084 leituras) |
O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.
Fernando Pessoa, 5-9-1933
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Musa |
em 20/08/2007 15:12:47 (4516 leituras) |
Aqui me sentei quieta Com as mãos sobre os joelhos Quieta muda secreta Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto Imanente e latente Eu quero ouvir devagar O teu súbito falar Que me foge de repente.
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A cor da rosa |
em 17/08/2007 18:20:00 (11860 leituras) |
Alvejava de neve outrora a rosa, Nem como agora, doce recendia; Baixo voava Amor sem tento um dia, E na rama espinhosa De sua flor virgínea se feria. Do sangue divina! gota amorosa Da ligeira ferida lhe corria, E as flores da roseira onde caía Tomavam do encarnado a cor lustrosa. Agora formosa A rúbida flor Recorda de Amor A chaga ditosa.
Para os braços da mãe voou chorando; Um beijo lhe acalmou penas e ardores: E tão doce o remédio achou das dores, Que Amor só desejou de quando em quando Que assim penando, Com seus clamores Novos favores Fosse alcançando.
Súbito voa, pelos ares fende; As rosas viu de sua dor trajadas, E que só de suas glórias namoradas Nada dissessem com razão se ofende: A mão lhe estende, E delicioso Cheiro amoroso Nelas recende.
Vós que as rosas gentis buscais, amantes, Nos jardins do prazer, E, em vez da flor, espinhos penetrantes Só chegais acolher, Resignados sofrei, sede constantes, Que a desventura, Que a mágoa e dor Sempre em doçura Converte Amor.
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Ao rosto vulgar dos dias |
em 17/08/2007 18:20:00 (5140 leituras) |
Monstros e homens lado a lado, Não à margem, mas na própria vida. Absurdos monstros que circulam Quase honestamente. Homens atormentados, divididos, fracos. Homens fortes, unidos, temperados. Ao rosto vulgar dos dias, A vida cada vez mais corrente, As imagens regressam já experimentadas, Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.
Imaginar, primeiro, é ver. Imaginar é conhecer, portanto agir.
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Eu sou a concha das praias |
em 17/08/2007 18:10:00 (6996 leituras) |
Eu sou a concha das praias Que anda batida da onda E, de vaga em outra vaga, Não tem aonde se esconda. Mas se um menino, da areia A colher e a for guardar No seio... ali adormece E é ali seu descansar. Pois sou a concha da praia Que anda batida da onda... Sê tu esse seio infante, Aonde a triste se esconda!
Eu sou quem vaga perdido, Sob o sol, com passo incerto, Contando por suas dores As areias do deserto. Mas se um palmar, no horizonte, Se vê, súbito, surgir, Tem ali a tenda e a fonte E é ali o seu dormir. Pois sou quem vaga perdido, Sob o sol, com passo incerto... Sê tu sombra de palmeira, Sê-me tenda no deserto!
Sou o peito sequioso E o viúvo coração, Que em vão chama, em vão procura Outro peito, seu irmão. Mas se avista, um dia, a alma Por quem andou a chamar, Tem ali ninho e ventura E é ali o seu amar. Pois sou quem anda chorando À procura dum irmão... Sê tu a alma que me fale, Inda uma hora ao coração!
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Resposta a Vinícius de Moraes |
em 17/08/2007 18:00:00 (6949 leituras) |
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato nem consegui cristalizá-lo: se ele te surge no que faço será um diamante opaco de quem por incapaz de vago quer de toda forma evitá-lo, senão com o melhor, o claro, do diamante, com o impacto: com a pedra, a aresta, com o aço do diamante industrial, barato, que incapaz de ser cristal raro vale pelo que tem de cacto.
(João Cabral de Melo Neto, p.390) |
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20 anos sem Drummond - Parte III |
em 15/08/2007 19:23:32 (2643 leituras) |
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! Vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. – Ó vida futura! Nós te criaremos.
Carlos Drummond de Andrade |
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20 anos sem Drummond |
em 15/08/2007 19:22:30 (6058 leituras) |
TRECHOS DA ÚLTIMA ENTREVISTA que Carlos Drummond de Andrade concedeu ao jornalista Geneton Moares Neto (Jornal do Brasil).
