Poemas : 

Quando dei por mim #.#.#

 
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Quando dei por mim


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Não escrevo mais poemas
Depois que percebi os motivos do mundo.

Um dia acordei e dei por mim
Assistindo a fome devorar uma criança,
E não só ela.

Quando dei por mim,
O mundo já estava em guerra
E um rio de sangue desaguava em minha janela,
Via parabólica.

Quando dei por mim,
Vi que as pessoas riam, sopravam velas,
Como se o tapete púrpura
Combinasse ali, sob a mesa, posta para o jantar.

Quando dei por mim,
Vi que não escrevia mais qualquer poema,
Que eram fios de plasma,
E que nada disso trazia uma importância.

Quando dei por mim,
Meu espelho já mostrava um rosto desigual,
Estranho,
Que não fazia o menor sentido estar ali.

Quando dei por mim,
Estava me afogando nesse mar
E meus poemas não eram mais poemas.
Eram a angústia, viva, a reclamar sua permanência,
Uma insólita e legítima cidadania.

Quando dei por mim,
Já havia nascido uma outra árvore no colo,
De raízes bem mais profundas,
Fincadas nesse terreno a que chamamos alma
E que rego quase todos os dias com estas lágrimas
Que não param de cair.

E fiquei viciado em dar por mim e me devorar,
Porque também entendi
A elegante metáfora dos vermes,
Que é se alimentar dos homens e de tudo
E que hoje prezo muito poder imitar e aprender.

Quando dei por mim, estava lá,
No meio de todas essas coisas, que pareciam mudas,
A dizer o que eu precisava urgentemente saber.

Quando dei por mim, estupefato, ali, ouvindo,
Procurei a ilusória proteção do medo
Que já ia muito longe, bem longe do meu querer.

E ando assim, dando por mim em cada milímetro,
Em plena transfusão de gestos, partículas,
Sofrendo feliz a dor de parir cada vão momento,
Pelas frestas, fendas, deste que se dá
E que, sendo eu mesmo, dá-se por mim
Sem dar-se por contente.

Outro dia dei por mim
Me descobrindo tal e qual um medíocre
E já estava esquecendo quando um amigo,
Generoso,
relembrou-me desta minha humílima condição.

A verdade é que dou por mim, esquecido,
Outra condição que não me difere dos outros,
Posto que ninguém lembra de dar-se conta do que é.

Sou também fantasma, disfarçado nessa posta de carne,
O que me deixa à vontade para copular e procriar.
E observando essa prole, saber de mim, nesse espelho,
Nessa troca reflexiva, prenhe de novas ideias, me saber.

Aprendi isso então, a me dar por todas as horas,
Porque outro não vai se dar ao trabalho
De arrancar máscaras enquanto estou distraído,
Sem dar por conta de mim.





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Milton Filho/31.08.13







 
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Srimilton
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Enviado por Tópico
Srimilton
Publicado: 05/09/2013 21:11  Atualizado: 06/09/2013 00:10
Membro de honra
Usuário desde: 15/02/2013
Localidade: Nenhuma
Mensagens: 1830
 Re: Quando dei por mim #.#.# P/jogon
Obrigado, Jogon, pela presença sempre gentil,
pelos dizeres.

Um abraço!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/09/2013 00:00  Atualizado: 06/09/2013 00:00
 Re: Quando dei por mim #.#.#
Na verdade o espelho não serve para que
as pessoas se lembrem do que são.
Ele simplesmente nos mostra o que
queremos ver em nós mesmos,segundo
o momento em que vivemos e pode
distorcer nossa imagem ou não
de acordo com nossa vontade.

Forte e trazido do mais fundo que
o pensamento pôde trazer.

Enviado por Tópico
GabrielaSal
Publicado: 10/09/2013 10:09  Atualizado: 10/09/2013 10:09
Colaborador
Usuário desde: 19/01/2013
Localidade:
Mensagens: 790
 Re: Quando dei por mim #.#.#
Milton,
Acredito que todos nós desenvolvemos papéis
diferentes e idênticos todos os dias.
As emoções se confundem, e queremos tão
desesperadamente entendê-las. Vivemos todos
os dias nos surpreendendo com coisas que
passam pelos nossos olhos, umas entendíveis,
outras não.
E isso nos dá uma tremenda sede de conhecimento
do nosso próprio eu, de nossas atitudes, do
que fazemos na vida, e por que fazemos.
Esse desespero de as vezes concordar. Esse outro
desespero de discordar.
Como se fossemos simples marionetes, fazendo gestos
apurando os ouvidos para aplausos.
Até que um amigo vem nos relembrar a humildade.
Deveríamos todos os dias exercitar a humildade, a
simplicidade do ser, para que pudéssemos alcançar
o profundo de nós mesmos.
Afinal,nos deram a passagem de ida. Mas a volta é uma
surpresa.

Divaguei...

Beijo!



.•´¸.•*´¨) ¸.•*¨)
(¸.•´ (¸.•`*´ Gabi.♥


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/09/2013 10:28  Atualizado: 10/09/2013 10:28
 Re: Quando dei por mim #.#.#
Em nós desenvolve-se o cotidiano que no faz viver , razões que se enerce confundindo com o diferente, entender a vida é estar de bem com ela. Nossos olhares refletem coisas de dentro de nós. Nossa identidade esta em nosso ser sempre em busca de um novo conhecer


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 13/05/2014 15:42  Atualizado: 13/05/2014 15:42
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5740
 Re: Quando dei por mim #.#.#
descobrir os motivos do mundo quebra qualquer visão. mas ai de mim se não fossem os poemas; eles não me fazem melhor e nem pior, mas me dá a capacidade de construir mundos, por onde ando, e quem me olha sempre ficará com a dúvida se se estou de máscara ou não.

o (teu) poema inteiro são inquietações corrosivas, mas de certo que, às vezes, fitar o outro alivia e até crescemos em adendos e/ou complementos.

e aqui percebo tua desistencia dos poemas dentro deste poema (rs)

bjos.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/01/2015 04:04  Atualizado: 05/01/2015 04:04
 Re: Quando dei por mim #.#.#
«Quando dei por mim,
Meu espelho já mostrava um rosto desigual,
Estranho,
Que não fazia o menor sentido estar ali.»

Me sinto assim tb, acho que é por isso que raramente escrevo seja lá o que for.
Bjs poeta,feliz ano novo.