Dezessete dias antes de dar adeus ao mundo, Carlos Drummond de Andrade confessava que tinha um único e prosaico medo: o de escorregar, levar uma queda boba e quebrar o fêmur. A confissão é exemplar do temperamento do maior poeta brasileiro. Quem batesse à porta do apartamento 701 do prédio de número 60 da Rua Conselheiro Lafayette, em Copacabana, à procura de declarações grandiloqüentes sobre a vida, a arte e a eternidade iria se deparar com um homem teimosamente prosaico, despido de todo e qualquer traço de vaidade e orgulho diante de uma obra que começou a brotar em Itabira para o mundo em 1918, ano da publicação de um poema chamado Prosa, num jornalzinho que só saiu uma vez.
O Drummond que se revela de corpo inteiro na longa entrevista que nos concedeu em duas sessões - nos dias 20 e 30 de julho - é um homem desiludido com o mundo. Agnóstico. Confessadamente solitário. Cético diante da posteridade. Injustamente rigoroso no julgamento da obra que produziu. Para todos os efeitos, Drummond considerava-se apenas o pacífico mineiro de Itabira portador da carteira de identidade no 803.412. E só. Tinha uma íntima esperança: queria ver a filha única, a escritora Maria Julieta, recuperada da doença. Tanto é que tentou adiar a entrevista para ‘quando as coisas melhorassem’. Não melhoraram. Os azares de agosto desabaram sobre os ombros frágeis do poeta. O câncer ósseo levou Maria Julieta. E tirou do poeta a vontade de viver. A imagem do Drummond cambaleante nas alamedas do cemitério no enterro da filha única era um mau presságio.
Reprodução das páginas centrais do suplemento 'Idéias', do JB, com trechos da última entrevista de Drummond. Menos de uma semana antes da morte da filha, Drummond, enfim, cedera à nossa insistência em obter um longo depoimento - não sem, antes, brindar-nos com o dúbio qualitativo de ‘implacável’. A entrevista fazia parte do projeto de publicação de um livro de depoimentos sobre os 60 anos do célebre poema No meio do caminho, no próximo ano. Drummond, naturalmente, não concordava nem de longe com a idéia de homenagear a data. ‘Não vale a pena; a data não merece consideração alguma’. Mas, provocado, falou como em poucas vezes: o depoimento, transcrito, rendeu cerca de mil linhas datilografadas. Um trecho - que antecipava a decisão do poeta de deixar de escrever - foi publicado no Idéias há duas semanas. Depois da morte da filha, Drummond tentou sustar a publicação da entrevista porque a considerava ‘muito festiva’. Acabou permitindo, sob a condição de que o editor avisasse que ela tinha sido concedida antes da morte de Maria Julieta. Em poucos dias, a entrevista transformou-se na cerimônia de adeus do maior poeta brasileiro. Mais do que nunca, neste depoimento, Drummond insiste que será esquecido em pouco tempo. Não será. E não terá sido por acaso que o clima no seu enterro não era propriamente de comoção. Porque todo mundo ali sabia que, nos versos, Drummond vive. E, na morte, encontrou o que tanto queria: a paz.
O MEDO
“A maior chateação da velhice é você ficar privado do uso completo de suas faculdades. A pessoa velha tem de moderar o ritmo do andar, porque, do contrário, o coração começa a pular. Não pode fazer grandes excessos. Não tomar um pileque de vez em quando porque isso provocará consequências maléficas. Ela tem de ser moderada até nos amores. “O medo que tenho é levar uma queda, me machucar, quebrar a cabeça, coisas assim, porque, na idade em que estou, a primeira coisa que acontece numa queda é a fratura do fêmur. Isso eu receio”.
“...Cantaremos o medo da morte/ depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (Congresso Internacional do Medo - trecho)
A QUEIXA
“Antes, as pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Mas hoje há escritores premiados que não conhecem a língua natal... “Quem hoje não sabe a língua e se manifesta mal é que aprendeu de maus professores. A decadência do ensino no Brasil é uma coisa que tem pelo menos trinta a quarenta anos - e talvez mais”.
“Precisamos educar o Brasil/ Compraremos professores e livros/ assimilaremos finas culturas/ abriremos dancings e subvencionaremos as elites/ Cada brasileiro terá sua casa/ com fogão e aquecedor elétrico, piscina/ salão para conferências científicas./ E cuidaremos do Estado Técnico” (Hino Nacional - trecho)
A VIDA
“Minha vida? Acho que foi pouco interessante. O que é que eu fui? Fui um burocrata, um jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance importante na minha vida. Nunca exerci um cargo que me permitisse tomar uma grande decisão política ou social ou econômica. Nunca nenhum destino ficou dependendo da minha vida ou do meu comportamento ou da minha atitude. “Eu me considero - e sou realmente - um homem comum. Não dirijo nenhuma empresa pública ou privada. A sorte dos trabalhadores não depende de mim”.
“Sou apenas um homem/ Um homem pequenino à beira de um rio/ Vejo as águas que passam e não as compreendo/ ...Sou apenas o sorriso na face de um homem calado” (América - trecho)
O PAÍS
“Eu lamento que haja pouco consumo de livro no Brasil. Mas aí é um problema muito mais grave. É o problema da deseducação, o problema da pobreza - e, portanto, o da falta de nutrição e da falta de saúde. Antes de um escritor se lamentar porque não é lido como são lidos os escritores americanos ou europeus, ele deve se lamentar de pertencer a um país em que há tanta miséria e tanta injustiça social”.
“Precisamos descobrir o Brasil/ Escondido atrás das florestas/ com a água dos rios no meio/ o Brasil está dormindo, coitado” (Hino Nacional - trecho)
O VOTO
“Acho o Partido Verde muito limitado. Por que somente verde? Eu seria partidário de todas as cores do arco-íris - do vermelho vivo do sangue que palpita nas artérias ao azul do céu. O Partido que gostaria de ver implantado no Brasil, com condições de assumir o poder ou de partilhar o poder com partidos mais burgueses seria o Partido Socialista. “Quando há eleição, não voto mais. Deixei de votar, porque me desinteressei. Deixei de votar porque a lei me faculta deixar de votar aos setenta anos. Ainda votei, até os oitenta e poucos. Depois, verifiquei que o quadro político não agradava nem me seduzia. As opções não eram agradáveis para mim”.
“Eu também já fui brasileiro/ moreno como vocês/ Ponteei viola, guiei forde/ e aprendi na mesa dos bares/ que o nacionalismo é uma virtude/ Mas há uma hora em que os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro - trecho)
A BELEZA
“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime”.
“Amar um passarinho é uma coisa louca/ Gira livre na longa azul gaiola/ que o peito me constrange/ enquanto a pouca liberdade de amar logo se evola... O passarinho baixa a nosso alcance/ e na queda submissa o vôo segue/ e prossegue sem asas, pura ausência” (Sonetos do pássaro - trecho)
A SOLIDÃO
“Se eu me sinto solitário? Em parte, sim, porque perdi meus pais e meus irmãos todos. Nós éramos seis irmãos. E, em parte, porque perdi também amigos da minha mocidade, como Pedro Nava, Mílton Campos, Emílio Moura, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Gustavo Capanema e outros que faziam parte da minha vida anterior, a mais profunda. Isso me dá um sentimento de solidão. Por outro lado, a solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está sozinha. Ela terá sempre uma companhia: a companhia imensa de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.
“Precisava de um amigo/ desses calados, distantes,/ que lêem verso de Horácio/ mas secretamente influem/ na vida, no amor, na carne/ Estou só, não tenho amigo/ E a essa hora tardia/ como procurar um amigo?” (A bruxa - trecho)
A POESIA
“Não lamento, na minha carreira intelectual, nada que tenha deixado de fazer. Não fiz muita coisa. Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Não tendo tido nenhuma ambição literária, fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético. Não tive a pretensão de ganhar prêmios ou de brilhar pela poesia ou de me comparar com meus colegas poetas. Pelo contrário. Sempre admirei muito os poetas que se afinavam comigo. Mas jamais tive a tentação de me incluir entre eles como um dos tais famosos. Não tive nada a me lamentar. Também não tenho nada do que me gabar. De maneira nenhuma. Minha poesia é cheia de imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública. “Mas eu acho que chega. Não quero inundar o mundo com minha poesia. Seria uma pretensão exagerada”.
“Não serei o poeta de um mundo caduco/ Também não cantarei o mundo futuro/ Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças” (Mãos dadas - trecho)
A CRIAÇÃO
“Pelo menos na minha experiência pessoal, há uma emoção grande e uma alegria no momento de escrever o poema. Uma vez feito, é como o ato amoroso. Você sente o orgasmo, sai a poluição e depois aquilo acabou. Fica a lembrança agradável, mas você não pode dizer que aquele orgasmo foi melhor do que o outro! O mecanismo não é o mesmo, a reação não é a mesma”.
“É sempre no passado aquele orgasmo/ é sempre no presente aquele duplo/ é sempre no futuro aquele pânico/ É sempre no meu peito aquela garra/ É sempre no meu tédio aquele aceno/ É sempre no meu sono aquela guerra” (O enterrado vivo - trecho)
A NOVA REPÚBLICA
“Não teria cabimento eu escrever uma Constituição (ri). Não tenho a menor intenção e esta idéia nunca me passou pela cabeça. A Constituição de que eu mais gostaria é esta - ‘Artigo primeiro: Não há artigo primeiro. Artigo segundo: também não há artigo segundo. Parágrafo. Revogam-se as disposições em contrário’. Nem sei quem é o autor desta idéia. “O Brasil está vivendo um fase de profunda inquietação e transformação de valores. É cedo para julgar um político, um presidente, um ministro. Nós estamos - ao mesmo tempo - participando da ação e querendo ser juízes. O observador, o participante, nunca é o juiz. A gente pode julgar o marechal Deodoro da Fonseca porque nós já sabemos no que deu a República com quase cem anos. Então, é uma figura histórica. Mas julgar historicamente e moralmente um nosso contemporâneo me parece uma das coisas mais difíceis de fazer. Não tenho opinião a respeito. “O poeta não se situa em nenhuma república. O poeta se situa como poeta”.
“O que desejei é tudo/ Retomai minhas palavras/ meus bens, minha inquietação/ fazei o canto ardoroso/ cheio de antigo mistério/ mas límpido e resplendente” (Cidade prevista - trecho)
O ESTADO NOVO
“A minha relação com o poder foi uma relação amistosa com o ministro Gustavo Capanema, pelo fato de nós sermos companheiros antigos. Nunca participei do poder. Nunca desejei. Nunca teria vocação. Eu era da estrita confiança do ministro. Esculhambavam-me e acusavam-me de fazer favoritismo político e de arranjar nomeação de pessoas para falarem bem de mim nos jornais, o que é absolutamente falso. Eu não tinha poder! E eu não trairia a confiança de Gustavo Capanema (ministro da Educação do primeiro governo de Getúlio Vargas) fazendo coisas assim. Nunca tive a oportunidade de conversar com Getúlio, embora fosse acusado de poeta ligado ao Estado Novo. Eu não tinha nada com o Estado Novo. Nunca participei de homenagens ao governo. E saí de lá com as mãos abanando”.
“Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo/ mas estou cheio de escravos” (Sentimento do mundo - trecho)
A ACADEMIA
“A Academia nunca me inspirou desprezo. Não posso desprezá-la porque não acho que é uma instituição digna de desprezo. O que há é o seguinte: não tenho espírito acadêmico, não tenho a tendência para ser acadêmico. A Academia, então, não me produz uma sensação de desprezo nem de desgosto. Apenas relativo distanciamento. Mas devo assinalar que, dentro da Academia, estão alguns dos meus melhores amigos. São companheiros de juventude, como Afonso Arinos, Abgar Renaut, Ciro dos Anjos - que não é só meu amigo: é meu compadre. Não tenho nada individualmente contra os acadêmicos. Acredito que - sendo uma instituição composta por quarenta pessoas - dificilmente, em qualquer lugar do mundo, essas quarenta pessoas serão bons escritores. Haverá, sempre, uma parcela de escritores menores e, até, de maus escritores”.
“Ah, não me tragam originais/ para ler, para corrigir, para louvar/ sobretudo, para louvar/ Não sou leitor nem espelho/ de figuras que amam refletir-se no outro/ à falta de retrato interior” (Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)
O JORNALISMO
“Trabalhei na imprensa durante a minha vida toda, com um ligeiro intervalo em que me dediquei só à burocracia do Ministério da Educação. Sempre tive muita consideração dos meus companheiros. E muita liberdade. Mas me recordo que, há tempos atrás, num momento de molecagem, para testar a resistência do copy-desk, no Jornal do Brasil, escrevi a palavra bunda. Cortaram e botaram a palavra traseiro. Hoje, a palavra bunda circula até em fotografia, em desenho, por toda parte. Uma das coisas mais celebradas pela grande imprensa é a bunda. A televisão está lá - mostrando bunda de homem, o que, a nós, não interessa... “Não participei da elaboração do grande jornal diário e intenso. Como cronista, escrevia em casa. O jornal, gentilmente, mandava apanhar a minha matéria. Como jornalista, não tive a emoção da grande reportagem e dos grandes acontecimentos que eu teria de enfrentar numa fração de segundo para que a matéria saísse no dia seguinte”.
“O fato ainda não acabou de acontecer/ E já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia/ O marido está matando a mulher/ A mulher ensanguentada grita/ Ladrões arrombam o cofre/ A polícia dissolve o meeting/ A pena escreve/ Vem da sala de linotipos a doce música mecânica” (Poema do jornal)
A VOCAÇÃO
“Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.
“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (Poema de Sete Faces - trecho)
ADEUS
“Quem é que fala hoje em Humberto de Campos? Quem é que fala em Emílio de Menezes? Quem é que fala em Goulart de Andrade? Quem é que fala em Luís Edmundo? Ninguém se recorda deles! Não fica nada! É engraçado. Mas não fica, não. Não tenho a menor ilusão. E não me aborreço: acho muito natural. É assim mesmo que é a vida. “Não vou dizer como o Figueiredo: ‘Quero que me esqueçam!’ Podem falar. Não me interessa, porque não acredito na vida eterna. Para mim, é indiferente. “Nenhum poema meu entrou para a História do Brasil. O que aconteceu foi o seguinte: ficaram como modismos e como frases feitas: ‘tinha uma pedra no meio do caminho’ e ‘e agora, José?’. Que eu saiba, só. Mais nada. “Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos eu já estarei no Cemitério de São João Baptista. Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.
“Quero a paz das estepes/ a paz dos descampados/ a paz do Pico de Itabira/ quando havia Pico de Itabira/ A paz de cima das Agulhas Negras/ A paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho/ A paz da paz” (Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)
Fonte: Memória Viva de Carlos Drummond de Andrade |
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Meu ser evaporei na lida insana |
em 14/08/2007 18:00:00 (24355 leituras) |
Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava; Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.
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Atitude |
em 13/08/2007 22:10:00 (6145 leituras) |
Minha esperança perdeu seu nome... Fechei meu sonho, para chamá-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala.
O último passo do destino parará sem forma funesta, e a noite oscilará como um dourado sino derramando flores de festa,
Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando atrás das lembranças ardentes.
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O Poeta Inventa Viagem, retorno e Morre de Saudade |
em 11/08/2007 12:50:00 (4428 leituras) |
Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.
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Árias Pequenas.para Bandolim |
em 11/08/2007 12:30:00 (3021 leituras) |
Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
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Plano |
em 03/08/2007 19:50:00 (4027 leituras) |
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo, como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca. Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez, esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo e veja, através dele, o teu rosto inteiro.
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O amor é o amor |
em 01/08/2007 17:30:00 (5455 leituras) |
O amor é o amor - e depois? Vamos ficar os dois a imaginar, a imaginar?...
O meu peito contra o teu peito cortando o mar, cortando o ar. Num leito há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos sem destino, sem medo, sem pudor, e trocamos - somos um? somos dois? - espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?
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Redacção |
em 01/08/2007 17:00:00 (3394 leituras) |
Uma senhora pediu-me um poema de amor.
Não de amor por ela, mas «de amor, de amor».
À parte aquelas trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior» que podia eu dizer para ela, a não destinatária, que não fosse por ela?
Sem objecto, o poema é uma redacção dos 100 Modelos de Cartas de Amor.
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Dos Milagres |
em 01/08/2007 16:10:00 (5865 leituras) |
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo
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